As coisas que importam na vida
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Naquela época, quando o mundo ainda era um lugar normal, minha esposa e eu começamos a ver algumas coisas estranhas quando saíamos em Nice, na França, onde vivemos. Podíamos estar em um restaurante aconchegante, comendo uma refeição maravilhosa. Se olhássemos em volta, veríamos muitas pessoas lá conosco.
Mas eles não falavam.
Eles não estavam desfrutando de suas refeições.
Não. Eles estavam olhando para seus telefones.
Parecia um desperdício de um momento especial, sabe? E, no entanto, em um ponto ou outro, somos todos culpados de não prestar atenção um ao outro. Um amigo querido está nos contando uma história, mas estamos escrevendo um texto ao mesmo tempo. Um colega nos convida a tomar um café, mas esquecemos tudo. É isso o que acontece. Estamos muito ocupados, muito distraídos. Existem muitos jogos para jogar, muitos e-mails para verificar, muitos feeds das redes sociais para percorrer.
Só para esclarecer, nunca direi que esse coronavírus é uma coisa boa. De modo nenhum. Mas quando tudo isso acabar, espero que tenhamos passado tanto tempo separados que reavaliaremos nossos valores, tanto como indivíduos quanto como sociedade. Espero que compreendamos o que é importante na vida.
Quando os tempos são difíceis, nós, humanos, tendemos a nos adaptar. Nossas circunstâncias mudam nossos hábitos. Às vezes, isso também muda a maneira como vemos o mundo.
Quando os tempos são difíceis, nós, humanos, tendemos a nos adaptar. Nossas circunstâncias mudam nossos hábitos.
Estou falando da minha própria experiência aqui – sobretudo como pai. Cerca de seis semanas atrás, minha esposa, Jocelina, entrou em um supermercado em Nice e viu um caos: pessoas correndo com seus carrinhos, esvaziando as prateleiras, estocando papel higiênico. Na mesma época, conversei com Adrien Tamèze, um amigo meu que joga no Atalanta, uma equipe de Bergamo, na Itália, uma das cidades mais afetadas pelo vírus. Ele me dizia que não havia mais espaço nos cemitérios. Eu sabia que a França estava cerca de 10 dias atrás da Itália. Quando o vírus atingiu a França e eles suspenderam a Ligue 1, eu entendi que seria quase uma guerra. E quando a “guerra” começa, você quer estar perto de sua família e parentes. Você quer voltar para a sua pátria. Simples assim. Então, Jocelina e eu voamos com nossos três filhos para Salvador, Brasil, a cidade onde eu nasci.
Minha vida virou de cabeça para baixo. Em Nice, eu levava Diogo, Laura e Sophia para a escola, depois seguia direto para o treinamento. Parte do meu trabalho era combater os atacantes e atacar. Quando voltava para casa, estava cansado demais para fazer qualquer coisa.
Agora, meu trabalho é cozinhar, fazer café e ajudar Jocelina a limpar a casa. Passo o dia inteiro com os meus filhos.
Posso dizer que nunca fui um pai tão bom quanto agora. Certamente nunca estive mais presente. Nossa agenda é um pouco louca. Estamos mantendo o horário europeu para que as crianças possam fazer suas aulas on-line com seus colegas na França. Também queremos que eles se adaptem rapidamente à hora local quando voltarmos a Nice. Como as aulas começam às 4h10 da manhã, acordamos super cedo para nos preparar. As crianças estão preparadas? Eles entendem tudo? Eles precisam de ajuda? Às 11h, as aulas terminam e é hora do almoço. Nós cozinhamos, comemos e lavamos a louça. Então, as crianças brincam, enquanto eu faço o programa de treinamento que o clube me enviou, ou continuo meus estudos para me tornar treinador. Depois, às 18h, é hora de dormir. E por aí vai.
Cara, é estranho ir para a cama às 18h. Às vezes, minha cabeça está lutando para entender o que está acontecendo. Mas estou gostando. É tão bom ver meus filhos aprenderem coisas e progredirem. O ponto alto da minha semana costumava ser um jogo importante no fim de semana. Agora está sendo ajudar nos trabalhos de casa.
Quando não estou treinando, estudando ou ajudando as crianças, fico assistindo as notícias. Quando poderemos voltar para a França? Eu não sei. Ainda temos 10 partidas na temporada, mas não consigo pensar em futebol agora. Estou mais preocupado com o número de pessoas ao redor do mundo que estão infectadas. É assustador. Todos os dias vemos pessoas perdendo seus entes queridos. Estamos vendo famílias de luto que nem sequer têm a dignidade de enterrar as pessoas que perderam. Isso é de partir coração.
Oro todos os dias para que tudo isso acabe, que uma manhã ligue a televisão e veja que todos estão bem de saúde. Mas não tenho ideia do que vai acontecer. Com base no que está acontecendo na China e na Itália, espero pelo menos mais três meses de isolamento, mas mesmo isso pode não ser suficiente. Todos estamos sofrendo. Não sabemos se este é o fim da crise ou o começo. Isso é angustiante. Às vezes é difícil pegar no sono.
Quando você vê o quanto os outros estão sofrendo, você começa a mudar seu próprio comportamento. Agora, estou mais propenso do que nunca a pegar o telefone e ligar para alguém. Talvez eu queira discutir alguns exercícios com um treinador que também está estudando. Talvez eu veja como está passando um membro da minha família. Talvez eu chame um amigo para conversar sobre qualquer bobagem. Com quem eu falo, tento permanecer positivo e ajudar da maneira que puder. É assim que venceremos esse vírus. Não podemos pensar que este seja o fim do mundo ou que essa crise nunca acabará. Não. Temos que lidar com a realidade da melhor maneira possível e tentar cuidar um do outro. A energia positiva vai contar no final.
Eu acho que é fácil subestimar o quanto uma simples ligação pode significar para alguém agora. Muitas pessoas estão sozinhas e angustiadas, provavelmente mais do que a maioria de nós imagina. Conheço duas pessoas, que convivem com síndrome do pânico, que foram ao supermercado outro dia, viram o caos e tiveram problemas. Claro que telefonei para saber como estavam. Muitos de meus parentes não têm a mesma segurança financeira que eu, e por isso agradeço a Deus por estar em posição de ajudá-los.
Mas nem todo mundo no Brasil conhece um jogador de futebol profissional. O que está acontecendo neste país realmente me preocupa. Existe muita divergência nas informações transmitidas para a população. Se você disser às pessoas para ficarem em casa, elas o farão. Mas se você também lhes der a opção de sair, o que eles farão? Eles seguirão o caminho mais fácil. Todos temos que estar na mesma página, porque as coisas são muito mais sérias do que imaginamos. Nós também precisamos de solidariedade. Vamos encontrar uma solução para quem ganha o salário mínimo e não vamos deixar trabalhadores à sua própria sorte. Os grandes empresários devem fazer o possível para ajudar os mais vulneráveis.
Todo mundo tem o direito de ter comida na mesa. Essa é a verdade. Não podemos esperar que as pessoas que passam o dia todo sem comer fiquem em casa e não façam nada. A fome dói para c@ra#%*.
Embora seja importante permanecer positivo, acho que também precisamos ser realistas o suficiente para aceitar que isso não vai acabar em apenas algumas semanas. Será difícil, não apenas para brasileiros, mas também para americanos e europeus. Quando tudo isso acabar, o mundo será um lugar diferente.
Espero que também sejamos diferentes.
Quando tudo isso acabar, o mundo será um lugar diferente. Espero que também sejamos diferentes.
Seremos mais higiênicos. Vamos desfrutar de um mundo menos poluído. Teremos percebido que as pessoas geralmente fazem muitas coisas desnecessárias. No momento, as pessoas ricas não podem fazer compras. Quem possui jatos particulares não pode usá-los. Gestos extravagantes feitos para impressionar as pessoas não fazem sentido agora. Estamos todos no mesmo barco, tentando sobreviver juntos. Todos estamos tendo de abrir mão de alguma coisa para ajudar os outros. Mesmo aqueles que tendem a ser egoístas precisam pensar no bem comum, porque a única coisa que derrotará esse vírus é a solidariedade. Isso é um fato.
Quanto mais nos separamos, mais percebemos o quanto sentimos falta um do outro. Estou falando de contato humano. É isso que espero que possamos valorizar mais após esta crise, seja em restaurantes ou em outros lugares. Não estou negando a importância da tecnologia e da comunicação eficiente. O mundo evoluiu, precisamos entender isso. Smartphones e tablets são o que nos permite manter contato agora. Porém, quando essa quarentena terminar, estaremos acostumados a ver nossas telas 24 horas por dia, 7 dias por semana. E acho que estaremos enjoados disso.
Em vez disso, acho que apenas queremos nos ver pessoalmente. Se você perguntar às pessoas o que elas mais sentem falta no momento, tenho certeza de que a maioria delas dirá exatamente isso. Elas vão falar sobre conhecer uma pessoa diferente. Sair para tomar um café. Beber uma cerveja. Jogar futebol com os amigos em uma manhã de domingo.
Ou apenas dar um abraço em alguém.
Quando tudo isso acabar, acho que vamos aproveitar cada segundo que passamos juntos. Ficaremos no presente, ouvindo atentamente um ao outro. E entenderemos o que é realmente a vida: família, amor e o tipo de amigos que permitem que você seja quem você é.