Eu estava no túmulo
Messi veio andando em minha direção. Nós estávamos jogando um amistoso contra a Argentina na Austrália. O juiz tinha acabado de marcar uma falta pra gente, e eu estava parado em cima da bola junto com o William e outro jogador. Eu encostei na bola, mas eu nem ia bater a falta.
De repente, Messi vem ao meu encontro, olha direto nos meus olhos e diz: “Então…nós vamos para o Barcelona ou não?”
Foi assim. Sem explicação, nem nada. Ele virou de costas e foi embora.
Eu não tive nem tempo de pensar. Eu apenas disse, “se você quiser me levar, eu vou”.
É preciso de muita coisa para tirar meu foco do jogo de futebol, mas entre o momento em que o Messi disse essas palavras e o William cobrou a falta, tudo o que eu pude pensar foi, “Isso é pra valer? Por que ele disse isso? Meu Deus, o que está acontecendo?”
Naquela época, eu estava jogando na Liga Chinesa pelo Guangzhou Evergrande, e ninguém iria acreditar que o Barcelona tinha interesse em mim. Achei que o Messi estava de brincadeira, como se ele quisesse mexer com minha cabeça ou algo do tipo. Mas nós estávamos jogando um amistoso… então, talvez não?
Depois do jogo, dei minha camisa ao segurança e pedi que ele entregasse ao Messi. Ele voltou do vestiário da Argentina com uma camisa do Messi para mim.
Então, eu pensei. “Espera, isso é mesmo pra valer?”
Mas, depois dos jogos que fizemos na Austrália, eu voltei para a China e não ouvi nada a respeito sobre uma transferência. Um mês inteiro passou, e eu acabei esquecendo de tudo aquilo. Eu estava simplesmente aproveitando meu futebol na Super Liga. Então, em julho, nós estávamos ouvindo todos esses rumores de que o Barcelona tinha interesse em mim.
Eu liguei pro meu empresário e disse, “Boss, pelo amor de Deus, eu tô ficando louco. Só me diz se isso é pra valer ou não”.
Ele disse, “Bem, é complicado. Talvez sim, talvez não.”
Eu estava trocando mensagens com o Neymar, perguntando pra ele, “Cara, isso é sério? Você tá sabendo de alguma coisa? Eu vou ficar louco, de verdade”.
Mas o Neymar estava envolvido com a própria transferência, então ele não tinha tanta certeza.
Vocês sabem como acontecem essas transferências hoje em dia. Não dá pra acreditar de verdade em nada. Tem muita coisa envolvida, e, honestamente, eu estava curtindo meu tempo lá na China. Minha esposa e eu tínhamos uma vida incrível por lá, e eu estava jogando um bom futebol. Antes dos rumores do Barcelona, eu estava completamente em paz na China.
Em agosto, a janela de transferência estava pra fechar, e parecia que não daria certo. Tinha uma partida pelo campeonato Chinês naquele fim de semana, e nós recebemos amigos do Brasil em nosso apartamento e tudo mais.
Naquela noite, meu empresário me telefonou e disse, “O contrato está pronto. Você tem de vir pra Barcelona pra assinar”.
De verdade, não acreditei. Eu disse a ele, “É pra valer? O Barcelona já pagou? Você está de brincadeira comigo?”
Ele respondeu, “Não, não, não. É pra valer. Você tem de estar lá amanhã.”
Ah, eu contei pra vocês que eram 4h da manhã?
Bom, eram 4h da manhã.
Eu disse, “Não posso. Meus amigos do Brasil estão aqui. São 4h da manhã!”
Ele respondeu, “É o Barça. Leve os seus amigos juntos com você! Só entre no próximo avião, cara!”
Então eu arrumei minha mala e fui direto pro aeroporto, e no banco de trás do carro, enquanto observava a estrada pela janela, eu pensei comigo mesmo “Messi!”
Mas, de verdade, se você acha que minha transferência do Guangzhou para o Barcelona é uma loucura, então você não conhece toda a minha história. Esse foi o capítulo 10. Minha história completa é muito mais inacreditável.
Quando tinha 19 anos de idade, eu abandonei o futebol completamente.
Ao longo de um mês, eu fiquei em casa com depressão. Isso aconteceu lá pelos idos de 2008. O Messi estava prestes a conquistar tríplice coroa pelo Barcelona, e eu, no sofá, pensando no que ia fazer pelo resto da vida. Eu tinha acabado de chegar ao Brasil, depois de ter jogado na Lituânia e na Polônia, o que foi uma experiência traumática.
No começo, quando cheguei à Lituânia, foi muito legal. Eu jogava em Vilnius, que era uma velha cidade medieval do tipo que a gente vê nos filmes. Era muito diferente do Brasil, e eu não falava a língua, mas era um lugar muito calmo. Até que um dia, quando estava andando pela cidade com um dos meus colegas, o Rodney, um grupo de caras muito agressivos veio ao nosso encontro e….
Bom, ainda fico com raiva quando tenho de falar sobre esse dia, mas eles começaram a imitar macacos e a nos ofender…
Quer dizer, nós não estávamos incomodando ninguém. Nós estávamos apenas indo até a padaria.
Foi a primeira vez na minha vida que passei por uma experiência com o racismo como aquela. E, infelizmente, não foi a única. Nas ruas, as pessoas esbarravam na gente pra tentar provocar. Eles nos insultavam. Nos jogos, os torcedores dos times adversários faziam barulho de macacos e jogavam moeda contra a gente. Era um sentimento doentio.
Nós sabíamos que aquele não era o nosso país, então nós tínhamos de aceitar aquilo e seguir em diante. Mas ninguém merece ser tratado daquele jeito. Depois de uma temporada lá, fui jogar na Polônia, mas eu estava marcado por aquela experiência. Foi uma época bastante solitária. Eu saí do Brasil aos 17 anos com o objetivo de dar à minha família uma vida melhor, mas quando eu voltei pra casa dois anos depois eu estava completamente desiludido com o futebol.
Eu disse a meus pais, à minha ex-esposa, ao meu empresário, “Pra mim, não dá mais.”
E você sabe o que a minha ex-esposa disse para mim? É provável que ela tenha salvado a minha carreira. Ela disse, “abandonar o futebol? Mas você não sabe fazer mais nada. Você não sabe nem mesmo trocar uma lâmpada”
Eu disse, “Vou aprender! Não pode ser tão difícil assim”.
Então ela respondeu, “Mas pense nos seus pais. Não seria justo para com eles, depois de tudo que eles fizeram por você”.
Ela estava certa. Desde os meus cinco anos de idade, eu vivia correndo pelas ruas da Zona Norte com uma bola de futebol, e minha mãe tem estado comigo em todas as situações. Quando eu era moleque, gostava tanto de jogar bola que nem mesmo conseguia pegar no sono à noite. Eu ficava olhando pra parede, pensando: “Caramba, mal posso esperar o sol nascer pra sentir a bola nos pés de novo”
Depois de minha experiência na Europa, eu perdi o amor que sentia pelo futebol. Mas eu sabia que realmente machucaria meus pais se eu desistisse do futebol, então eu decidi jogar mais uma temporada. Eu retomei minha carreira do zero, com o Pão de Açúcar, na quarta divisão. Vamos dizer assim: não é necessariamente a Champions League. Nós viajávamos oito horas para encarar os jogos, e o início das partidas acontecia com temperatura a 40 graus. No começo, eu disse a mim mesmo, “Você não vai conseguir. Você deveria aprender como construir casas ou algo do tipo, porque assim não vai funcionar”.
Mas aos poucos, devagarinho, bem devagarinho… treinando e jogando todos os dias, eu apaguei a negatividade e estava feliz de novo. Saltei da segunda para a quarta divisão e então fui jogar na primeira divisão com o Corinthians.
Foi lá que eu conheci o homem que mudou a minha vida e se tornou uma espécie de segundo pai para mim – Professor Tite. Fico emocionado quando falo dele, porque nós somos ligados de um jeito que é muito mais do que futebol. Ele me olhava direto no olho, sabia quando eu estava bem, assim como quando eu não estava tão bem. A gente não precisava dizer nenhuma palavra.
Tem até uma história engraçada nem todo mundo sabe e que explica a nossa relação. Claro, nós tivemos um ano incrível em 2011, quando nós nos sagramos campeões brasileiros. Então, havia propostas chegando para os nossos jogadores, e a Inter de Milão queria me contratar.
No entanto, foi uma situação muito maluca quando o meu empresário me telefonou e me disse que a Inter precisava de uma resposta em 15 minutos. Isso era pouco antes do treino começar, daí eu corri até a sala do Tite e contei a ele o que estava acontecendo, e eu disse, “Professor, eu não sei… É a Inter. É um dos maiores clubes do mundo”.
E o Tite disse, “Olha, a decisão é sua. É claro que eu gostaria que você ficasse, mas é a sua vida. Vai lá no vestiário e pensa nisso. E quando você decidir, vai pro campo. Se você for ficar, faça este gesto (o sinal do joinha); se você for sair, faça este outro gesto (polegar pra baixo). Assim eu vou saber.”
Eu liguei pro meu empresário e contei da minha decisão, e ele disse, “Você tem certeza?”
Eu respondi, “Certeza.”
Entrei no campo, e quando o Tite me viu, esperei por dois segundos só pra criar um suspense, e daí eu fiz o joinha que eu iria ficar.
E ele suspirou e disse, “Meu Deus, pensei que você fosse sair”.
Trabalhei por quatro anos com o Tite no Corinthians, e foi uma época de ouro pra minha vida e pra minha carreira. Quando eventualmente fui jogar pelo Tottenham na Premier League, eu atravessei uma segunda temporada complicada, e muitas pessoas perderam esperança em mim. Mas uma pessoa que sempre acreditou em mim foi o Tite.
Na verdade, gostaria de deixar clara uma coisa sobre o tempo que joguei pelo Tottenham. Eu realmente não posso dizer nada de ruim sobre o clube, ou sobre a equipe técnica, ou mesmo sobre o presidente. É bem verdade que foi um momento ruim para mim como jogador, e, sim, houve momentos em que eu não queria sair do meu apartamento em Londres porque eu estava estressado por não ser escalado para jogar. Para um jogador de futebol, não entrar em campo é o mesmo que para um peixe ficar fora d’água. Foi como se eu estivesse sufocando. Por um motivo que desconheço, eu estava fora dos planos do Mauricio Pochettino. Eu não me encaixava na filosofia dele, acho. Mas nós nunca nos desentendemos. Um dia, fui até o presidente do clube e disse a ele que, caso o Tottenham recebesse uma oferta próxima do que eles tinham pagado por mim, eu gostaria de ir embora. Eles foram muito profissionais a esse respeito.
Na janela de transferências seguinte, o Tottenham recebeu uma oferta do Guangzhou Evergrande, eu pensei, “Por que não?”
Meus amigos pensaram que eu tinha ficado maluco.
Eles me escreveram, dizendo: “China? O que você vai fazer na China?”
Eu respondi, “China, cara! Vamos ver”.
Eu vivo de acordo com o que o Dani Alves uma vez me disse, quando eu estava passando por um momento difícil na minha vida.
Ele falou, “Nós somos apenas moleques brincando na chuva, cara. Se der errado, e daí?! É o fim do mundo?! Não, cara. A gente encontra outro lugar pra brincar”.
Eu venho jogando futebol ao longo da minha vida inteira, ao redor do mundo todo, e uma coisa que aprendi é que a coisa mais importante é gostar do seu trabalho. Você tem de ir dormir à noite e ficar olhando pra parede, pensando, “Caramba, mal posso esperar o sol nascer pra sentir a bola nos pés de novo”.
Só dá pra jogar o melhor futebol nessas condições. Se você estiver jogando na melhor Liga do mundo e se sentir miserável, o que está fazendo ali? As pessoas disseram que a minha carreira estava acabada quando eu fui para o Guangzhou Evergrande, mas… bem, quando eu estava andando de ônibus na quarta divisão no Brasil, ninguém sabia quem eu era. Eu estava no túmulo, cara. Estava morto pro mundo.
Então eu estava indo jogar na China com o Luiz Felipe Scolari como técnico? Isso soa tão ruim assim? Pra falar a verdade, eu estava feliz com a minha decisão.
É claro que, na época, eu não estava pensando em jogar outra Copa do Mundo. Definitivamente, não estava sonhando em jogar pelo Barcelona. Meu objetivo era jogar um bom futebol, todos os dias. Quando o Tite assumiu a Seleção Brasileira em 2016, eu fiquei extremamente feliz, porque ele merecia. Quando nós estávamos no Corinthians, eu costumava dizer a ele, “Professor, você sempre fala de jogadores que estão merecendo. Bem, eu sei que você merece ser técnico da Seleção Brasileira um dia”.
Apesar disso tudo, honestamente, eu não esperava que ele fosse me convocar.
Então, um dia, o Tite enviou o filho dele, Matheus, até a China pra me ver jogar, porque nós estávamos muito bem por lá, ganhando títulos, e eu acho que ele estava curioso, tipo, “O que está acontecendo com o Paulinho na China?” E no final das contas foi tudo muito engraçado porque, quando o Matheus chegou, eu disse pra minha esposa, “Por favor, cuide para que o Matheus chegue até o jogo OK. Porque o tráfego é maluco às vezes e pode ser muito confuso chegar até o estádio e eu preciso que ele me veja jogar.”
Mas, por alguma razão, não havia táxis disponíveis, então eles chegaram no jogo de tuk-tuk. Foi uma loucura. Naquele dia, eu não tentei fazer nada de especial. Eu simplesmente joguei como eu sempre jogo, porque eu pensei. “Eles me conhecem”.
Depois daquele jogo, eu aguardei… e aguardei… sem criar nenhuma expectativa. Então, algumas semanas depois, houve uma convocação da Seleção Brasileira para as Eliminatórias da Copa do Mundo, e o meu nome foi chamado.
Todo mundo na imprensa disse, “Mas como o Tite pode chamar o Paulinho? Ele está na China!”
O Tite me deu uma chance para mostrar ao mundo que eu não estava morto. E acho que mostrei o meu valor muitas vezes ao longo das Eliminatórias. No futebol, as coisas acontecem numa fração de segundo. Eu não sou o jogador mais técnico, mas essa é a área que eu sempre me destaquei. Alguma coisa acontece, e bang… Você não pode sequer pensar. Você tem de estar lá. Você tem que aproveitar isso.
Tinha uma história que o Tite gostava de contar nos treinamentos. Ele olhava para todos aqueles jogadores incríveis – Neymar, Coutinho, Gabriel Jesus, Marcelo – e ele diz, “Vocês têm sempre de estar prontos para os rebotes, ainda que nós saibamos que a bola vai dar um jeito de encontrar o Paulinho”.
Eles brincavam que a bola me seguia como mágica.
E eu dizia, “Não, Professor! Você sempre fala em merecimento. Você tem que estar lá pra marcar!”
Quando fui convocado pela Seleção Brasileira pra jogar esta Copa do Mundo, foi um momento de alegria não só para mim, mas, também, para a minha família inteira.
Mas eu gostaria de compartilhar aqui uma coisa que muitas pessoas não sabem. Muitas pessoas veem de fora e dizem, “Uau, você foi da China pro Barcelona. Que história incrível. Que milagre”.
Mas, na verdade, quando eu assinei com o Barcelona, aquele foi um dos momentos mais dramáticos da minha vida. Naquela época, minha esposa estava grávida de gêmeos. Era pra eles nascerem em dezembro, pouco antes do Natal. Só que um dia, no mês de outubro, minha esposa me disse que ela estava sentindo muita dor e que ela precisava que eu a levasse para o médico imediatamente. Ela sempre se recusou a ir ao hospital por qualquer coisa, então eu sabia que algo estava errado.
Quando nós chegamos no hospital, eles fizeram uns exames e a levaram diretamente para a UTI. Nossos gêmeos queriam vir ao mundo, mas tinham se passado apenas 28 semanas. Era extremamente perigoso. Os médicos queriam que ela esperasse por mais duas semanas antes de dar a luz para que, nesse tempo, os pulmões dos bebês pudessem se desenvolver.
Eu me lembro de ligar pros meus pais, perguntando, “O que vai acontecer? Eles vão viver?”
Foi assustador.
Mas minha esposa foi uma lutadora. Ela segurou por 7 dias… 14 dias… 20 dias.
Por muitas noites, eu dormi na poltrona da sala. Mas durante o dia, eu tinha de continuar jogando futebol. Em 30 de outubro do ano passado, tinha um jogo contra o Olympiakos na Grécia. Não havia nada que eu pudesse fazer. Tive de entrar no avião.
Naquela noite, eu recebi um telefonema da minha esposa, dizendo que nossa filha, Sofia, e que nosso filho, Zé Pedro, nasceram.
Ela segurou por 21 dias. Eu chorei muito. Eu queria ter estado lá para vê-los chegar ao mundo. Mas eles estavam aqui. É isso que importa.
Os dois precisaram ficar numa incubadora no hospital por mais dois meses. Eles ainda não eram fortes o bastante para vir pra casa. Naquele momento, o futebol não parecia tão importante. As pessoas estavam falando quão bem eu vinha jogando pelo Barcelona, mas, no meu íntimo, foi um período muito difícil para mim. Houve dias em que eu me levantava pra treinar e ficava pensando nos meus filhos conectados a tubos no hospital.
Tenho de dar o crédito para a minha esposa. Ela foi uma heroína. Quanto a mim, eu apenas jogava futebol. Ela teve de lutar pelas vidas dos nossos filhos. É inimaginável a força que uma mãe pode encontrar quando seus filhos estão em perigo.
No dia 23 de dezembro do ano passado, Sofia e Zé Pedro vieram pra casa.
Esse foi o maior presente de natal que já recebi.
As pessoas ouvem a minha história e dizem, “Cara, você foi da China pro Barcelona. Você está indo pra Copa do Mundo. Como você pode explicar isso?”
Eu não sei. O futebol é cheio de altos e baixos. É imprevisível. De muitas maneiras, ainda me sinto como o jogador que eu era quando fui atuar na Super Liga. Ir da China para o Barcelona é incrível, mas não é um milagre. Não é vida ou morte. É apenas futebol.
Um milagre é quando você volta pra casa depois do futebol, e não importa qual foi o resultado naquele dia, os seus filhos olham pra você, como que dizendo, “Olá, Papai”.