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O Medo é Meu Amigo
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Quando eu era criança, morando em Batistini, lá em São Bernardo do Campo, tinha medo do escuro.
Tô falando sério, pessoal. Sem brincadeira. Confia! Não tô de historinha.
Eu tinha medo do escuro.
E não só quando era uma criança muito pequena. Estou falando dos 10 ou 11 anos.
Meus pais estavam lá, em nossa casinha, todas as noites, junto com os meus sete irmãos e irmãs. Então eu estava seguro. Mas eu ainda tinha medo quando a noite chegava. Na verdade, não era da escuridão em si... era mais sobre não saber o que poderia acontecer comigo, de não ser capaz de estar no controle do que me cercava. Lembro que às vezes até fazia xixi na cama porque tinha medo de levantar e ir ao banheiro no escuro.
Pra você ter ideia do quanto isso me afetou.
Eu era apenas uma criança assustada. Pode rir de mim se quiser. Mas é a real. Naquela época, era assim.
É claro que, à medida que fui crescendo, esse medo do escuro foi desaparecendo aos poucos. Mas a ideia por trás disso, de querer sempre estar no controle da situação? Ah, isso nunca foi embora. E o caminho que segui para me tornar um lutador está realmente ligado a isso. Quando criança, nunca fui de seguir a manada. Eu não queria ficar brincando o dia todo ou mesmo lendo pilhas de livros. Eu queria escolher meu próprio caminho. Queria estar no controle.
Então, por exemplo, de onde eu venho, no Brasil, todo mundo joga futebol. Se você é menino e não joga futebol – não ama futebol – as pessoas vão te olhar e pensar que tem algo errado com você.
Bem, eu fui esse garoto na minha infância.
Eu nunca quis jogar bola. Então eu não joguei.
Mas, ao mesmo tempo… como resistir completamente? No Brasil? Não tem como… É impossível resistir quando as pessoas insistem, pedindo pra você jogar. Quando eles ficam implorando pra você jogar. Então, uma hora, você diz sim. E a única vez que aceitei eu era adolescente, e uns caras da vizinhança me convenceram a entrar em um jogo. No começo, eu disse não. Mas sei lá como eles me convenceram.
Quando o jogo começou… não foi nada bonito. Eu já era grande naquela época, mais ou menos da mesma altura que tenho agora, só que era magro e não tinha tanta habilidade quanto os outros jogadores. Então, eu ficava correndo tentando pegar a bola. E, nunca vou me esquecer, tinha um cara no outro time que eu devia marcar. O cara era grande, mais velho. Devia ter 25 ou 26 anos e era açougueiro. Daquele tipo de açougueiro raiz, que carregava grandes pedaços de carne nas costas. Ele era muito forte.
Então, esse açougueiro e eu continuamos lutando pela bola durante todo o jogo. Nos derrubamos algumas vezes, mas nada muito sério. Até que teve uma hora que ele roubou a bola de mim, e eu tentei tomar de volta, e foi então que eu dei o rapa e ele caiu.
Acho que naquele momento ele chegou no limite porque me deu um chute forte na coxa e depois se levantou pra me bater.
No começo, fiquei nervoso por causa do tamanho dele. Mas eu também estava bravo porque ele resolveu partir pra cima de mim... então, comecei a bater nele. Começou um empurra-empurra, e todos os outros jogadores correram para nos separar. Alguns segundos depois, o açougueiro se acalmou. Mas eu?
Sem chance.
Eu queria mais.
Chama!
Então, mesmo depois de soltarem o açougueiro, todos tiveram que me segurar. Por uns 10 minutos. Talvez mais.
O tempo todo eu ficava: “Me deixa. Quero bater nele!”
Foi então que o açougueiro olhou pra mim e gritou: “Deixa esse cara vir, mano!”
Péssima ideia.
Os caras me soltaram. Daí, fui até o açougueiro e dei um soco na cara dele.
Os outros jogadores não conseguiam acreditar. Ele era muito maior, mais forte e mais velho que eu. Mas isso não importava. Eu não iria arregar.
Até hoje me lembro de como as pessoas de lá tinham um olhar de espanto, de surpresa. E então eles disseram: “Pô, velho… talvez você devesse ir para a academia. Para aprender a lutar de verdade.”
Eu só encarei eles. De cara fechada. Nem respondi….
Eu falei pra vocês que não queria jogar futebol.
Um dos principais motivos de eu não ter praticado esportes quando criança era que estava sempre ocupado trabalhando. Um trabalho de verdade. Desde os meus 12 anos.
Também nunca assisti muita TV, ou não vi muitos filmes, ou não ouvi música, ou qualquer coisa assim.
Quando criança, eu brincava de fubeca com bolinha de gude na rua, ou brigava com meus amigos, ou às vezes jogava videogame. Mas a partir dos 12 anos comecei a viver uma vida adulta. Virei um trabalhador. Eu precisava. Nossa cidade não era muito rica, é um lugar humilde, e minha mãe e meu pai não tinham muito dinheiro. Eles estavam sempre trabalhando, mas nunca tínhamos muito. Me lembro de não querer sobrecarregá-los pedindo coisas que não podiam pagar. Eu queria comprar minhas coisas sozinho.
Mesmo por volta dos 8 ou 9 anos, eu já fazia uns bicos pra ganhar alguns trocados ou vendia lanches em restaurantes. Às vezes, eu lavava peças de carro em uma oficina mecânica em São Bernardo. Ou eu e meu irmão íamos pra roça e cortávamos chuchu ou bambu para vender. Então, quando completei 12 anos, tinha essa borracharia bem perto da nossa casa, onde meus irmãos e eu íamos brincar... eu conhecia um dos caras que trabalhavam lá, ele comprou a própria borracharia em uma cidade próxima. Assim que ouvi isso, pedi que ele me desse uma oportunidade para trabalhar.
“Não, não”, ele sempre dizia. “Eu não tenho nada para você.” Então, esperava uma semana e perguntava novamente. “Ainda não. Desculpe.”
Mas então, um dia, recebo uma ligação. Ele diz que posso passar na loja de pneus que ele administra e que pensaria em me deixar ajudar. Antes que eu percebesse, ele estava me ensinando como calibrar pneus para as pessoas que iriam chegar. Eu ganharia R$ 1,00 a cada calibrada como gorjeta. E o patrão nem precisou me pagar! Algumas semanas depois, ele me contratou integralmente para trabalhar com ele por R$ 5,00 por dia enquanto eu estava na escola — meio período, de manhã.
Lembro que, no meu primeiro dia de trabalho, ele me ofereceu R$ 5,00 para retirar uma câmara de ar que ficou presa na parte interna de um pneu. Isso é uma coisa muito difícil de fazer (as pessoas que trabalham com pneus sabem disso). A borracha fica muito quente, e quando o pneu esquenta a cola faz com que ele grude. Pode ser perigoso. E você tem que ser muito forte pra fazer isso.) Mas eu digo OK, e então meu chefe sai por alguns minutos. Eu retiro a câmara de ar na minha primeira tentativa e vou direto para a lanchonete. Quando ele voltou, ele não conseguia acreditar. Eu era apenas uma criança. Ele não achava que teria que pagar. Mas naquele dia, mostrei a ele que eu podia dar conta do trabalho.
O lugar abria às 7h da manhã, então, eu levantava cedo, subia na bicicleta e pedalava 15 minutos pra chegar lá. Nos dias em que não tinha bicicleta, eram 40 minutos de caminhada. Já tinha caminhões esperando quando eu chegava.
Eu trabalhava nos pneus a manhã toda, usando ferramentas grandes. Quase sempre, não precisava da ajuda de ninguém. Eu era só um garotinho magrelo dando duro no trabalho. Eu não gostava de estudar, então, adorava poder ficar parte do dia na loja em vez de estudar. Então, quando não tinha aula, eu ficava trabalhando o dia todo. E se eu terminasse meu trabalho mais cedo, não iria pra casa. Ficava na loja conversando ou jogando dominó até tarde, 10 ou 11h da noite.
E foi assim que comecei a beber.
Tinha um bar ao lado da loja. E outro a 30 metros da estrada que tinha uma cachaça muito boa. Outro, a cerca de 100 metros, tinha sinuca. Um desses lugares, numa rua próxima, tinha cerveja mais gelada que os outros bares.
Todos com quem trabalhei iam a esses bares quando o dia terminava. Então, pra falar a verdade, eu nem pensava muito naquela época, mesmo tendo apenas 12 anos. Eu acompanhava todo mundo e fazia o que todos os caras que trabalhavam comigo faziam.
No começo, eu gostava mais de cachaça, então, comecei a beber um pouquinho nos dias de trabalho. Então, a partir daí, tudo fica um pouco confuso de como isso foi acontecendo cada vez mais ao longo da minha adolescência. Acho que dá pra dizer que foi a rotina, o ambiente.
Quando eu tinha 16 anos, a situação estava muito ruim. Eu me lembro que normalmente quando eu calibrava um pneu, o cliente me dava uma gorjeta. Mas, às vezes, as pessoas não davam em dinheiro – em vez disso, diziam: “Paguei uma pra você lá no bar”. E então… fazer o que, né?? Eu bebia.
Cada vez mais, eu encontrava motivos para beber. Foi aos poucos e ninguém notava a não ser que estivesse prestando muita atenção, mas eu percebi.
E era simplesmente como se eu não pudesse evitar.
Mais ou menos um dia depois de dar um soco no açougueiro em campo, decidi resolver o problema com minhas próprias mãos e me encontrar com o treinador que todos chamam de Mestre Ninja.
Ele trabalhava com caras em uma academia pequena perto da minha casa. Era um barraco de madeira, nada demais. Eu tinha em torno de 18 anos na época e estava ficando mais forte, tinha acabado de esmurrar um cara mais velho que me xingou, então, pensei que talvez devesse ver qual era a desse treinador. Nossa primeira conversa foi nessa linha:
— Ninja, eu quero lutar. Como nos filmes. Você pode me ensinar?
— Não.
— Por que não?
— Você não quer lutar. Você quer treinar.
— Não, não… eu quero lutar!
Ele, então, apenas balançou a cabeça lentamente de um lado para o outro. E olhou pra mim em seguida, dizendo:
“Você vê aqueles caras ali?”, ele disse, apontando para o ringue.
“Eles estão treinando. Eles estão trabalhando. Eles querem se preparar, querem ser os melhores. Então, eles estão treinando. Eles estão aprendendo. Aprendendo a lutar.
Eu não fazia ideia do que ele estava falando. Eu só queria lutar. Mas ele me disse que teria uma competição de Kickboxing, um campeonato local, dali a 30 dias. E falou que era por isso que os caras que ele apontou para mim estavam trabalhando tanto.
“Beleza”, eu disse a ele, “então eu quero lutar nesse campeonato!”
Chama!
Ele olhou pra mim e repetiu a palavra treino, me dizendo que eu não poderia entrar em uma competição sem me preparar antes. Então, dei ao Ninja parte do salário da borracharia para treinar com ele por 30 dias, e paguei pelas calças e camisa que ele me fez comprar. Fui à academia todos os dias e segui o que ele me disse pra fazer. Aí, 30 dias depois, eu lutei num campeonato no Baby Barioni contra um cara que já treinava há muito tempo. Era um lutador que todo mundo conhecia.
Essa foi a última luta do evento. E naquele dia, todos da nossa academia perderam….
Todos menos eu.
Eles levantaram minha mão como campeão.
Naquela noite, me senti como um rei.
Mas quando acordei na manhã seguinte?
Eu senti que ia morrer! Cara, deixa eu te falar: aquele lutador me deu uma surra. Minhas pernas, meus braços, tudo doía. Eu posso ter vencido, mas ele me machucou pra valer.
Então… eu desisti.
Foi como se eu dissesse: Não, obrigado. Para mim, chega. Já vi o suficiente.
Treinei, lutei e venci… e agora me aposentei!
Uma luta.
Fim.
Nos três anos seguintes, tudo que fiz foi beber.
Sem brigas. Nada de esportes, na verdade. Sem treinamento. Só bebendo. Três anos seguidos de álcool.
Comecei a me preocupar muito porque percebi que a bebida... estava atrapalhando minha vida em geral. Sou uma pessoa muito disciplinada. É da minha natureza. Faz parte de quem eu sou. Mas por causa da bebida eu sempre chegava atrasado aos lugares. Ou cometia erros que não teria cometido antes. Isso me incomodava demais.
Assim, depois de anos em uma situação que havia se tornado rotina, eu estava tentando descobrir o que fazer e, por alguma razão, pensei em lutar novamente. Não para ganhar dinheiro ou para ganhar a vida. Era mais uma saída.
Uma forma de parar de beber.
A primeira coisa que fiz foi voltar para ver o Ninja. Ele estava em uma academia nova, um lugar maior, e quando eu apareci, lembro que era um dia de sparring. Eu não tinha malhado nada, mas tinha dois marmanjos na academia que estavam treinando com ele, e perguntei se poderia lutar. O Ninja me disse que eu precisaria treinar antes .
“Treinando, você deve estar sempre treinando!” Mas eu fiz isso sem treino mesmo.
E venci os dois.
Recém-saído da rua, entrei na academia e derrotei os melhores caras.
O Ninja meio que se impressionou com isso. Mas também, claro, foi tipo: “Imagine o que você poderia fazer se estivesse treinando!!!!”
Então, na semana seguinte, chega o dia do sparring e aqueles dois caras... sumiram. O Ninja vem até mim e diz que eles não apareceram. E foi a mesma coisa na semana seguinte. Eles não queriam brigar comigo depois daquela primeira vez. Eles desapareceram.
“Preciso levar você para outro lugar”, o Ninja me disse. “Onde as pessoas não vão ter medo de lutar com você. Para alguém que pode te ajudar a melhorar”. E foi assim que conheci meu primeiro verdadeiro treinador, Belocqua Wera. (Foi ele quem me deu o apelido de Poatan e me ajudou a entrar em contato com minha ancestralidade indígena. Isso me ajudou a me conectar mais com minha herança e meu lado espiritual.)
Quando cheguei à academia do Belocqua, de início, foi uma história familiar. Tinha um cara treinando lá que era campeão paulista de kickboxing amador, e ele me fez lutar com aquele cara de imediato, como se fosse um teste, logo no primeiro dia. Ele me deu as roupas que eu tinha que vestir, me amarrou com fita adesiva e então entrei e... fiquei na minha. O outro cara tinha mais técnica, fizemos uma luta parelha. Na semana seguinte, aquele cara, a mesma coisa... ele sumiu.
A partir daí, o Belocqua me deu uma atenção especial. Ele me conseguiu uma bolsa para treinar na melhor academia de São Paulo. Ele transmitiu todo o seu conhecimento e experiência. Ele colocou tudo o que tinha para me transformar de um cara grande e forte em um lutador.
Eu treinava muito naquela época. Estava cada vez melhor no kickboxing. Mas eu ainda estava bebendo. Bastante. E eu sabia que isso me impedia de dar o meu melhor. Continuei dizendo a mim mesmo que precisava parar. Mas, pra falar a real, naquele momento, eu não queria parar. Só queria ser capaz de controlar o quanto bebia, tá ligado?
Lembro que tentei parar três vezes.
Na primeira vez, disse que ia ficar longe da bebida por 30 dias. Deu certo! Consegui até o fim. Então, me convenci de que poderia controlar meu hábito de beber. E isso tornou as coisas ainda piores. Quando chegou o 30º dia, bebi como nunca. Muito mais do que antes. Então, mais ou menos um ano depois, eu disse: “tá, vou parar por três meses!” E novamente funcionou. Consegui até o fim. Mas assim como da última vez, quando bateu três meses... bebi o suficiente para compensar aquele período em um só dia.
Enquanto isso, eu treinava e tentava melhorar como lutador. Mas a bebida só piorava. A certa altura, eu disse: “Seis meses! Sem bebida por seis meses!!!” A mesma coisa aconteceu no final: mais bebida, como antes.
Naquela época, eu já tinha ganhado alguns campeonatos amadores de kickboxing. Eu estava vencendo todo mundo. Começando a fazer um nome pra mim. Mas dessa última vez que tentei parar de beber, me lembro de voltar ao álcool depois de seis meses e de ter que lutar contra Jason Wilnis.
Foi em São Paulo e perdi.
Eu tinha 25 anos na ocasião. Era forte. Um bom lutador. Mas depois que perdi aquela luta, entendi que, se não parasse de beber, perderia outras vezes.
E eu odeio perder.
Odeio perder e odeio não estar no controle.
Parei de vez quando tinha 26 anos.
Sem medicamentos. Sem reabilitação. Sem longas sessões de terapia.
Eu trabalhei muito. Foi difícil. Tive que pegar pesado comigo mesmo.
Mas por mais que eu fizesse isso, quisesse mudar e tentasse me esforçar, não foi suficiente.
Só a força de vontade não resolveria.
Na boa, você quer saber o que foi?
Foram as pessoas que me amavam. Eu queria que eles ficassem orgulhosos de mim.
Ainda me lembro de todas aquelas vezes em que parava de beber por um mês ou dois. Sempre ia até minha mãe e contava o que estava acontecendo, que tinha alcançado meu objetivo.
“Mãe, adivinha?! Eu consegui!
Toda vez, eu falava isso.
“Mãe, seis meses! Acredita? Parei de beber!"
Mas o que ela me falou da última vez, daquela terceira vez... realmente me pegou. Ela me olhou bem nos olhos, muito séria, e me disse….
“Você disse isso das outras vezes também.”
Essas palavras arrancaram o coração do meu peito. Só de ouvir minha mãe falar isso.
Dá pra dizer que ela não acreditou. Que eu tinha feito coisas para que ela não acreditasse que aquela decisão era pra valer. Detestei saber que fiz isso, e que ela não confiava mais em mim.
Mais do que nunca, eu queria mudar aquela situação, levar a minha palavra a sério. Para assumir o controle. Queria que minha mãe acreditasse em mim. Então, me dediquei de coração depois que ela disse aquilo.
Eu saía e ficava com amigos, e ela me via depois e percebia que eu não estava mais bebendo. Minha mãe reparou que não era a mesma coisa. Que não era como todas aquelas outras vezes. E aconteceu a mesma coisa com outros familiares e amigos. As pessoas que se importavam comigo estavam percebendo. Foi tipo: “Uau, o Alex realmente parou de beber?” ou “Alex finalmente tomou jeito, é isso?”
Foi tão bom ouvir essas coisas. Saber que as pessoas estavam começando a acreditar em mim. E isso me fez querer continuar seguindo essa nova rota. Isso me tornou mais responsável.
Eu não poderia deixar acontecer de novo, alguém perguntar à minha mãe sobre mim e ela ter que dizer: “Bem, é verdade... ele teve uma recaída. É a mesma coisa de novo”.
Eu estava com medo de decepcionar aquelas pessoas novamente. Eu não poderia mais fazer isso. Então parei.
E agora, aqui estamos, 11 anos depois.
Não parei de beber para ter a chance de me tornar campeão mundial. Mas posso dizer com certeza que... não teria como chegar onde estou hoje se tivesse permanecido no caminho que estava trilhando.
Depois de um tempo fazendo boxe tradicional, e depois passar tanto tempo no kickboxing… entrar no MMA, com o UFC, foi diferente. Tipo 10 níveis acima. Eu poderia lutar boxe e kickboxing, poderia vencer muitos confrontos e ainda beber o tempo todo. Não que eu devesse fazer isso, mas poderia.
Mas quer saber? Eu não poderia estar neste nível se agisse como naquela época. É muito difícil. Todo mundo é bom demais. Se você não estiver focado, não for disciplinado, você vai se machucar. Ou talvez vai acontecer algo pior.
Às vezes, nem consigo acreditar que é assim que eu ganho a vida, sabe? É engraçado, tem alguns momentos que estou em um evento e... isso é difícil de descrever, ou colocar em palavras, mas às vezes eu olho para os lutadores entrando no octógono, e na minha cabeça fico pensando: o que diabos eles estão fazendo? Esses caras são loucos. Eles são pessoas perturbadas. Eles vão se matar.
É como se eu estivesse no teto, olhando pra baixo, ou fosse uma mosca na parede vendo tudo aquilo, em vez de alguém que vive da luta.
Então, é como se alguém estalasse os dedos e eu saísse dessa situação e voltasse para a Terra e percebesse….
Esse é VOCÊ, cara!
Isso me pega todas as vezes.
Você também é essa pessoa!
Se esses caras são loucos, se estão perturbados….
Então você é o quê?
Mas, sim, quando passei do kickboxing para o MMA, percebi na hora que era um nível completamente diferente. E devo dizer: devo muito a Izzy Adesanya, não vou mentir. Esse cara, quero dizer... Deus o abençoe.
Antes do UFC, antes de ele ser campeão, lutávamos kickboxing. E ele era muito bom, muito habilidoso. Mas venci ele nas duas vezes que lutamos, uma na China em 2016, e outra em São Paulo, em 2017, por nocaute.
Na época, eu não tinha ideia do que ele iria se tornar. Eu apenas sabia que tinha ganhado dele. Aí, três anos depois, quando eu estava conversando sobre a transferência do Glory para o UFC, ele se torna campeão dos médios e faz um vídeo falando de mim. Ele me chama de ninguém. Diz que sou apenas um cara em um bar, falando merda sobre como eu costumava ser bom no kickboxing, e isso é tudo que serei.
Aquele vídeo foi como acender um fusível.
Isso me motivou muito. Na época, eu não tinha certeza se acabaria vencendo muitas lutas no UFC, ou se seria campeão, mas tinha certeza absoluta de que eu não terminaria meus dias sendo aquele cara que ele disse que eu seria para o resto da vida.
O que ele disse... só aumentou ainda mais a probabilidade de eu ter sucesso no UFC. E o burburinho que aquele vídeo causou permitiu que mais pessoas soubessem, de imediato, quem eu era. Isso fez com que eu pudesse subir de patamar.
Quando cheguei lá, sabia que poderia ser campeão no UFC.
Eu sabia que tinha o que era preciso. E era mais do que só ser grande, forte ou rápido. Mais do que apenas… treinar!!! Uma parte importante do que me permitiu ser campeão é que ainda tenho dentro de mim o mesmo medo que existia quando eu era criança em Batistini. Não é mais um medo do escuro, mas ainda é um medo de não ser pego de surpresa, ou de me colocar em uma situação que não consigo controlar.
Tenho medo de ser atingido. De me machucar durante uma luta. E acredito esse medo me ajuda. Esse medo é meu amigo.
Porque se você tem medo e vê um fio desencapado, você sabe que tem energia ali e que pode tomar um choque a qualquer momento. Se você estiver com medo, não será surpreendido.
Por outro lado, se você não tem medo de levar porrada, posso te garantir uma coisa: você vai levar uma porrada. Forte. E vai ser nocauteado. Porque você estará desatento.
Esse não sou eu. Nunca sou pego de surpresa.
Tenho muito medo de ser nocauteado. Não tenho nenhum problema em te dizer isso. Pode rir se quiser. É a realidade.
Mas a chave é… esse medo? Eu sei como controlar isso.
É tudo uma questão de estar no controle. Essa é a parte mais importante.
Algumas pessoas, quando ficam com medo, entram em pânico ou perdem os sentidos. Isso é muito perigoso. Isso pode piorar muito as coisas. Não é o meu caso. Comigo é o contrário. Conheço minha mente e meu corpo bem o suficiente para saber que qualquer medo que sinta é normal. Que pode ser usado para me ajudar a estar no meu melhor. Isso me dá a chance de me defender melhor, de manter a concentração e manter o controle total da minha situação.
Foi isso que você viu naquela luta do ano passado contra o Jamahal Hill. Era disso que se tratava toda aquela coisa de dispensar a intervenção do Herb Dean, indo direto ao ponto.
Se você voltar e assistir de novo, vai ver que eu nem olhei para a mão do árbitro quando ele entrou depois que recebi aquele golpe baixo. Não consegui olhar. Não.
Não quis arriscar algo inesperado vindo do meu oponente se desviasse o olhar. Não quis me colocar potencialmente em uma situação de desvantagem. (É como andar pela casa no escuro quando criança. Não, obrigado!)
Percebi que Herb iria parar a luta, mas não era isso que eu queria. Não sentia muita dor. Não precisei parar nem de tempo para me recuperar. Então, por que deveríamos parar? Foi no começo da luta. Eu tinha minha estratégia. Eu estava no controle. Sabia o que precisava fazer e estava pressionando o meu adversário.
Por que eu abriria mão desse controle?
Por que eu permitiria que meu oponente descansasse ou tivesse a chance de pensar mais? Talvez isso desse a ele tempo para voltar e ajustar as coisas. O controle então se afastaria de mim e passaria a seu favor.
Não, obrigado.
A razão pela qual nocauteei Jamahal logo depois disso não é porque sou forte. Ou porque sei preparar e acertar um soco. E não é por causa de algum espírito ou energia especial ou poder vodu, ou o que quer que algumas pessoas digam a meu respeito. Foi por causa do meu medo e do meu foco, e de nunca querer abrir mão de estar no controle.
É isso que me permite fazer o que faço neste nível.
Muitos anos depois, é uma loucura pensar no quão longe cheguei desde que era criança. Da casinha de São Bernardo do Campo, dos botecos de esquina com a cachaça da boa, do Mestre Ninja e assim por diante. É uma loucura saber que, se não fosse aquele jogo de futebol de bairro há 20 anos, nem mesmo seria lutador, muito menos um campeão mundial.
Na verdade, se não fosse aquele jogo, tenho quase certeza de que ainda estaria na borracharia calibrando pneus o dia todo.
Mas você quer ouvir uma história engraçada? Há alguns anos, logo depois de vir para o UFC, voltei pra casa e visitei aquela borracharia. Só para conversar com os caras e relembrar um pouco dos velhos tempos. Então, estou sentado lá na frente conversando, revivendo lembranças do passado, falando besteira com os caras. E, enquanto isso, para um carro.
É um carro normal, aleatório.
Um cara sai com um capacete de bicicleta. Ele está vestindo shorts curto. E a camisa justa. Aquela roupa de ciclista. Ele pega a bicicleta, vai até a bomba e começa a encher os pneus.
Ninguém dá atenção ao que está acontecendo.
Mas então, me pego reparando nesse cara... e algo nele está me fazendo olhar novamente. Olhe mais de perto. Algo nele é familiar. Mas não consigo saber o que é. Então, continuo olhando — inclinando a cabeça para o lado, apertando os olhos, realmente tentando descobrir de onde conheço esse cara.
E, claro, como eu estou fazendo isso... agora ele começa a olhar pra mim.
Como se fosse um filme.
Chegamos a desviar o olhar, mas então acabamos... eu olhando pra ele, e então ele olhando pra mim de volta, repetidamente.
Aquilo estava me deixando louco. Como….
Quem é essa pessoa?!?!? Juro que o conheço de algum lugar. Quem é ele?!?!?
Então, finalmente, depois do que pareceu uma eternidade, eu percebi.
A PORRA DO AÇOUGUEIRO!
Hahahahaha.
Olhei novamente só pra ter certeza, e sim, era ele. Aquele maluco em quem dei soco na cara há duas décadas, durante uma partida de futebol, o jogo que eu disse a todos aqueles caras que não queria jogar.
Em carne e osso!
Então, nesse ponto eu fico: O que eu faço agora????
Pensei por um segundo e daí soube exatamente o que tinha que fazer. Calmamente andei em direção ao cara e, num piscar de olhos, antes mesmo que ele soubesse o que estava por vir….
Eu derrubei o cara no chão!
Calma, tô brincando. Hahahaha. Desculpe, desculpe. Você acha que eu estava pensando nisso, fala sério?!
Não, de verdade, eu fui até ele e falei: “Hum, com licença… isso vai parecer muito estranho, mas você é o cara que eu dei um soco uma vez jogando futebol há 20 anos?”
E o cara fica em silêncio por um segundo, depois inclina um pouco a cabeça para o lado, olha pra mim e diz:
“Acho que sim. Sou o cara que você deu um soco naquela época.”
Ri tanto quando ele disse isso. E o açougueiro... ele riu também. Na verdade, foi muito bom. Não houve maldade alguma. Sem ressentimentos. Nós dois apenas gargalhamos bastante juntos.
Então, antes que ele pegasse a bicicleta e saísse, eu disse a ele: “Obrigado”.
Vai saber se ele entendeu o porquê. Nunca na minha vida teria imaginado que diria essas palavras para aquele cara, entre todas as pessoas. Mas, se não fosse ele… Onde eu estaria hoje? Então sim, quer saber, Deus abençoe o açougueiro! Deus abençoe esse cara, de verdade.
Chama!
Alex