Match Point
Eu tenho jogado muito tênis desde que pendurei as chuteiras. Muito mesmo. Três, às vezes quatro vezes por semana, de manhã e à noite.
Não imaginava que me apaixonaria por outro esporte, ainda mais um tão diferente do futebol. A principal diferença é que no futebol a gente sempre tem companhia. E, no tênis, o tempo todo sou eu comigo mesmo.
Quando a bolinha quica do lado de cá da rede, não tem ninguém pra ficar na sobra, ninguém pra fazer o um-dois, pra lançar, ninguém pra me ajudar a pensar, gritar, correr, rir e chorar junto. No tênis eu preciso me virar sozinho. Não que isso seja ruim. É apenas diferente.
A primeira vez que joguei tênis foi medonho. Entrei com tanta vontade, certo de que era moleza dar na cara da bolinha, que o golpe passou do ponto e só acertei mesmo foi uma raquetada no meu ombro. Aí procurei um professor pra parar de passar vergonha.
Comecei a ter aulas e venho evoluindo. Já estou jogando legal, e a turma que pratica comigo tem me deixado vencer umas partidas. Mas eles não fazem ideia do terreno onde estão pisando. Se dessem uma olhada na minha lista de títulos no futebol lembrariam que o Arouquinha empolgado e confiante é um perigo. Vou dizer, hein… Se eu começar a acreditar no meu jogo vai ser complicado, porque vou tomar gosto de vez e aí nem o Djokovic me segura kkkkk.
No futebol foi assim. Eu demorei pra engrenar, pra acreditar em mim e pegar confiança. Cheguei a desistir duas vezes. Vocês conhecem algum outro jogador que desistiu duas vezes do futebol? Eu desisti. A primeira foi quando eu estava começando no Olaria. Eu tinha 11 anos e um tio levou a gente pra fazer um teste, eu, meu irmão e meu primo. Só eu passei. Eles voltaram pra nossa cidade, Duas Barras, no interior do Rio, e eu fiquei. Deu seis meses, fui até um orelhão na esquina da Rua Bariri, onde fica o campo do Olaria, e telefonei pra casa:
— Quero voltar, falei pro meu pai, chorando.
— Mas o que aconteceu, Marcos? Estão te maltratando aí?
— Não é isso. É que eu sinto muita saudade.
— Tudo bem, filho. Se é a tua vontade, no fim de semana eu vou te buscar.
Depois de um tempo, sem conseguir ficar longe da bola, eu comecei a treinar no Friburguense. Nova Friburgo era mais perto de Duas Barras e eu podia voltar todo dia pra casa, não precisava morar no alojamento. Disputava amistosos e campeonatinhos na região, estava feliz, até que um dia um amigo estava indo fazer um teste no Fluminense e me chamou. Eu pensei: Caramba! O Fluminense… Não dá pra deixar passar, né? Fui aprovado no teste também e fiquei treinando em Xerém. Mas como estava federado pelo Olaria, não podia jogar. Só treinava. Isso foi me aborrecendo e então arrumei as minhas coisas e voltei pra casa outra vez, agora certo de que dali em diante o futebol seria só diversão.
Mas numa manhã, eu estava na escola — era aula de matemática, lembro direitinho —, o meu irmão apareceu na porta da sala pedindo pra falar comigo. Pensei no pior. O pai? A mãe? O que aconteceu?
— Tem um diretor do Fluminense lá em casa querendo conversar contigo.
Não sei como, o cara tinha descoberto onde meu pai trabalhava, foi até o serviço dele e agora estavam os dois lá em casa esperando por mim. Quando eu cheguei, ele disse que o Fluminense estava resolvendo a minha situação com o Olaria pra que eu pudesse jogar, porque os treinadores em Xerém confiavam em mim e não podiam me deixar desistir. Então eu voltei na escola, me despedi de todos os meus amigos, da minha namorada, que hoje é minha esposa, e entrei no carro do diretor pra nunca mais abandonar o meu destino.
De Duas Barras até Nova Friburgo, eu fui chorando. Aí cansei de chorar e dormi. Às vezes, nas curvas da estrada, eu acordava e um pensamento muito forte tomava conta de mim. Talvez fosse um sonho, não sei. Eu me via no meio do campo, cercado de troféus, num estádio lotado e barulhento. Não estava claro que estádio era nem que uniforme eu vestia, mas a sensação era muito boa. Eu tinha 13 anos e pela primeira vez me sentia forte e certo do meu caminho. Hoje eu lembro daquele dia e tenho a impressão de que foi um sinal do céu, sabe? Alguém lá em cima me ensinando a confiar em mim, nas horas boas e nas ruins, porque ter confiança faz a gente viver melhor.
Na volta a Xerém, mandei super bem. Tão bem que acabei convocado pra todas as seleções brasileiras de base. Fui campeão mundial sub-17 em 2003 e terceiro lugar no sub-20, em 2005. Perdemos a semifinal porque do outro lado tinha um moleque magrelo, baixinho, diferente, que corria e driblava feito um maluco, e esse moleque, chamado Lionel, acabou com o jogo.
Sim, o próprio.
O Messi.
Eu tinha 18 anos. Já estava no profissional do Fluminense e só não joguei a final da Copa do Brasil, que nós perdemos pro Paulista de Jundiaí, justamente porque estava na seleção tentando tomar a bola do moleque diferenciado da Argentina. Naquele ano, fomos campeões cariocas e, no Brasileiro, deixamos escapar a vaga pra Libertadores no último jogo. E finalmente, apesar de ser muito novo, eu entendi tudo. O futebol ia me ensinando a viver. Me ensinando que sempre haverá altos e baixos e não dá pra escapar disso. O importante é não se abalar nos baixos, não se deslumbrar nos altos e entrar confiante no jogo.
Dois anos depois, 2007, nós conquistamos o título da Copa do Brasil numa campanha espetacular, obtendo a classificação quase sempre fora de casa e vencendo a final contra o Figueirense nos pênaltis. Isso nos colocou na Libertadores do ano seguinte, 2008. Entramos com a confiança lá em cima e um desejo enorme de dar aquele troféu pra torcida tricolor.
Foi a derrota mais dolorosa da minha carreira. Machucou demais. Porque, de novo, fizemos uma campanha memorável. Terminamos a fase de grupos em primeiro e no mata-mata despachamos esquipes cascudas de Libertadores: Nacional da Colômbia, São Paulo, Boca Juniors. Aí, na decisão, tomamos um 4 a 2 da LDU em Quito. Mas fizemos uma partida maravilhosa na volta, no Maracanã. Eles abriram 1 a 0, nós viramos com três gols do Thiago Neves e fomos pros pênaltis. Infelizmente não deu. A derrota não só me derrubou como me deixaria no vale por um tempo, antes de subir de novo.
Era hora de pegar a estrada mais uma vez. Assinei um contrato de quatro anos com o São Paulo. Eu estava empolgado. Depois de dez anos, me despedia do clube onde fiz toda a minha base e me profissionalizei para desembarcar num São Paulo que vinha de três títulos seguidos de Campeonato Brasileiro. Achei que não podia haver lugar melhor pra eu engrenar e me firmar no futebol. Por sorte não foi nada disso que aconteceu. E eu vou explicar por que “sorte”.
Hoje eu lembro daquele dia e tenho a impressão de que foi um sinal do céu, sabe? Alguém lá em cima me ensinando a confiar em mim, nas horas boas e nas ruins, porque ter confiança faz a gente viver melhor.
- Arouca
O São Paulo tinha um elenco recheado de jogadores de seleção. Ceni, Oscar, Borges, Richarlyson, Hernanes, Miranda, Dagoberto… Sobrava pouco espaço pra mim e raramente eu jogava. Quando entrava era de lateral-direito, uma posição diferente da minha e por isso eu não rendia tão bem. Mas não me deixei abater. Continuei treinando sério, como sempre fiz. Até que em janeiro de 2010 a grande sorte apareceu: um empréstimo pro Santos — o divisor de águas na minha carreira.
Na Vila Belmiro eu me juntei a uma porção de moleques diferenciados que estavam lá e alguns que chegariam depois: Danilo, Alan Patrick, Felipe Anderson, Zé Love, André, Madson e dois fora-de-série, um tal de Neymar e um tal de Paulo Henrique Ganso. Vocês viram bem o que esses dois aprontavam nos jogos. Mas eu vi o que eles aprontavam nos treinos. Dava vontade de só assistir e aplaudir. Era uma coisa assombrosa. O Brasil inteiro queria os dois na Copa do Mundo de 2010.
Da minha parte, conquistei a posição de titular nos treinos e não saí mais. Ganhamos quase tudo com aquele time: Campeonato Paulista, Copa do Brasil, Libertadores e Recopa. Foi um período mágico na minha vida.
Toda manhã eu acordava e agradecia por estar na Vila jogando com a camisa 5 que tinha sido do Zito e do Clodoaldo. Agradecia por meus pais terem sido compreensivos quando me senti por baixo no Olaria. Agradecia ao diretor do Fluminense que foi me buscar em Duas Barras. Agradecia sobretudo à torcida do Santos, que me tratava com carinho — só depois da semifinal do Paulistão de 2010, né? Kkkkk!
É que naquela altura eu ainda era jogador do São Paulo emprestado ao Santos e ficou aquele clima de desconfiança. Mas acabou tudo certo. Joguei bem as duas partidas, metemos um 6 a 2 no placar agregado e fomos à decisão contra o Santo André.
Vocês lembram da final no Pacaembu? Eu não esqueço jamais.
Ali, como um menino da Vila, eu chegava muito perto do topo.
- Arouca
O primeiro tempo terminou 3 a 2 pro Santo André, com dois nossos e um deles expulsos. Como tínhamos feito uma campanha melhor no primeiro turno e vencido o jogo de ida, esse resultado ainda dava o título pra gente. Mas se eles marcassem mais um, já era. E a tarde estava tensa demais, tanto que terminamos o jogo com oito em campo.
Logo aos cinco minutos do segundo tempo, o Rodriguinho recebeu do Bruno César, driblou o nosso goleiro Felipe e chutou pro gol aberto. Eu estava voltando, cansado, achei que não chegaria, mas aquele número 5 nas minhas costas parecia me impulsionar e eu consegui tirar a bola praticamente em cima da linha.
Pra maioria dos jogadores, o momento mais marcante da carreira é um gol. Pra mim foi evitar um gol.
Ali, como um menino da Vila, eu chegava muito perto do topo. Da coleção de troféus que me apareceu nas curvas daquela viagem de Duas Barras pro Rio, faltava só o do Campeonato Brasileiro.
E esse eu fui buscar no Palmeiras. No meu primeiro ano lá, 2015, nós perdermos a final do Paulista, nos pênaltis, pro Santos. Foi um tremendo balde de água fria pra torcida palmeirense, porque, depois de um 2014 desesperador, que ninguém gosta de lembrar, o clube tinha se reforçado bastante e voltava a sonhar alto. Mas só alguns meses depois, na Copa do Brasil, demos o troco. Ganhamos do Santos nos pênaltis também. Esse título da Copa do Brasil de 2015 marca o começo da jornada multicampeã do Palmeiras que continua até hoje.
Sinto um orgulho tremendo de ter contribuído. Mas me faltava um caneco, né? Eu já tinha três Copas do Brasil, três Paulistas, uma Libertadores e uma Recopa. Até que em 2016 eu consegui. Das 38 rodadas do Brasileirão, nós lideramos 29 e fomos campeões com uma de antecedência e nove pontos a mais que o Santos, o segundo colocado. Assim eu passava a régua no meu sonho de criança.
Depois do Palmeiras eu defendi o Atlético Mineiro, o Vitória e o Figueirense. Tive umas lesões, fiquei quase um ano sem jogar, perdi meu pai, veio a pandemia… E eu achei melhor parar. Já não via sentido em continuar no futebol, ainda mais sem o grande incentivador da minha carreira para me apoiar nas horas boas e nas ruins.
Pensei que a vida de ex-jogador ia ser mais sofrida do que está sendo. Mas por sorte eu descobri o tênis e, quando olho pra trás, me sinto abençoado. Não só pelos títulos que conquistei, pelos amigos que fiz ou pelo dinheiro que ganhei. Mas por estar em campo num dia especial no mais histórico dos estádios: 27 de junho de 2011, Vila Belmiro.
Foi aquele Santos 4, Flamengo 5. Que noite, meu Deus! Que noite! De um lado, Ronaldinho Gaúcho. Do outro, Neymar. Os dois diferenciados. Um querendo mostrar que era mais gênio que o outro. A Vila inteira perplexa, extasiada, as pessoas se abraçavam e riam na arquibancada. E eu ali dentro vivendo tudo aquilo. Eu estava do lado que perdeu, mas tudo bem.
Nas minhas estatísticas pessoais eu sempre computo esse jogo como vitória. Não dá! Foi bonito demais. Se algum dia mandarem uma cápsula pro espaço sideral contando sobre a vida na Terra, o VT do que aconteceu naquela tarde na Vila tem que estar dentro, pra que outras civilizações possam entender tudo o que o futebol representa para os seres humanos.
E agora vocês me dão licença que eu vou ali jogar tênis. Vencer um Grand Slam está fora de cogitação, infelizmente, mas carrego comigo a certeza de que prazer igual ao de ter jogado aquele 5 a 4, isso o Djokovic nunca vai ter. Match point pra mim!