Alma de Operário
Deixa eu contar logo de cara uma coisa surpreendente pra vocês: eu não tenho muito apreço pelo futebol. Por favor, não me entendam mal. O que eu sinto por ele, pelo esporte que me deu tudo, não é menosprezo ou ingratidão, longe disso. É que desde criança nunca rolou comigo aquele negócio de dormir com a bola, de matar aula pra jogar, de assistir a todos os jogos na TV, gols da rodada, mesas-redondas, nunca fiquei de luto por ter sido reprovado em peneira.
A vida inteira eu pensei bastante a respeito disso, nessa pergunta que fica um pouco mais desconfortável depois que a gente para: por que eu fui um jogador de sucesso? A conclusão que cheguei é que a minha relação com o futebol, talvez espelhando meu pai, um trabalhador da Companhia Siderúrgica Nacional, é de operário.
Fui um operário do futebol muito dedicado. Responsável, comprometido, consciente de que não se faz nada sozinho, um operário que procurou dar o seu melhor em todos os lances, como se cada um deles fosse o pagamento de uma promessa, e que se realizava quando conseguia fazer o trabalho com capricho. Então, o meu caso com o futebol é mais de compromisso e zelo com o trabalho do que de apreço ou paixão. Seria do mesmo jeito se eu tivesse sido carteiro, ou médico, ou marceneiro…
Eu acho que sou assim em tudo. Se um amigo me pede, vamos supor, pra ajudar ele a carpir o terreno do sítio, eu me entrego completamente. No final fico destruído, mas em paz por ter feito direitinho, o melhor possível.
Por quê? Porque ele contava comigo. Me sinto mal se for diferente disso.
Quando eu era moleque tive um treinador de futsal lá em Volta Redonda, a minha cidade, que dizia: “O Dedé não sabe brincar”. Eu corria tanto no bobinho do aquecimento que ele tinha medo que me faltasse gás depois, no jogo. Mas o que eu posso fazer? Se não dá pra realizar uma coisa direito eu prefiro nem começar.
Vocês devem estar se perguntando se o fato de eu ser assim tirou a minha alegria de jogar futebol… A resposta é:
Nem um dia sequer. Eu jogaria tudo de novo, com mais capricho.
Tive sorte de trabalhar num ramo em que dedicação e compromisso dão resultado. No futebol, o resultado fruto da dedicação e do compromisso vira confiança. Aí a confiança faz a gente se dedicar mais, ter mais compromisso e a coisa toda te empurra pra cima. Na infância, eu não era bom no futebol. Nem ligava muito, enquanto meus amigos eram fissurados. Mas pra não ficar fora da brincadeira eu ia jogar com eles numa quadra no nosso bairro, o Parque das Ilhas.
Como eu tinha altura, envergadura e gostava de fazer as coisas bem-feitas, virei goleiro. Aí, aos oito anos, incentivado por um amigo, entrei numa escolinha. A minha mãe, que era faxineira nos dias de semana, pagava a mensalidade fazendo e vendendo pastel aos sábados e domingos. Mesmo gostando mais ou menos de futebol, e gostando nada da posição, eu me destacava como goleiro de futsal e fui parar no Fluminense. A coisa ficou séria. Eu estava com 12 anos e havia uma grande probabilidade de eu seguir como goleiro em Xerém e dali pra mais. Achei melhor largar tudo enquanto podia.
Eu não queria ser goleiro. Nem tinha certeza se queria ser jogador.
Voltei pra minha cidade e fui tentar jogar de volante no Volta Redonda. Só ficava na reserva. Mas um dia, num jogo importante dos juvenis, o time perdeu todos os beques, dois suspensos, outros dois machucados, e sobrou pra mim. Entrei na zaga sem experiência, mas com aquele pensamento que deve ter nascido comigo: dar tudo pra fazer o melhor, fazer bonito. Nunca mais saí do time.
Meses depois, fui destaque num Volta Redonda x Flamengo e me promoveram pros juniores. Um pouco mais tarde, o melhor em campo num Volta Redonda x Botafogo. Passei pro time profissional e um mundo novo se revelou pra mim. A dedicação e o compromisso com aquele trabalho que eu fazia com tanta seriedade e capricho se converteram num salário de R$ 500 por mês, uma ajuda enorme lá em casa. Eu fiquei eufórico, esperançoso, enxerguei um caminho pra mudar a vida da minha família e entrei confiante no meu ofício. De corpo e alma, porque seria pra sempre, até onde o futebol sempre me levasse.
Em 2009, jogando como titular do Volta Redonda, fui apontado como o terceiro melhor quarto-zagueiro do Campeonato Carioca. Eu tinha 21 anos, “bem” mais velho do que a garotada começa a despontar no futebol e nenhuma passagem por seleções de base. Eu era só “aquele negão fortão do Volta Redonda”.
Mesmo assim, o Vasco me contratou pra disputar a Série B do Brasileiro. Foi uma aposta deles e minha também. Pro Vasco, porque já havia seis zagueiros no elenco. Eu seria o sétimo. Pra mim, porque descartei uma proposta do Flamengo e preferi ir pra São Januário. Um escolha bem racional.
Pensei friamente: Vou sair do Volta Redonda, que não conseguiu se classificar pra Série D e cair direto no Flamengo que vai disputar o título da Série A? A chance de dar ruim é grande. Melhor começar pelo Vasco, pegar mais bagagem, ir devagar.
E foi bem devagar mesmo. Na Série B, só joguei as duas últimas partidas, quando o acesso estava garantido e todo mundo tinha largado mão. Aí veio a pré-temporada de 2010 e eu não treinava nem a parte física com o time titular. Durante dez dias, eu participei de apenas seis minutos de um coletivo, e mesmo assim porque o preparador físico ficou com dó de mim. Ele via o quanto eu me dedicava, o quanto eu trabalhava, e foi pedir pro treinador, que na época era o Mancini, me deixar jogar um pouco.
Seis minutos.
Quando eu comecei a achar que estava ficando bom, acabou o treino.
Depois, começou o Estadual e eu não era relacionado quase pra jogo nenhum. Pior: descia pra treinar com os juniores, pra completar o time deles, e até ali eu ficava de fora muitas vezes. Mas não entreguei os pontos. Se eu tinha entrado nesse trabalho, eu ia fazer as coisas direito até alguém me notar. Era um ensinamento de família que eu cresci ouvindo: quem persiste sorri no final.
Os quatro anos que eu passei no Vasco foram maravilhosos. A torcida é um negócio que me emociona até hoje, só de lembrar.
- Dedé
O treinador dos juniores do Vasco era o Gaúcho. Um dia eu fui ter um particular com ele:
— Professor, eu queria te pedir uma coisa… Não sei se vai atrapalhar seu treino… É que…
— Desembucha, garoto.
— Posso fazer uns coletivos inteiros com os juniores?
— Dedé, se você jogar aqui e for mal, acabou. Não tem mais volta. Sua carreira evapora. É um risco tremendo.
— Tudo bem, eu tô a fim de arriscar.
Não demorou pro resultado aparecer. Nenhum dos garotos dos juniores corria mais do que eu, se dedicava mais do que eu, deixava no campo mais do que eu. À certa altura, eu percebi que o Gaúcho contava comigo e então eu me entreguei ainda mais.
Quando o Vasco mandou o Mancini embora, quem assumiu o profissional?
O Gaúcho.
E quem passou a ser o zagueiro de confiança dele?
Eu.
Fiz um baita Brasileiro e terminei o ano como o melhor da posição. Impressionante. De negão fortão do Volta Redonda pra quem ninguém dava bola a melhor zagueiro do país. Eu ia dizer que nem eu acreditava no que estava acontecendo, mas eu acreditava sim. Acreditava porque sentia o gosto salgado de cada gota de suor naqueles treinos nos juniores. Elas me davam confiança pra sorrir no final.
O ano seguinte, 2011, foi assombroso. Ficou na memória das pessoas o tal “jogo em que o Dedé parou o Neymar”, um Vasco 2 x 0 Santos, em São Januário. Aquela partida talvez simbolize tudo o que eu penso do futebol e da minha vida nesse esporte.
Primeiro que, se venci o duelo pessoal com o Neymar, o duelo atacante x zagueiro, eu não venci sozinho. Sem os outros dez do meu lado naquela noite chuvosa, dedicação nenhuma ia parar o talento monstruoso daquele moleque de cabelo moicano. Segundo que eu estudei o Neymar pra entender a melhor maneira de usar as minhas características contra ele. Eu era um marcador agressivo e confiava na minha velocidade, no meu reflexo e na minha capacidade de ler o jogo. Então, quando o Neymar vinha pra me driblar eu parava na frente dele e isso o obrigava a parar também. Aí eu armava a minha base de modo a abrir pra ele uma saída pelo lado em que eu era mais forte. Ele dava o tapa na bola por ali e eu conseguia reagir rápido, pra chegar na frente. Foi assim o jogo todo.
Até hoje tem torcedor do Vasco que me para na rua e fala daquela partida. Um ano realmente muito marcante. Nós vencemos a Copa do Brasil, fomos vice do Brasileiro e chegamos nas semifinais da Sul-Americana. Do lado individual, depois de apenas dois anos como profissional, eu cheguei à Seleção Brasileira e entendi que a minha evolução no futebol podia ser maior. Se eu aprendesse mais, me dedicasse mais, caprichasse mais, o céu era o limite. Uma das torcidas mais lindas do mundo contava comigo e eu queria muito corresponder.
Nos tempos de Vasco, tinha um treino de zagueiro que se chamava forca. Era assim: uma bola ficava pendurada num poste e a gente corria e cabeceava, corria e cabeceava, corria e cabeceava. Era pra pegar tempo de bola. Quando terminava o coletivo, me mandavam fazer cinco repetições na forca.
Eu fazia 50.
Foi nessa época que chegou o Ricardo Gomes pra ser o nosso técnico. E com as orientações dele eu progredi rápido. “Dedé, tá dando o bote errado. Dedé, tá voltando errado. Dedé, tá subindo com o corpo errado. Dedé, agora que você pegou tempo de bola, no escanteio cabeceia ela pro volante e não pra qualquer lado”. Eu prestava atenção e repetia à exaustão pra que meu corpo naturalizasse os movimentos. Posicionamento corporal é o grande segredo de um bom zagueiro.
Os quatro anos que eu passei no Vasco foram maravilhosos. A torcida é um negócio que me emociona até hoje, só de lembrar. Eles sempre reconheceram o meu empenho e acho que me viam como um deles dentro de campo. Um trabalhador como tantos outros que se doava pelo time, só que, em vez de estar gritando na arquibancada, eu estava correndo no gramado. Os vascaínos são tão malucos que, por causa deles, eu fui escolhido o 63º maior brasileiro de todos os tempos, na frente do Tom Jobim, do Lampião e do Chacrinha, imagina! Kkkk…
Era um programa do SBT em que as pessoas votavam. Eu estava voando naquele ano de 2012 e a torcida do Vasco votou em massa em mim. Eu sei que não passava de uma brincadeira, mas o reconhecimento do meu trabalho significou demais. Eu amava estar em São Januário. Nunca me passou pela cabeça sair. Eu achava sinceramente — e desejava — que ia ficar lá até morrer.
Mas chegou uma proposta do Cruzeiro. O Vasco com aquela questão eterna de salários atrasados, a dificuldade que a gente conhece. Um dia, um funcionário do clube veio falar comigo. Ele me agradeceu por ter aceitado a proposta do Cruzeiro, que com isso o Vasco acertaria os cinco meses atrasados dos vencimentos dele e assim ele evitaria o despejo da casa onde morava de aluguel com a família. Até aquele momento eu não tinha certeza se queria ir pro Cruzeiro, nem tinha conversado com ninguém a respeito. Mas se a grana da minha venda ia ajudar os trabalhadores do clube, a galera que ganhava um ou dois salários mínimos, a melhor coisa a fazer era arrumar as minhas malas. Aí eu fui embora.
No primeiro dia em Belo Horizonte, eu saquei que tinha caído num lugar especial. Seis mil cruzeirenses foram me receber no aeroporto. Seis mil! E se tinha esse tanto de gente contando comigo, vocês sabem: eu ia trabalhar pra caramba pra atender, pra fazer meu trabalho com capricho.
Foi até fácil me adaptar naquele Cruzeiro que seria campeão brasileiro com cinco rodadas de antecedência. Time cheio de craque, tá maluco… Era suave jogar ali, uma delícia. Lá de trás eu olhava e pensava: se a bola chegar no Éverton Ribeiro, ele vai achar alguém pra fazer o gol, o Goulart, o Bigode, o Dagoberto, o Borges. Já pro adversário vir pra cima de mim ele vai precisar passar pelo Lucas Silva, pelo Nilton, pelo Leandro Guerreiro… Era uma orquestra. Nós vencemos todos os adversários, na ida ou na volta. Ninguém escapou. Isso foi inédito na história do Brasileirão.
Quando o Neymar vinha pra me driblar, eu parava na frente dele e isso o obrigava a parar também. Aí eu armava a minha base de modo a abrir pra ele uma saída pelo lado em que eu era mais forte.
- Dedé
Quando começou 2014, a beleza continuou. Fomos campeões invictos do Mineiro e, depois, largamos atropelando todo mundo no Brasileiro. Então teve a parada pra Copa do Mundo, o Felipão não me levou, e quando retomamos eu iniciei uma dura viagem pelo mundo das lesões.
Uma estrada que me conduziria a muita dor, tristeza, dúvida, mas também a um lugar que eu gostava: a confiança no meu espírito de operário pra superar dificuldades. No final do ano, num jogo contra o Coritiba, eu arranquei rápido num contra-ataque deles e senti algo explodir no meu joelho direito.
Ruptura de ligamento cruzado.
A recomendação foi caprichar no fortalecimento muscular e continuar jogando. No final do ano, porém, semifinal da Copa do Brasil contra o Santos, estourou de vez. Eu saí de cadeira de rodas do estádio e aquilo me abateu demais.
Eu só tinha 26 anos, apenas três clubes no meu currículo de jogador profissional, será que era o fim? Eu ia ter que parar de trabalhar? Operei o joelho em janeiro de 2015 e fiquei aquele ano todinho sem jogar. Voltei no Estadual de 2016 e quebrei a patela. O resto do ano no departamento médico de novo.
Voltei em 2017, estava embalado e, Deus do céu!, ferrei o outro joelho, o esquerdo. Nova cirurgia. Era difícil acreditar que eu conseguiria retornar uma quarta vez, só que eu jamais ia admitir isso. Enquanto houvesse um jeito, qualquer jeito, eu seguiria tentando.
Em 2018, voltei outra vez. E não voltei pra encostar e deixar a vida me levar. Comigo não tinha isso. Se não dá pra fazer o trabalho direito eu prefiro nem começar, lembram? Então eu voltei pra jogar o melhor ano da minha carreira.
A retomada pra mim foi contra o Racing pela Libertadores. Na ida, em Avellaneda, o Lautaro Martínez deitou e rolou e eles meteram 4 a 2. Aí chegaram se achando na volta, em Belo Horizonte. Eu, que não tinha jogado a primeira partida, entrei de titular na segunda e o Lautaro não viu a cor da bola. Ganhamos por 2 a 1 e ficamos em primeiro no grupo.
Depois acabamos caindo nas quartas-de-final, mas o negão fortão de Volta Redonda tava on mais uma vez! Em seguida, no Estadual, depois de perder o primeiro jogo pro Atlético por 3 a 1, nós ganhamos o segundo de 2 a 0 e demos mais esse título pra torcida cruzeirense. Comigo em campo!
Estava sendo incrível conseguir fazer tudo aquilo com os joelhos que eu tinha — ou com o que sobrou deles. Até voltei pra Seleção Brasileira e quase fui pra Copa do Mundo. Doeu ter sido cortado da lista dos 23 do Tite. Pra mim, disputar uma Copa teria sido a recompensa definitiva, a comprovação de que a gente pode ir longe se dedicando ao que faz, respeitando os colegas e a profissão que exerce.
Por outro lado, as palavras do Tite no dia da convocação final me abraçaram e aplacaram um pouco a minha tristeza. É que além dos 23 que iam pra Rússia, ele precisava entregar à Fifa uma “lista de espera” com mais 12 nomes, pro caso de algum corte por contusão. Ele não revelou os nomes dessa lista de espera, exceto um: o meu. E as palavras dele naquela manhã eu nunca esqueci, porque me emocionei quando ouvi: “Peço desculpas à comissão técnica por revelar um nome da lista de suplentes, mas o Dedé merece. Por todo o trabalho que ele fez, de encontrar a superação e voltar em alto nível… O Dedé merece”.
No fim das contas, agora eu sei disso, tudo o que eu sempre quis foi merecer a vida que o futebol me proporcionou. Ainda sofri com velhas dores e novas cirurgias em 2019, quando violei os últimos limites do meu corpo pra tentar ajudar o Cruzeiro a não ser rebaixado, e em 2020 não tive opção: parei. Não arrasto nenhuma mágoa, nenhum sofrimento, nem arrependimento.
Dei tudo o que eu podia. Tudo mesmo, sei disso. E é bom olhar pra trás e saber que da minha jornada de trabalhador do futebol eu carrego, com muito orgulho, um sono tranquilo, boas lembranças e uns parafusos nos joelhos.
São ossos do ofício.