A Vida Empurra Quem Confia
Eu nunca tinha visto tanta tristeza nos olhos do meu pai. Só que ao mesmo tempo dava pra sentir certa esperança nele, um último fio de esperança, quando eu entrei no carro arrasado e joguei as minhas chuteiras sujas no banco de trás.
Semanas antes tinham me mandado embora da base do Botafogo e aquele era o sexto teste que eu fazia tentando uma recolocação no futebol. O sexto teste seguido, o sexto “não deu, garoto”. Todos os meus amigos continuavam empregados em algum time. Da nossa turma de infância, só eu naquela situação.
Agora, passados todos esses anos, eu nem lembro mais qual era o time da vez, porque, quando eu penso naquela tarde chuvosa no Rio, a imagem que ficou foram os olhos tristes e esperançosos do meu pai me implorando:
— Por favor, Guga. Não desiste. Tenta mais um pouco, por favor.
Eu não queria mais tentar de jeito nenhum. Estava frustrado, decidido a estudar, ir fazer qualquer outra coisa e guardar o futebol na gaveta dos sonhos não realizados. Mas como se diz não quando o pai da gente implora e ainda pede por favor?
Mermão, tu não faz ideia de como uma parada dessas mexe com a gente. Então eu comecei a chorar também e falei que “beleza, pai, eu vou tentar uma última vez. Mas a última mesmo, tá bom?, porque tá muito pesado pra mim e eu não sei se aguento mais tudo isso”.
Eu não queria mais tentar de jeito nenhum. Estava frustrado, decidido a estudar, ir fazer qualquer outra coisa e guardar o futebol na gaveta dos sonhos não realizados.
- Guga
A súplica do meu pai trazia a confiança que ele tinha em mim e também uma projeção, eu acho, o desejo de que eu desse certo na carreira que pra ele acabou cedo. Pouca gente sabe, mas meu pai foi jogador profissional. Começou no São Cristóvão e viveu um bom momento no Atlético Paranaense, nos anos 80. Mas por ser muito novo e não ter a família por perto pra dar uma força, pra cuidar, aconselhar, ele acabou largando o futebol. Ou o futebol acabou largando ele. Por isso, no dia seguinte à minha sexta reprovação, eu fui treinar num time pra onde iam os garotos rejeitados nos testes.
Vou manter a forma aqui e esperar, pra ver o que rola, eu pensei.
Em um domingo de sol, estávamos na praia, quando recebi a ligação do meu empresário perguntando se eu queria fazer um teste no Avaí, de Santa Catarina.
— Com certeza! Vamos nessa!
— A gente viaja amanhã. Vê se dessa vez leva o seu futebol com você, hein!, ele brincou.
O telefone estava no viva-voz e o meu pai, ali do lado ouvindo, completou:
— Leva também a caneta pra assinar o contrato.
Fomos do Rio a Floripa de carro, eu e o motorista da empresa. Vinte e três horas de viagem. Vinte e três horas em que eu só pensei no pedido do meu pai, naquele “por favor”, na esperança dele e no sonho que também era meu.
Chegamos de madrugada e, quando deitei pra dormir na caminha do alojamento do Avaí, eu me senti diferente. Os sentimentos ruins gerados por aquela situação de estar sem time tinham se transformado em sensações boas: determinação, coragem e confiança. Acima de tudo, confiança. Acontecesse o que acontecesse, na manhã seguinte eu ia entrar confiante no jogo-treino que seria o meu sétimo e último teste. Nada nem ninguém ia me impedir de dar o máximo. Se desse ruim de novo, paciência. Mas não ia ser por falta de empenho.
A vibe deu certo. Os caras do Avaí gostaram e me pediram pra ficar mais uma semana. Aí mais uma e mais uma e outra. Um mês depois o meu pai estava chegando em Floripa com meus documentos e seus olhos agora felizes e aliviados. Assinei o contrato com a caneta que levei do Rio, entrei de cara no time titular e fomos campeões catarinenses. Eu tinha acabado de fazer 15 anos.
Algum tempo depois, quando subi pro profissional, o começo foi difícil. Eu ficava ansioso, nervoso, dormia mal na véspera dos jogos e, com medo de o futebol me abandonar também, eu procurava fazer o feijão com arroz pra não comprometer. Mas eu sabia que era pouco. Eu tinha que dar um jeito de jogar nos meus 100%.
Meu pai sempre diz que a “vida empurra quem confia”, e eu tentava levar isso pro campo. Aí entra a magia do futebol, que é fera em fazer valer certas coisas que a gente não compreende. Porque, na minha terceira partida no profissional, eu marquei o meu primeiro gol e tudo mudou profundamente. Eu mudei. Foi um golzinho só em início de campeonato. Não era decisão, não era luta contra rebaixamento, não era caso de vida ou morte. Mas foi esse primeiro golzinho que concretizou as palavras do meu pai e me fez entrar confiante de vez na minha carreira. Depois desse primeiro gol, eu virei titular no Avaí, joguei bem todo o resto do campeonato, conseguimos acesso pra Série A do Brasileiro e, no começo de 2019, o meu telefone tocou de novo.
Era do Atlético Mineiro.
Eu estava de férias numa pousadinha, tomando café da manhã, e imediatamente lembrei de 2013. Eu sou do Rio, né? Vila Valqueire, entre Madureira e Realengo. Típico moleque carioca. Mas em 2013, sem nem conhecer Belo Horizonte, eu me tornei um pouco mineiro por causa do Galo.
Caraca, como eu acompanhei aquele time campeão da Libertadores! Acompanhei e torci pra caramba. Chegava a simular os jogos no videogame só pra ficar assistindo e sonhando. E naquela época o sonho tinha nome: Ronaldinho Gaúcho.
Por anos e anos, a conquista do Galo na Libertadores com o Ronaldinho no comando foi referência de felicidade no futebol pra mim. E agora eu tinha a oportunidade de sair da Série B e cair direto dentro dessa felicidade. Não dava pra perder a chance. Engoli rápido o meu pão com manteiga e fui atazanar o pessoal da pousada. Pedi que eles imprimissem o contrato pra mim, assinei e mandei de volta na mesma hora. Talvez tenha sido o café da manhã mais gostoso da minha vida. Mas eu mal podia imaginar que o banquete estava só começando.
Em 2021, nós almoçamos e jantamos tudo: Campeonato Mineiro, Copa do Brasil e Campeonato Brasileiro, este o mais maravilhoso porque foi um título que a torcida esperou por 50 anos. O Cuca, que era o nosso treinador, montou uma tabelinha que ficava na parede do CT. Tinha todos os jogos. Na resenha ele apontava e dizia “aqui a gente ganha, aqui a gente perde, aqui só empata”, tipo uma simulação do campeonato só nossa. E ia mudando conforme os resultados. “Opa, ganhamos três seguidas, acumulamos uma gordurinha. Se chegarmos aqui com tal pontuação, vamos brigar pelo título”, o Cuca continuava. Isso foi deixando a temporada mais leve, porque o Brasileirão é muito longo e ajuda bastante ter uma visão ampla pra não cair em desespero ou euforia.
Do meio do segundo turno pra frente, porém, a torcida não quis saber: era só euforia. Uma energia absurda em cada jogo nosso, um negócio de arrepiar. E, como eu disse que a magia do futebol faz valer coisas que fogem à nossa compreensão, quis a vida que o jogo mais marcante daquela campanha fosse justamente contra o Fluminense, pra onde eu rumaria um ano depois.
Era a penúltima rodada, Mineirão entupido de gente, uma força avassaladora, e a gente sai perdendo de 1 a 0, gol do Manoel. Tremendo vacilo nosso: ele chegou sozinho depois de uma cobrança de falta e cabeceou pro gol sem saltar. A torcida do Galo respondeu no ato: entrou no campo pra jogar com a gente. Os caras conseguiram transformar o Mineirão, que é enorme, num caldeirão.
Naquela atmosfera, mermão, nada ia nos segurar. Aí o Hulk empatou de pênalti e virou numa cobrança surreal de falta. O Galo ainda não era campeão, faltava a última rodada, mas ninguém ali dentro daquele estádio duvidava que o título seria nosso. Cinquenta anos depois, o Atlético voltava a ser campeão brasileiro. Assim que confirmamos o título, eu desci para o vestiário pra telefonar pro meu pai. Nós choramos juntos de novo, lembramos daquele dia no carro no Rio, eu agradeci por ele ter insistido quando eu já tinha jogado a toalha.
Foi o primeiro grande título da minha carreira. Depois ainda teve o da Copa do Brasil contra o Athletico, muito especial também porque naquele ano eu perdi o meu avô, que a vida inteira trabalhou como radialista cobrindo o Furacão. Numa visita a ele em Curitiba, eu tinha dito: “Ó, vô, aguenta firme aí, que no final do ano eu trago um troféu pra você”. Mas não deu tempo, infelizmente.
Apesar da perda dele, eu estava empanturrado de felicidade e satisfação pelas conquistas com o Galo. Ficou aquela sensação de que o futebol não precisava me dar mais nada… Mas faltava a sobremesa, né?
Um ano depois eu estava mais uma vez no carro com meu pai. Agora ele me levava pras Laranjeiras, onde eu ia assinar contrato com o Fluminense. Esse dia foi bem maluco também, porque eu entrei na sala do presidente do clube e, antes de dar bom dia, fui falando:
— A Liberta vai ser nossa, presidente.
Eu não sei de onde vinham aquelas palavras. Era como se elas saíssem sozinhas da minha boca. O presidente não comentou nada. Mandou só eu escolher o número da camisa.
— Quero a 2.
— A 2 já tá com o Samuel Xavier.
E aí eu insisti naquela parada:
— Então me vê a 23, porque em 23 a Liberta vai ser nossa.
Eu tinha isso muito claro. Só não me pergunte como ou por quê. Talvez pelo tamanho da minha empolgação em voltar pra casa, pro meu Rio de Janeiro, sem nenhum resquício daquela angústia que eu deixei quando saí pra Floripa depois de precisar treinar no “time dos rejeitados”. A minha história no Fluminense seria grande, eu podia sentir.
Logo no começo do ano nós fomos campeões cariocas em cima do Flamengo numa virada espetacular. Perdemos o primeiro jogo por 2 a 0 e, quando dez entre dez especialistas davam o título como favas contadas, sapecamos um 4 a 1 na segunda partida, com assistência minha pro Marcelo e um chute meu que no rebote o Alexander guardou, e rimos por último. Então veio a Libertadores. Aquela que sei lá por que eu disse pro presidente que ia ser nossa, antes mesmo de assinar contrato.
Eu entrei na sala do presidente e, antes de dar bom dia, fui falando: “a Liberta vai ser nossa, presidente”. Eu tinha isso muito claro. A minha história no Fluminense seria grande, eu podia sentir.
- Guga
O jogo mais marcante pra mim foi contra o Inter, na semifinal. Pela atmosfera nas duas partidas, mas também por uma coincidência. Assim como no primeiro duelo da final do Carioca, o Samuel Xavier, que era o lateral-direito titular, foi expulso no Maracanã. Eu entrei no lugar do John Kennedy pra recompor a defesa, acho que joguei bem e fui mantido pra volta, no Beira-Rio. Aí, bróder, vou te falar…
Esse jogo lá em Porto Alegre me deixou num estado de êxtase tão grande, mas tão grande, que eu passo todos os meus dias no futebol hoje trabalhando pra repetir aquilo. Primeiro que parecia jogo no Maraca. A torcida do Flu simplesmente dominou o Beira-Rio. Ainda no vestiário a gente ouvia os caras cantarem mais alto e não botava fé. Era de arrepiar.
Depois, como nós saímos perdendo, prevaleceu o mais puro suco do dinizismo: sai lateral e entra ponta, sai zagueiro e entra atacante, centroavante ajudando na marcação, cê tá maluco… Tudo o que a gente ouvia o Fernando Diniz dizer nos treinos aconteceu ali. Viramos pra 2 a 1 e fomos pra final contra o Boca.
E o que eu posso dizer? Talvez que ganhar uma Libertadores pelo Fluminense valeu cada lágrima, toda insegurança e aflição lá na minha adolescência. Valeu toda a volta por cima: do time dos rejeitados a campeão da América.
Não que eu quisesse mais, mas aquele lance meu no finalzinho da prorrogação bem que poderia ter sido a cereja do bolo, né não?
Lembram disso?
O Jhon Arias puxou o contra-ataque pela esquerda, tocou no Cano pelo meio e eu apareço que nem um trem pela direita. Mato a bola no peito, ela escapole um pouco e eu me estico todo pra chutar de biquinho. Nesse momento a Terra parece ter parado. Demora uma eternidade pra bola percorrer todo o caminho até terminar num beijo doce na trave e eu tenho tempo suficiente pra lembrar das coisas que realmente importam. Imagens e sentimentos invadem a minha cabeça:
O meu avô torcendo orgulhoso por mim.
A minha previsão pro presidente do Flu de que a Liberta seria nossa.
O Diniz me ligando depois que assinei o contrato pra dizer: “Garoto, eu só quero que você seja feliz jogando futebol”.
O meu pai pedindo por favor pra eu não desistir. As lágrimas que nós derramamos juntos. A máxima dele de que “a vida empurra quem confia”.
É, eu demorei, mas confiei. Por isso tô aqui pra contar.