A Felicidade é Azul
Sim, sim, sim! Digo com tranquilidade: a felicidade existe.
Eu tenho uma ideia bem clara do que se trata, porque provei bastante dela. Até acumulei um estoque grande e posso continuar saboreando, agora que me aposentei.
Foram 21 anos acumulando felicidade. Fui bom nisso, modéstia à parte. Felicidade faz barulho, sabe? Um chiado rápido da bola roçando na rede, ziiipt! — este só quem está perto tem o privilégio de ouvir. Depois um urro, um trovão que desaba dentro do campo, te abraça, ecoa pelo universo e pela eternidade. Felicidade também tem cor: ela é azul. Só azul como o céu. Ela é simples, mágica, inigualável. Felicidade pra mim é fazer gols.
E, madre mía!, como eu fui feliz jogando futebol.
Só que pra ser feliz eu precisei, antes, aprender a ser confiante. Taí uma coisa que a gente não aprende sozinho. Pode ser especialmente difícil se você é boliviano.
Bueno, vamos ser sinceros e realistas aqui: em quase todo o continente o que predomina em relação ao povo boliviano é a desconfiança e o preconceito. Seja nas oficinas de costura de São Paulo, nas lavouras da fronteira com a Amazônia ou nos campos de futebol. Não vou me alongar sobre as razões disso. Mas ouçam o que diz este boliviano de Santa Cruz de la Sierra que é o terceiro maior goleador das Eliminatórias Sul-Americanas (na minha frente só tem um argentino, Messi, e um uruguaio, Suárez): a autoconfiança é a chave de tudo.
Minha primeira lição de autoconfiança eu recebi numa tarde quente em Salvador, na Bahia. Eu tinha 17 anos, vinha de um começo excelente nas categorias de base do Oriente Petrolero e chegava para um período de testes no Vitória. Logo de cara fiquei impressionado com a qualidade dos jogadores brasileiros. A ponto de certo dia, aflito e ansioso antes de uma partida, eu correr até o alambrado do estádio pra conversar com meu pai:
— Eu não vou conseguir jogar aqui, papá. Os moleques são muito bons.
Ele olhou fundo nos meus olhos, apertou meus dedos na grade e disse assim, com energia:
— Hijo, escuta! Pra ser jogador de futebol você precisa acreditar em você. É um trabalho diário que leva tempo e ninguém pode fazer no seu lugar. Muitas vezes, na cara do gol, você vai chutar pra fora. Mas outra bola virá dois segundos depois e a sua única chance de acertar é se você acreditar que é capaz de acertar. Se duvidar, vai chutar pra fora de novo. Então trabalha firme, se cuida e esteja preparado, porque você vai ser uma estrela do futebol. Você vai brilhar, Marcelo.
Meu pai não era dado a adivinhações, premonições, essas coisas. Mas ele tinha jogado futebol, conhecia todos os caminhos, atalhos e armadilhas. Então, o que ele fez ali, naquela conversa de alambrado, não foi me passar confiança. Ele me ensinou a encontrar a confiança dentro de mim e lutar para não deixá-la fugir. A partir daquele dia eu passei a me dedicar aos detalhes: dormir bem, me alimentar bem, treinar bem, pra estar sereno e preparado quando a bola viesse pra mim dentro da área.
Eu nunca fui bom no um contra um não, por exemplo. Ficava admirado de ver o Ronaldo, um gênio do um contra um, das arrancadas de cavalo puro-sangue inglês, mas aquele tipo de jogo não era o meu forte. Por isso gastei mais tempo de trabalho no que eu fazia bem: finalização.
Até os 35 anos, prestes a encerrar a carreira, eu treinei finalização, porque muitas vezes a felicidade chega sem avisar e a gente precisa estar pronto pra não errar o movimento.
Repetição, repetição, repetição.
De tanto repetir nos treinamentos, são maiores as chances de o corpo fazer as coisas do jeito que a gente quer. Então eu repetia. Foi repetindo chutes de esquerda, chutes de direita e cabeçadas que eu encontrei a confiança dentro de mim.
Estou contando tudo isso pra vocês entenderem melhor de onde veio aquele meu começo sensacional no Cruzeiro, em 2007. Foi tudo tão rápido… Depois de conquistar dois Campeonatos Baianos no Vitória, desembarquei em Belo Horizonte completamente perdido. Acho que a torcida cruzeirense ficou um pouco perdida também.
Marcelo Moreno?
Atacante?
Boliviano?
Quem é esse cara?
De fato, nós não nos conhecíamos. Mas a felicidade acabou nos unindo pra sempre. Comecei a marcar muitos gols e, com isso, fui realizando um sonho atrás do outro.
Sempre achei que sonhar é uma boa maneira de avançar. Assim que um sonho se tornava realidade, eu imediatamente estabelecia outro. Isso também me ajudava a manter a confiança lá em cima. O que eu não esperava é que realizaria tantos sonhos tão depressa. Um a um eles foram acontecendo. E isso eu devo ao Cruzeiro.
Em 2007, joguei a Série A do Campeonato Brasileiro. Camisa do Cruzeiro. No ano seguinte, fui campeão mineiro: abri a goleada de 5 a 0 que metemos no Atlético na primeira partida da decisão e fiz o gol do título na segunda. Camisa do Cruzeiro. Ainda em 2008, com 21 anos, me tornei artilheiro da primeira Libertadores que disputei — e até hoje sou o único boliviano na lista de goleadores da competição. Camisa do Cruzeiro. Com ela, eu sentia fome. Marcava, fazia falta, batia pênalti, lateral, fazia gol de tudo quanto é jeito. Impossível esquecer. A felicidade era azul e eu queria mais.
Contudo, ela durou pouco. Acabei negociado com Shakhtar Donetsk, da Ucrânia, e caí num longo inverno de saudade. Nas quatro temporadas que eu disputei na Europa (outro sonho realizado, não vou negar), fui campeão da Europa League e continuei marcando muitos gols. Só que nenhum deles era azul. Por isso eu digo que a minha felicidade longe da Toca da Raposa, por maior que fosse, sempre foi pela metade.
Em 2012, voltei ao Brasil pra jogar no Grêmio e fui o maior goleador do time no Brasileirão daquele ano. Sabe do que eu mais gostava? De marcar no Olímpico e correr ao encontro da avalanche que a torcida fazia atrás do gol. Uma sensação maravilhosa, indescritível. Fiz 21 gols na temporada de despedida daquele estádio poderoso que foi um dos mais emblemáticos do mundo. Inclusive, o último em partidas profissionais disputadas ali: o da virada de 2 a 1 contra o São Paulo.
Com a camisa do Cruzeiro, eu sentia fome. Marcava, fazia falta, batia pênalti, lateral, fazia gol de tudo quanto é jeito.
- Marcelo Moreno
Pero mais do que os gols no Olímpico e a avalanche, a experiência em Porto Alegre me marcaria profundamente de outra maneira. Foi na cidade que eu conheci a minha esposa, foi onde eu fixei residência, onde nasceu a nossa filha e foi onde, muito tempo depois, eu seria resgatado da dor e do sofrimento causados pela morte do meu pai.
Antes, deixa eu contar sobre as minhas voltas ao Cruzeiro. Em 2013, eu troquei o Grêmio pelo Flamengo. Conquistei uma Copa do Brasil e gostaria de ter ficado mais. Mas faltou paciência pro Flamengo. Se eles tivessem esperado um pouquinho, só um pouquinho, teriam visto a minha melhor versão, que aconteceu no Cruzeiro no ano seguinte.
Quando o Alexandre Mattos me telefonou perguntando se eu gostaria de retornar, a primeira coisa que eu fiz foi dar uma olhada na lista de atacantes que o clube já tinha: Borges, Martinuccio, Dagoberto, William Bigode, Ricardo Goulart, mais Júlio Baptista e Éverton Ribeiro, meias que chegavam na frente. Bueno, la pelea va a ser dura, eu pensei.
Mas quando não foi?
Cair naquele Cruzeiro que foi campeão mineiro invicto e o campeão brasileiro que encheu os olhos do país foi um presente pra mim. Sempre me perguntam qual era o segredo do Cruzeiro de 2014. Aquele time tinha muitas qualidades. Tinha juventude, tinha experiência, tinha amor pela camiseta, jogava feliz. Mas, acima de tudo, era um time de caráter. Nós éramos 35 jogadores em condições de entrar de titular em qualquer partida. Se não fossem jogadores de caráter, gente disposta a pôr o Cruzeiro acima de qualquer coisa, a chance de dar tudo errado era grande.
Da minha parte, eu ajoelhava todos os dias de manhã antes de sair de casa e pedia a Deus pra ser o artilheiro do Brasil com o Cruzeiro. E naquele ano tão mágico eu aprendi que às vezes Deus não te dá o que você pede, e sim o que você precisa. Eu terminei como o terceiro goleador do campeonato. Em compensação, marquei o gol mais bonito da minha vida, o gol que botou meu nome dentro do coração dos cruzeirenses de uma forma que artilharia talvez não tivesse feito.
Foi no dia 7 de dezembro. O Mineirão mais azul que o céu, última rodada do Brasileiro, a gente já campeão. O Mayke foi na linha de fundo, cruzou pra área e eu estava lá. Ajeitei o corpo pra fazer direitinho o que eu tinha em mente. Entrei confiante e… Uma meia bicicleta linda, perfeita. Aí o barulho da bola na rede, ziiipt!, e o urro da galera me abraçando pra sempre.
Jamais vou esquecer de tudo o que vivi neste lindo país, onde descobri que a felicidade é azul como o céu.
- Marcelo Moreno
Até hoje, no meio de tantas felicidades que vivi no Mineirão, toda vez que vou até lá ou passo na porta, é desse gol que eu lembro primeiro. O gol que coroou o nosso título e escreveu meu nome nos livros: Marcelo Moreno, da Bolívia, o maior artilheiro estrangeiro da história do Cruzeiro, um dos maiores times do país do futebol. É felicidade que chama, não é?
Em 2015, quando fui jogar na China, eu desembarquei lá certo de que não aguentaria nem um ano. Mas a experiência me surpreendeu. Fui feliz também na China. Pagavam bem, davam boas condições pra treinar, pra levar a família e, pouco a pouco, eu fui me acostumando. Foram cinco anos jogando e vivendo no futebol chinês, mas sempre pensando no Cruzeiro.
Do outro lado do mundo, eu acompanhei o De Arrascaeta tomar o meu lugar como maior artilheiro estrangeiro do clube e, tristeza das tristezas, vi o Cruzeiro ser rebaixado para a Série B. Aquilo me quebrou o espírito. Eu ainda tinha dois anos de contrato na China, mas não consegui ficar longe do meu time do coração numa hora dessas. Voltei. E se você me perguntar por que voltar num momento de sufoco, eu só posso te responder de uma maneira: por amor.
Eu voltei porque eu amo o Cruzeiro.
Na minha terceira passagem, eu fiz de tudo, literalmente. Já no dia da apresentação, apareci com uma camisa do Cruzeiro pintada no meu corpo. Foi um jeito de mostrar pro mundo qual era a minha segunda pele. Também emprestei dinheiro pro clube, e não foi pouco. A situação era grave, a dívida era altíssima, havia risco de cair pra Série C, então eu achei que devia retribuir toda a felicidade que o Cruzeiro e seus torcedores me deram.
Tem horas na vida que é assim: a gente faz porque é preciso fazer. Se eu podia emprestar a grana, eu ia emprestar. Assim como a torcida. Se ela podia ir nos apoiar em todos os jogos, apesar da situação dramática, ela simplesmente estava lá lotando o Mineirão, nunca faltava. Foram temporadas muito difíceis pra todos nós, mas conseguimos. Em 2021 eu recuperei o meu lugar de maior artilheiro estrangeiro do clube: 54 gols em 147 partidas. E no ano seguinte o Cruzeiro voltou à primeira divisão.
Em janeiro de 2023 eu tinha ido pro Cerro Porteño com um estranho aperto no coração. Deixar o Cruzeiro mais uma vez bateu em mim como uma despedida do futebol. Em algum lugar da minha alma, embora ainda estivesse bem fisicamente e querendo jogar, eu sentia que o fim se aproximava.
Até que um dia eu entendi tudo…
Meu telefone tocou e eu recebi a pior notícia de todas: o meu pai, mi viejo, o meu herói, o meu ombro de todas as horas tinha partido.
Naquele momento eu tive a certeza de não conseguiria mais ser um jogador de futebol. Ainda tentei no Independiente del Valle, mas foi impossível prosseguir. De um jeito duro, eu aprendi que até os homens com muita felicidade acumulada ficam tristes. Pero, pra minha sorte, existia o Cruzeiro. E na hora que eu mais precisei a galera fez de tudo pra me alegrar. Fez aquela festa de despedida emocionante no Mineirão, antes da decisão do Campeonato Mineiro deste ano. Foi inesquecível e revigorante.
Aquele dia eu voltei pra casa com o coração mais leve, certamente. Mas o luto ainda era forte e ele me dominava. Na verdade eu vivia dois lutos agora: pelo meu pai e pelo fim da minha carreira de 21 anos no futebol.
Como a vida seria dali pra frente, sem meu pai, sem o futebol, sem gols, sem a felicidade?
Não teria sido melhor continuar jogando mais um pouco, pelo menos pra me distrair enquanto tentava me levantar?
Por que eu decidi me aposentar justo agora?
Eu não tinha resposta pra nada. Me estabeleci com a minha família em Porto Alegre pra esperar o tempo passar e então começou a chover. Choveu dias sem parar. A água foi subindo, subindo… De dentro do meu apartamento situado numa área segura da cidade, eu via pela televisão as pessoas perderem suas casas, suas lembranças, seus amores, perderem tudo na enchente.
Eu precisava fazer alguma coisa. Me juntei a algumas pessoas e começamos. Telefonava pra gente famosa que eu conhecia e pedia.
— Deixa comigo, Marcelo, vou mandar uma carreta de comida.
— Marcelo, tô enviando uma tonelada de água mineral.
— Ok, eu consigo mandar o helicóptero da minha empresa pra você.
Às vezes, eu recebia ligações de gente que eu não conhecia, mas queria contribuir. Muita gente de bom coração. E, de certa forma, sem procurar por isso, me tornei um ponto de referência e de confiança dos esforços pra diminuir o sofrimento das pessoas.
Só que elas nem imaginavam como me ajudavam a diminuir o meu. Passei cinco meses trabalhando, indo pra rua, vendo as necessidades, tentando levar algum conforto. E cada abraço que eu recebia me fazia chorar, porque lembrava dos abraços que eu recebia depois de marcar um gol e, principalmente, dos que ganhava depois de perder um gol. Esses eram os mais importantes.
Foi assim, de abraço em abraço, que eu fui saindo do luto. Fui recebendo as respostas para as minhas inquietações de jogador recém-aposentado. No fim das contas, concluí que parei de jogar futebol no momento em que passei por isso: para estar em Porto Alegre naquela hora trágica. Ao ajudar as pessoas que sofriam, eu recebi em troca os abraços que me curaram.
Ainda é tudo muito recente e são muitas coisas pra processar. Mas jamais vou esquecer de tudo o que vivi neste lindo país, onde descobri que a felicidade é azul como o céu.
Devo muito ao Cruzeiro. Devo muito ao provo brasileiro.
Muchísimas gracias,
MM