Chega de Abuso no Futebol

Alexandre Battibugli/The Players' Tribune

Imagine um grande ídolo do futebol. O cara que já marcou gol de título pelo seu time ou fez história defendendo o Brasil em uma Copa do Mundo. Naturalmente, você tem carinho por esse jogador como se fosse um amigo, alguém da família. No fundo, é isso que os ídolos representam para todos nós: uma pessoa querida.

Mas, de repente, você descobre que essa pessoa que admira já sofreu abuso sexual. Eu garanto que não só você, mas o país inteiro ficaria chocado com uma notícia dessas.

Também posso prever a onda de comoção que se espalharia nas redes sociais. Seria um acontecimento que abalaria o futebol brasileiro e toda a comunidade do esporte. Não poderia ser diferente.

É provável que outros jogadores se encorajassem a revelar suas histórias e seus traumas. E a nossa sociedade descobriria que abusos, dos mais variados tipos, são uma triste realidade na vida dos atletas.

Sabe por que isso ainda não aconteceu e dificilmente vai acontecer?

Porque aqui a lei do silêncio é a regra.

Ninguém viu, ninguém sofreu, ninguém ouviu falar… Ninguém quer falar. Mas eu quero.

Desde que decidi que não esconderia mais o que passei nem teria medo das consequências de romper o silêncio, minha percepção sobre o futebol mudou. Continuo amando o esporte que me presenteou com uma carreira bem-sucedida. Vivi momentos incríveis dentro dos gramados. Porém, eu também aprendi a reconhecer que nem tudo são flores e conquistas na trajetória de um atleta. Nem tudo vale a pena para se tornar um profissional.

Falar foi uma escolha difícil para mim. Mesmo assim, eu não me arrependo de nada. Eu precisava dizer: o abuso faz parte da cultura do futebol. 

Sim, muitos jogadores de futebol consagrados, inclusive de seleção brasileira, já foram vítimas de abuso sexual. Quem convive no meio sabe de vários casos. Mas ninguém fala sobre isso. Duvido que haja um atleta que nunca tenha presenciado ou ao menos ouvido falar de assédio e violência sexual no futebol. É bem mais comum do que as pessoas de fora imaginam.

É constrangedor, é desagradável, é pesado, mas nós temos que falar. Precisamos falar sobre abuso no futebol.



Antes de falar sobre isso, deixa eu te contar como eu me coloquei nessa posição de “dizer certas coisas que os outros não querem dizer”. Hoje eu tenho 40 anos, já pendurei as chuteiras e trabalho no Sindicato de Atletas de São Paulo. Eu não ganhei fortunas como profissional de futebol — tanto que sigo trabalhando depois de parar —, mas me orgulho muito da jornada que trilhei no futebol. Foram 20 anos de dedicação ao esporte. 

Divido minha carreira em duas partes: a ilusão e o sonho. Na primeira, sou eu tentando virar um atleta. Na segunda, prosperando na profissão. O futebol pode ser essas duas coisas. E, para mim, foram 10 anos de sonho e 10 anos de ilusão.

Vou começar com a parte boa, o sonho. Meu início na Portuguesa, a estreia como profissional, o primeiro pênalti defendido… Cara, depois de tantos anos de batalha, eu finalmente havia me tornado um goleiro de ponta.

Em 2005, recebi uma proposta para atuar em Portugal, pelo Beira-Mar. Eu fiquei seis anos na Europa. Fui duas vezes campeão da segunda divisão portuguesa, uma delas com o Portimonense. Também joguei na liga principal e até no Chipre. Conhecer novos países e culturas fez de mim uma pessoa melhor. Poucas profissões oferecem esse tipo de experiência, e eu sou grato ao futebol por todas as portas que me abriu.

Mas o futebol não é só o glamour que as pessoas imaginam. Ou, pelo menos, para a maioria dos jogadores ou na maior parte da nossa carreira. Aí entra a fase ruim, os 10 anos de ilusão.

Os primeiros anos até me tornar um goleiro profissional.

Ale Montrimas goleiro Bragantino
Alexandre Battibugli/The Players' Tribune

Eu comecei a jogar muito cedo. Ao perceber que era isso que eu queria para minha vida, não hesitei em sair de casa para correr atrás do meu sonho, sem imaginar que, a partir dali, eu entraria num enorme e desconhecido mundo de ilusões.

Tem gente que vive de enganar e iludir garotos sonhadores como aquele Alê de 12 anos de idade. Quando começamos no futebol, não fazemos ideia de que essas pessoas existem. E, ao nos depararmos com elas, a gente demora a descobrir suas verdadeiras intenções.

Eu fui assediado durante 10 anos da minha carreira em categorias de base. Assédio de todo tipo que você imaginar. Hoje eu digo isso sem constrangimento, porque sei que não acontecia só comigo. Eu vi e vivi tanta coisa nesse mundo do futebol que não poderia guardar para sempre.

Ainda lembro bem do período em que joguei no interior de São Paulo, tentando dar o último salto na minha formação. Tinha de 16 para 17 anos. Foi uma etapa difícil, em que eu comia muito mal, morava muito mal, dormia muito mal. Certa vez um colega que dividia concentração comigo me chamou e disse:

“Alê, vai passar um cara aqui pra levar a gente na pizzaria.”

Muita gente oferecia lanche pra nós nessa época. Pela situação precária em que vivíamos, nunca estivemos em condições de negar.

Daí parou um baita carrão na frente do nosso alojamento. Fomos eu, o colega que me chamou e mais dois. Sentamos três atrás e um na frente. Chegou na pizzaria e… Pô, eu comi pra caramba!! Fazia tempo que não tinha uma refeição tão farta. Naquele tempo, eu mal comia, porque o clube onde jogava não oferecia nada. Nem comida, nem ajuda de custo. Eu estava perdendo quilos e quilos a cada semana. Não podia desperdiçar nada naquela mesa. Nenhum pedaço de pizza.

Muitos jogadores de futebol consagrados, inclusive de seleção brasileira, já foram vítimas de abuso sexual.

Alê Montrimas

O cara que pagou o lanche nos tratou muito bem. Ele era tranquilo, divertido. Foi uma saída super agradável. Assim que terminamos, nós o agradecemos pela pizza. 

“Imagina, vocês treinam todo dia. Não é justo estarem nessa situação. Vocês merecem muito mais”, ele disse. 

Na volta para o alojamento, eu fui no banco da frente e meus três amigos atrás. Era um caminho curto. E eu consigo me lembrar perfeitamente de tudo que aconteceu no trajeto. Logo que o carro começou a se movimentar, eu senti uma mão na minha coxa. Mas não foi um toque acidental, do tipo: Ops, fui passar a marcha e esbarrei em você, desculpa. Não! A mão do cara tocou minhas partes íntimas. Do nada.

Na hora, você simplesmente não quer acreditar.

O que é isso? Será?

Não, não é possível?!! Isso não tá acontecendo comigo!

Eu fechei a cara, assustado e constrangido com a situação, mas, em vez de se afastar, a mão dele subiu em direção ao meu órgão sexual. Rapidamente, eu virei pra trás e perguntei aos meus amigos se ainda ia demorar pra chegar. 

Os colegas viram o que ele fez e começaram a me zoar, como se aquilo fosse normal. Na cabeça deles, eu não era um jovem que estava sendo sexualmente abusado. Para todo mundo ali dentro, menos pra mim, tudo parecia não passar de uma brincadeira.

Apesar de ser maior que o cara, eu congelei na hora que ele me tocou. Congelei, completamente paralisado, sem reação. Entrei em pânico.

Como eu fiquei muito desconfortável, ele se ligou, tirou a mão da minha perna e logo chegamos no alojamento.

Quando o carro parou, eu nem me despedi de ninguém. Abri a porta e subi correndo para o meu quarto. Fiquei com nojo daquele cara. Meu estômago até embrulhou. Quase vomitei toda a pizza que tinha comido. Pensei em desistir do futebol, de nunca mais pisar num ambiente como aquele.

É claro que eu me culpei muito. Antes de dormir, eu não parava de remoer a cena…

Por que eu não disse não”? Por que eu não mandei ele parar? Por que eu não dei um soco nele? 

Só hoje eu tenho a resposta: a gente sempre acha que está preparado para passar por isso, para dizer “não” a um abusador. A verdade é que, naquela idade, àquela altura da vida, eu ainda não estava preparado para lidar com o assédio sexual. Já não era mais uma criança. Inclusive, eu era fisicamente mais forte que o cara. Mesmo assim, não tive forças para reagir.

Depois, um dos meus colegas que estava no carro veio falar comigo, meio que justificando o que tinha acontecido.

“O cara tá louco por você, meu!”.

É tão surreal que eu podia sentir que meu amigo pensava que estava me ajudando, porque o cara dizia que iria pagar tudo que eu pedisse, quantas pizzas eu quisesse comer, se topasse sair com ele. Um cara que deixou bem claro que queria me comprar em troca de sexo. 

Eu estava totalmente vulnerável. Fora de casa, longe dos meus pais, sem dinheiro, comendo mal e num clube horrível. Por sorte, eu tinha uma válvula de escape, uma saída para não ceder àquela investida, que era a minha família. Eu sabia que, ao contrário da maioria dos meus colegas, se o futebol não desse certo para mim, eu tinha para onde ir. 

Ale Montrimas The Players Tribune
Alexandre Battibugli/The Players' Tribune

No meu caso, eu consegui me recuperar do abuso e das tentativas de assédio que sofri. Toquei minha carreira em frente e, a cada novo passo, eu tinha mais certeza de que me tornaria um jogador profissional. Porém, outros colegas não tiveram a estrutura familiar e emocional que eu tive para escapar de um abuso e virar essa página. Vi muitos deles sofrerem coisas terríveis. E disso eu nunca vou esquecer.

Geralmente, o aliciamento de atletas que vinham de outras cidades acontecia nas concentrações por parte de treinadores, preparadores e dirigentes. Mas acontecia também fora do alojamento. A gente estava numa boate, por exemplo, e chegava alguém do clube dizendo que fulano de tal queria pagar uma bebida, que o empresário X estava a fim de sair com sicrano e poderia dar uma força na carreira. Eu sempre consegui me desvencilhar, mas convivi com outros jogadores que cediam. Na maioria das vezes, por necessidade. Por medo de ser abandonado, de passar fome ou de perder a chance de virar jogador.

Em alguns casos, a prática sexual era forçada. Em outros, consentida. De qualquer forma, mesmo concordando, uma criança ou adolescente não tem discernimento suficiente para medir o impacto de uma decisão como essa. Quem sofre violência sexual acaba levando um trauma para o resto da vida. Isso talvez explique parte dos episódios de depressão e alcoolismo vividos por muitos jogadores.

O abuso psicológico costumar vir antes do abuso sexual. A molecada tem começado no futebol cada vez mais cedo. Aos 10, 11 anos, um garoto já sente a obrigação de sustentar sua família. E os abusadores que se infiltram nesse meio estão sempre oferecendo atalhos, como se o abuso fosse um pedágio para cortar caminho até o profissional.

Assim que parei de jogar, em 2014, comecei a falar sobre o que eu tinha sofrido na época da base e a dar palestras para jovens atletas alertando sobre os perigos do futebol. Então, saíram algumas matérias que me identificavam na manchete como “o goleiro que foi abusado”. 

Um dia minha mãe veio falar comigo: “Filho, você precisa dizer a eles que não foi abusado”.

Para muitas pessoas, ter sido abusado significa ter sido estuprado. Ou que, para sofrer um abuso, é preciso literalmente ter tido relação sexual com o abusador contra a sua vontade. Mas o fato é que apenas um toque numa criança ou adolescente pode se configurar um abuso, com sequelas psicológicas para a vida inteira.

Agora eu entendo que, mesmo não tendo sido vítima de um estupro, eu sofri abuso sexual. E não preciso sentir vergonha por isso. Esse entendimento me motivou a fazer algo, a lutar contra a lei do silêncio. Colocar o dedo nessas feridas é uma forma de sensibilizar as pessoas.

Nas minhas palestras, eu tento explicar, em primeiro lugar, o que é o abuso sexual. Como isso acontece no esporte e o que fazer para evitar. Os jogadores hoje vivem numa redoma. Não é interessante para quem ganha dinheiro com futebol que os atletas tenham estudo e informação. É importante que os clubes se comprometam com a educação dos jovens formados em suas categorias de base. No entanto, poucos times oferecem condições para que o atleta em formação não abandone a escola.

Abuso e exploração sexual de crianças sempre existiram. Nas gerações passadas, na geração da minha época e na geração atual. Infelizmente, fazem parte da cultura do futebol.

Temos de quebrar esse tabu e o preconceito que existe no meio. Lutar contra o abuso sexual é defender a integridade do esporte.

Alê Montrimas

Por isso mesmo, acaba sendo um problema ainda mais difícil de combater. Crianças e adolescentes, muitas vezes, sequer tomam consciência de que foram abusados, não sabem que são vítimas de um crime. Os abusadores se aproveitam do sonho dos garotos para fazer com que se calem e, acima de tudo, entendam o abuso como uma precondição para vingar na carreira.

Numa visita a um clube do interior de São Paulo, o diretor me contou que os atletas, meninos de 13, 14 anos, são abordados por homens que oferecem pizza, chuteira ou 50 reais em troca de um programa sexual. Na hora, me lembrei do assédio que sofri no dia da pizzaria. E fiquei angustiado por saber que essas histórias seguem se repetindo.

O pior é que estão longe de acabar. Os jogadores têm medo de denunciar. E os clubes, mesmo que não cometam diretamente as violações, não sabem lidar com isso ou são coniventes com abusadores. Salvo grandes clubes, que contam com o suporte de psicólogos, assistentes sociais e pedagogos, as equipes de base expõem seus jogadores não só ao assédio sexual, mas a vários outros tipos de abuso, como trabalho infantil, tráfico de pessoas, violência física e psicológica. 

Ale Montrimas goleiro
Fernando Dantas/Gazeta Press

Quero aproveitar que hoje é Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes para mandar um recado à comunidade do futebol. Primeiro, a quem comanda o esporte.

Dirigentes de clubes e da CBF, é hora de agir. Vocês têm o poder para viabilizar uma grande campanha de conscientização sobre abusos no futebol brasileiro. Não podemos varrer a sujeira para debaixo do tapete.

Pai, mãe ou familiar de meninos e meninas que sonham se tornar jogadores, converse com a garotada. Mostre que nesse caminho, por mais promissor que pareça, também tem muita ilusão. Quanto mais informações eles tiverem, maiores as chances de prevenir qualquer tipo de violação.

Por fim, uma mensagem final aos atletas e a todos que amam o futebol: vamos cobrar, vamos nos mobilizar, vamos falar!

Não podemos mais aceitar que abusos sejam tratados como parte da cultura do nosso esporte. Temos de quebrar esse tabu e o preconceito que existe no meio. Os casos tão conhecidos por quem é do ramo, mas pouco denunciados, não têm nada a ver com sexualidade ou orientação sexual. São crimes, isso sim, que devemos combater urgentemente.

Também não podemos esperar o dia em que um ídolo nacional revele ter sido vítima de abusos para tomar providências. Isso aconteceu na Inglaterra, quando o ex-jogador Andy Woodward, que tive o prazer de conhecer, decidiu contar publicamente o que sofreu nas mãos de um predador sexual que atuava como treinador. Depois disso, várias outras vítimas se encorajaram a denunciar abusos sofridos nas categorias de base dos clubes ingleses. Um escândalo de repercussão mundial.

Tenho certeza que aconteceria a mesma coisa no Brasil, porque, assim como eu, qualquer profissional que tenha conhecido por dentro o mundo de ilusões do futebol sabe de várias histórias de assédio, abuso e exploração sexual. Esse é um assunto frequente em conversas de atletas no vestiário, mas ninguém se dispõe a levar a questão para fora da bolha dos clubes.

Até quando vamos permanecer em silêncio?

Eu não carrego mais esse peso. Estou em busca de mais aliados na luta por um futebol seguro para crianças e adolescentes.

Lutar contra o abuso sexual é defender a integridade do esporte, para que, no fim das contas, o sonho vença a ilusão. Para proteger nossos futuros ídolos, essas pessoas que, de tão queridas, poderiam ser um amigo ou alguém da nossa família. E não desejo que ninguém tenha de passar por isso, muito menos quem a gente gosta.

Chega de abuso no futebol.

Ale Montrimas autografo

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