Essa é Para o Povo Brasileiro

Thais Magalhães/CBF

Salve, meu povo!

Ary Borges falando. Tô aqui na Austrália, reta final da nossa preparação para a Copa do Mundo. 

Copa do Mundo, gente!!! 

Estamos trabalhando forte e, assim como o orgulho de ser brasileira, de representar o nosso país e honrar a luta pelo futebol feminino de todas que já vestiram essa camisa, a ansiedade nem cabe de tão grande. Eu acho até que tô precisando de uma pausa pra segurar a adrenalina, colocar as ideias no lugar. 

Então, nada melhor pra isso do que tirar um tempinho para escrever pra vocês, pra gente falar de… futebol, do que mais? Rsrsrs. Bora? 

Futebol pra mim é assim: ar, oxigênio. Um treco que permite viver com intensidade, respirar, que ilumina os caminhos quando tudo parece meio escuro, bota a gente junto de quem a gente ama e, melhor de tudo, cria aquelas memórias que dão sentido, organizam os sentimentos e ajudam a gente a seguir em frente. 

O futebol não deixa a gente esquecer! 

E, relembrando aqui do meu corre, acho que tudo o que eu fiz — e até o que eu deixei de fazer — foi pra chegar neste exato momento da minha vida. 

Que momento? 

Oras, eu sou jogadora da Seleção Brasileira, vou disputar uma Copa do Mundo e ontem eu toquei a bola pra Marta e a Marta tocou a bola pra mim. Vocês têm noção? 

A MARTA! 

Vou tentar explicar melhor, pra vocês sentirem a grandeza dessa parada.

Ary Borges Players Tribune
Thais Magalhães/CBF

Na minha primeira convocação pra Seleção principal, antes de me juntar ao grupo, eu só conseguia pensar numa coisa: Pô, nem faz tanto tempo eu era uma canela fina de cabelo rabo de cavalo e tava na minha cidade, São Luís do Maranhão, sentada com a minha avó na frente da casa dela… 

A gente passava horas assim, às vezes sem dizer nada, só olhando a rua, sentindo a brisa do mar e curtindo uma a presença da outra. Meus pais longe pra caramba, tentando uma vida melhor em São Paulo como tantos e tantos nordestinos que fazem sacrifícios gigantes, deixam sua terra e até os filhos pequenos pra trás (como foi meu caso) pra buscar o oxigênio deles. 

E de repente eu tava ali, tremendo de emoção ao ligar pra eles pra contar que a Pia Sundhage tinha me chamado e que eu ia tocar a bola pra Marta e a Marta ia tocar a bola pra mim. 

Nessa primeira convocação, meu pai só chorava e a minha mãe falava assim: “Ariadina, minha filha, tire fotografia com Marta! Não esquece de tirar foto com a Marta!” E eu não consegui. Não tive coragem de pedir. A foto só saiu bastante tempo depois, no começo deste ano, quando a Marta voltou à Seleção na SheBelieves Cup. 

Futebol! É muita emoção junta. É tudo!

Selecao Brasileira feminina Copa do Mundo
Thais Magalhães/CBF

Foi o futebol que me reaproximou de meus pais, vocês sabiam? Eu era bem pequena quando eles partiram pra São Paulo. Devia ter uns dois anos. Então foi a minha avó quem me criou primeiro. Mas eu sempre soube que era uma coisa temporária, que uma hora a gente ia viver junto outra vez. 

Enquanto isso não rolava, eu ia sendo mimada pela minha avó. E ela sempre foi exigente comigo: “Olha, seus pais saíram porque é o único jeito de eles te darem estudo de qualidade. Eles pensam no seu futuro. Então você precisa se dedicar, tirar notas boas, porque essa é a melhor maneira de valorizar o sacrifício que eles estão fazendo”. E minha avó, imagina, mulher criada no interior do Maranhão, uma sensibilidade incrível, mas muito prática. Uma vez a minha mãe me mandou de São Paulo uma mochila com rodinhas. E minha avó lá é mulher de rodinhas?! A mochila tombava, as rodinhas travavam e ela não tinha paciência praquilo. Colocava a mochila na cabeça, como fazia com a lata d’água quando ela era criança, segurava na minha mão e “Vamo logo, Ariadina, senão você chega atrasada na escola!” Dona Lindalva não é mole não. 

Te amo, vó!

Eu ia pro colégio na parte da manhã e à tarde fazia reforço. Só depois das 16h é que eu fechava os cadernos e ia brincar. E bem atrás da casa da minha avó tinha o quê? 

Um campinho de futebol! 

Meu tio jogava num time de várzea e cuidava do campo. As chaves ficavam com ele, então eu tinha acesso livre. Quando não tinha, a gente juntava duas ou três crianças numa bicicleta, todo mundo bem pequenininho, o maior pilotava a bike, e a galera ia jogar na beira da praia. 

Ai, que saudade de bater bola na maré seca, gente! De conhecer os horários do mar, sacar a natureza e aproveitar cada segundo. Taí a memória mais marcante dessa primeira fase da minha infância, quando o futebol era só tudo isso: uma brincadeira no campinho do meu tio ou na maré seca do mar de São Luís.  

Não me passava pela cabeça ser atleta. Eu adorava jogar e adorava viajar com meu tio quando o time dele ia jogar em outra cidade. Nessas ocasiões, quando acabava o primeiro tempo, o meu primo me chamava: “Vamo entrar no campo pra treinar passe, Ary! Vamo lá”. 

Esse primo teve um papel importante também. Ele me incentivava, me protegia e fazia o futebol parecer normal para uma menina, apesar de todo mundo dizer que não era. 

Nessa primeira convocação, meu pai só chorava e a minha mãe falava assim: “Ariadina, minha filha, não esquece de tirar foto com a Marta!”

Ary Borges

Às vezes, no campinho lá atrás da casa da minha avó, rolava o famoso contra valendo um refrigerante. Eu chegava pra jogar e os meninos falavam que eu não podia, porque era menina. O meu primo não queria nem saber: “Se a Ary não jogar, ninguém joga”. Meu primo e meu tio sempre disseram que não tinha problema uma garota gostar e jogar futebol. Quem pegava mais no meu pé era a minha avó mesmo, mas por outro motivo: “Já fez a lição de casa, Ariadina?” Rsrsrs. 

Hoje a dona Lindalva é a pessoa da família que mais gosta de me ver jogar. Diz que fica nervosa, porque me batem demais, mas mesmo assim ela aguenta firme na frente da TV.

Um dia meus pais resolvem se casar de fato e isso virou uma espécie de gatilho pra gente se reunir, pra eu ir morar com eles em São Paulo. Mas eu fiquei meio assim, sabe? Foi um momento muito difícil pra mim. Muito mesmo. Eu tinha 10 anos. A minha avó, por causa de uma queda em casa, tinha quebrado a perna e estava com dificuldade de se locomover. 

Pô, na hora que a minha avó mais precisa de mim eu vou deixar ela sozinha? Vou abandonar ela? Era isso que eu pensava. 

Então, por mais que eu quisesse estar com meus pais, eu não queria deixar a minha avó. Foi duro. Eu fiquei confusa e chorava como estou chorando agora aqui em cima do caderno em que escrevo esta carta pra vocês. E nessas horas de beco sem saída o que a gente faz? Joga pro céu, que o céu resolve, é ou não é? Só que no meu caso o céu era o futebol. E o futebol resolveu.

Ary Borges Brasil Copa do Mundo feminina
Thais Magalhães/CBF

Vendo a minha aflição, meu tio me confortava. Ele falava: “Ary, pensa no futebol. Você ama o futebol, sabe jogar. Em São Paulo você talvez tenha mais oportunidade de se desenvolver”. E a minha avó, sábia pra caramba, deu a bênção dela: “Na vida, as coisas acontecem quando têm que acontecer. Os seus pais já viveram tempo demais longe de você. Tá na hora de ir ficar com eles e correr atrás de seus sonhos lá. Eles vão te ajudar e eu vou ficar bem, não se preocupa”. Pô, rodeada de gente sensacional assim… O que mais eu podia desejar? 

Sempre vou ser grata aos meus familiares. Nos momentos mais duros da minha vida eles estavam ali fazendo de tudo pra me deixar segura e feliz. Um privilégio. Nessa história toda, o passe pro gol foi meu tio telefonar para o meu pai e mandar mais ou menos assim: “Olha, Dino, a Ary tem uma coisa forte com o futebol. E ela joga muito bem. Acho que pode ser um jeito legal de você estar junto dela nessa transição, nesse momento complicado pra ela”.

E foi assim mesmo. Chegando em São Paulo eu comecei a me conectar com meu pai por meio do futebol. São-paulino doente, ele queria que eu torcesse pro time do coração dele, aquela coisa bem de pai pra filha. Então a gente passava um tempão juntos falando de futebol, assistindo futebol, respirando futebol. Eu, que já gostava pouco do assunto, né? kkkkk, fiquei ainda mais hipnotizada e encantada com o futebol. Comecei a perceber que aquilo era mais forte do que uma brincadeira de criança, que mais cedo ou mais tarde ia se tornar a minha razão de viver. 

Em São Paulo eu continuei indo pra escola de manhã e, à tarde, jogava bola numa quadra com os meninos do colégio. Só tinha eu de menina. Um dia meu pai, voltando do trabalho, passou na quadra e me viu jogar pela primeira vez. Mais tarde, na mesa do jantar, ele comentou que tinha me visto e ficou impressionado. “Acho que tá na hora de buscar algo mais sério pra você.” E foi assim que eu entrei numa escolinha do Santos, a Meninos da Vila. 

No comecinho eu treinava com as meninas, mas era um pouco desanimador, porque nós éramos poucas, umas três ou quatro, e nem dava pra fazer um coletivo. Meu pai falou que só ficar dando volta em cone não tava sendo bom pra mim e perguntou se eu gostaria de treinar com os meninos. 

Pô, é claro que eu gostaria!! 

Ele foi falar com a direção da escolinha, precisou assinar um termo de responsabilidade, e eu fui. No primeiro coletivo, eu fui a última a ser escolhida e fiquei arrasada. Lá do alambrado meu pai percebeu. Ele me chamou pra tomar uma água e me tranquilizou: “Uma menina jogando é novidade pra eles. Quando eles virem do que você é capaz, as coisas vão ficar numa boa”. Eu voltei pra quadra e passou um tempão sem tocarem a bola pra mim.

 Ah é? Vocês vão ver só… 

Quando finalmente recebi uma bola, saí driblando todo mundo e só parei dentro do gol. Pronto. Dali pra frente tudo mudou.

De vez em quando iam uns olheiros na escolinha. Até de outros clubes. Meu pai colava neles e, todo orgulhoso, perguntava se não dava pra me levarem pra fazer um teste. Os caras se desculpavam: “Poxa, sua filha joga muito, mas eu vim observar os meninos”. 

Nessa altura, eu, meu pai e a minha mãe já tínhamos entendido o tamanho do futebol na minha vida. Ali a brincadeira de criança tinha acabado. Agora era pra valer. Então acho que meu pai só pensava nisso. Tanto que em outra ocasião, voltando do trabalho de novo, ele viu uma garotada de colete roxo jogando futebol. Tinha muita menina e parecia bem organizado, porque todos os dias que ele passava de ônibus a galera tava treinando. Era o Centro Olímpico do Ibirapuera. 

Ele me levou lá, eu fiz uma peneira com outras 90 garotas e passei. Foi o primeiro grande salto na minha carreira de atleta. Quer dizer, era a minha carreira de atleta de futebol se iniciando. Não teria mais volta.

O Centro Olímpico foi determinante. Eu tinha 11 anos e treinava em dois horários, na minha categoria e depois com a categoria acima, das meninas mais velhas. Três vezes por semana. Ali, embora fosse uma criança ainda, eu passei a ter uma rotina de atleta. Se era aquilo mesmo que eu queria pra minha vida, teria que seguir alguns padrões mais sérios, tipo: alimentação, sono, compromisso, tudo mais. 

Foi uma grande transformação pessoal. Eu morava no Capão Redondo e ia sozinha de ônibus pro Ibirapuera. Eles exigiam que a gente tirasse notas boas na escola pra poder treinar. Eu era uma atacante mirradinha e apanhava das zagueiras que nem gente grande. Mas até a cair o pessoal do Centro Olímpico ensinava a gente. Era impressionante. E além de tudo, o time profissional do Centro Olímpico tinha grandes jogadoras. Quase todas da Seleção Brasileira jogavam lá. Elas eram muito boas e viviam do futebol. Eu olhava pra elas e pras coisas que eu estava vivendo ali e pensava: Sim, é possível. É isso o que eu quero fazer. Eu vou ser jogadora de futebol profissional.

Ary Borges Selecao Brasileira Sport
Cortesia de Ary Borges

Fiquei anos no Centro Olímpico, sempre nesse esquema de treinar e jogar em duas categorias. Quando eu estava no sub-17 e no sub-20, um dos meus treinadores, o Jonas, foi contratado pelo Sport do Recife e me levou com ele. Fui morar sozinha pela primeira vez. 

Tchau pai, tchau mãe, agora é a minha vez de deixar vocês. 

No Sport eu conquistei meu primeiro título profissional, o Campeonato Pernambucano, e comecei a ser convocada pra Seleção sub-20. Depois, o meu segundo treinador no Centro Olímpico, o Lucas, foi pro São Paulo e me chamou. Imaginem a euforia do meu pai… Até porque, no São Paulo, ainda me deram a camisa 10 que um dia foi do Raí, o ídolo dele.

Pra mim, o tempo no São Paulo foi de mais conquistas e aprendizado. Só que tinha mais… 

Tinha mais no Palmeiras. 

Quando chegou a proposta, meu pai até brincou: “Se você for, a camisa do Palmeiras eu não vou vestir, filha. Esquece!”. Rsrsrs

Só que a proposta do Palmeiras era bem legal, porque eles foram claros: era um projeto pra eu ajudar o clube, mas também pra eu chegar e me firmar na Seleção principal. De novo a Ary dividida e tendo que tomar uma decisão importante. 

Me salvei lembrando das palavras da minha avó quando eu deixei a casa dela pra ir viver com meus pais: “Na vida, as coisas acontecem quando têm que acontecer”. E foi assim que eu decidi agradecer ao São Paulo e pular o muro pra me tornar jogadora do Palmeiras.

Eu estava segura da mudança. E o Palmeiras me fez muito bem. Nós fomos campeãs Paulistas e da Libertadores. Eu me aprimorei, me tornei uma jogadora mais regular e acho que isso possibilitou a minha primeira convocação para a Seleção principal, com título de Copa América e tudo. Serei eternamente grata ao Palmeiras por ter me oferecido as melhores condições para cumprir esse projeto traçado lá no início.

Estão dizendo que esta vai ser a melhor Copa de todas. E se depender de nós, vai mesmo. 

Ary Borges

De repente, a menina que chutava bola na maré baixa de São Luís foi até jogar futebol na liga dos Estados Unidos, uma experiência incrível, e agora tá aqui, contando as horas para disputar uma Copa do Mundo que estão dizendo que vai ser a melhor de todas.

Se depender de nós, vai mesmo. 

Galera, vou contar uma coisa pra vocês. O ambiente na Seleção é sempre legal, mas como o de agora eu nunca vi. Tá demais! E eu sei o motivo. 

É a Marta. 

Sinto uma vontade enorme em todo mundo de estar com ela, ouvir ela falar, ver ela jogar. Talvez porque a gente sabe que deve ser a última Copa da Marta. Então tá rolando uma união forte e emocionante aqui. A gente quer correr por ela, quer apanhar das zagueiras por ela, quer derrubar as atacantes adversárias por ela. A gente quer simplesmente curtir cada segundo de nossas vidas ao lado da Marta nesse momento grandioso. 

E a Marta, seis vezes eleita a melhor do mundo, a melhor de todas nós, a melhor de todos os tempos, está sempre disponível. Ela é uma mulher inacreditável. Treina pra caramba, se dedica, tem uma baita atenção e carinho com todo mundo. Pergunta como a gente tá se sentindo, se precisa de alguma coisa, quer sempre ajudar e outro dia até juntou num grupinho querendo saber qual é a dancinha do momento no TikTok! Rsrsrsrs. Dá pra acreditar? 

Marta Ary Borges Kerolin
Thais Magalhães/CBF

Como eu disse antes, é o futebol! O futebol criando e espalhando memórias!

Olha, pessoal, eu sei que o caminho vai ser duro. A Seleção não está entre as favoritas este ano. Mas pensa uma coisa comigo. Treze anos atrás eu estava sentada na frente da casa da minha avó, olhando a rua, sentindo a brisa do mar e pensando nos meus pais que estavam tão longe de mim. E ontem, num coletivo da Seleção Brasileira, eu toquei a bola pra Marta e a Marta tocou a bola pra mim. 

Se isso aconteceu, tudo pode acontecer.  

Torça pra nós.

Acorda pra nós.

Olha pra nós.

É o Brasa!

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