De Volta Para o Futuro
Houve um tempo, no Brasil, em que somente os meninos podiam jogar futebol.
Não, não era um filme de ficção. Acontecia no nosso país mesmo, lugar onde aprendemos que esse esporte é uma paixão nacional.
Esse amor, no entanto, era proibido para as mulheres.
As mulheres simplesmente não podiam sonhar.
Tive a sorte e o privilégio de não ter vivido nesse tempo, quando havia uma Lei que não permitia que as garotas pudessem praticar esse esporte como uma pessoa comum.
Quando eu nasci, na década de 1990, as mulheres já podiam jogar futebol. Ainda assim, quem se aventurasse nesse esporte poderia ser ridicularizada, mesmo que a FIFA já tivesse organizado a Copa do Mundo feminina.
Ser ridicularizada poderia acontecer de diversas formas: não davam estrutura para jogar os campeonatos; não havia cobertura adequada da mídia; ou, o que era mais comum, riam da nossa cara.
Vocês sabem o que aconteceu com a Marta, que poderia até mesmo não ser quem é hoje, se tivesse desistido. Se aconteceu com ela, a melhor de todos os tempos, por que não poderia acontecer com todas as outras?
Aí é que tá. Não deveria ser assim!! Deveríamos ser capazes de poder jogar futebol. Deveríamos ser capazes de fazer o que quiséssemos. Deveríamos, acima de tudo, poder sonhar.
Não que eu esteja reclamando do que houve comigo. Na verdade, eu já pude aproveitar outro momento do futebol feminino. E acho que, como toda grande mudança, isso aconteceu primeiro dentro da minha casa.
É que meus pais jamais me impediram de jogar futebol. O quê? Não acredita? Mas foi isso mesmo que aconteceu. Quando criança, eu jogava bola perto da minha casa com os meninos da minha rua.
Sim, com os meninos. Eles não apenas aceitavam jogar futebol comigo, como disputavam para me ter nos times deles. Eu não ficava por último porque já demonstrava habilidade com a bola nos pés.
E é até engraçado lembrar isso, pode parecer que estou me sentindo, mas tenho de contar essa… Teve uma vez que rolou um campeonato de embaixadinhas entre as escolas do bairro. E eu fiz um monte, passando na frente do garoto que ficou em segundo. Não me levem a mal, eu não queria ser melhor do que ele. É que o futebol me condicionou a querer fazer sempre o máximo, jogar sempre melhor. E, claro, o meu pai me dava umas dicas naquela época: “Não faz embaixadinha pra longe, mantenha o controle da bola, para que ela fique perto de você”.
Meu pai nunca foi boleiro, mas sempre foi um craque em cuidar da filha, me deixando à vontade para fazer minhas escolhas e me protegendo de todo e qualquer perigo.
Sim, fui mimada — no bom sentido ;-)
Acho que é por isso que ele e minha mãe guardavam uma preocupação: Como é que a Bia vai fazer quando não puder mais jogar futebol?
Falando sério, essa era uma dificuldade que já aparecia no meu horizonte. Olhando pra trás, não gosto nem de pensar, porque eu nunca me vi fazendo outra coisa que não fosse jogar futebol.
Mas e se não desse certo?
E se não tivesse uma categoria feminina?
E se me obrigassem a parar de jogar?
E se eu não pudesse sonhar?
Como eu nunca deixava a bola de lado, mesmo quando queria brincar de boneca, para mim, jogar futebol era um caminho natural — e vejo hoje como fui privilegiada por viver tudo isso.
Eu já pude aproveitar outro momento do futebol feminino.
- Bia Zaneratto
Ah, sim, claro que existiam alguns comentários que demostravam o incômodo de muitos com uma menina jogando futebol. Mas, sinceramente, eu não ligava pra isso, não para esse tipo de comentário.
Ainda assim, meus pais tinham medo: A Bia vai sempre ver os meninos indo pra Seleção, mas ela não vai ter esse caminho.
Como eu nunca me vi fazendo outra coisa, aos 13 anos, já estava jogando pelo adulto da Ferroviária.
T-R-E-Z-E A-N-O-S!
Posso garantir pra vocês que, naquela época, as meninas que jogavam futebol faziam pelo contrato mais valioso do mundo.
Nós jogávamos por amor. Apenas por amor.
Os garotos se esforçavam, faziam vários testes, alguns deles se viam atuando por clubes grandes, as possibilidades eram muitas… Mas, nós, mulheres, não tínhamos nada disso.
Nós só queríamos jogar futebol.
E foi assim, vivendo por esse sonho, que eu fui em frente. Em pouco tempo, tinha me destacado a ponto de chamar a atenção de quem eu sequer imaginava: da comissão técnica das seleções de base da CBF.
Nessa mesma época, vocês podem até duvidar, mas eu tinha conquistado até mesmo o pessoal da escola onde eu estudava. A direção gostava de mim e não pegava no meu pé, permitindo que eu fizesse trabalhos para compensar as minhas faltas... #quemnunca
Mas o melhor mesmo estava por vir.
Alguns anos depois de começar a jogar pela Ferroviária, tive a chance de estar ao lado de algumas das maiores atletas do esporte brasileiro, num time que faria história: o Santos, das Sereias da Vila.
Pode parecer estranho pra quem lê este texto agora, mas nos anos 2000 os times de futebol tradicionais não contavam com equipes fortes para as mulheres. Poucos clubes investiam nisso. E o Santos foi lá e montou um timaço: Aline Pellegrino, Cristiane, Marta... e, acreditem, eu estava lá. Vivi isso junto com elas.
Esse time do Santos foi campeão de tudo, chegando ao Bi da Libertadores, e a história era tão fantástica que... acabou. Não entendemos direito, mas aquela geração vencedora infelizmente foi desfeita.
Tem coisas que acho que nunca vou entender mesmo.
Mas eu não ia desistir do futebol, não agora que tinha chegado tão longe, não agora que já tinha chegado à Seleção Brasileira.
A primeira vez na Granja Comary a gente nunca esquece...
Faz frio em Teresópolis, mas, a maneira como nós, que estávamos chegando, fomos acolhidas, dava um quentinho no coração.
E o que dizer da Marta? Sempre me tratou muito bem, sempre me abraçou, dando uma lição para todas nós. Se ela nos tratava assim, por que deveríamos agir diferente com quem vivia aquelas emoções pela primeira vez? O futebol me ensina, mesmo quando não é uma aula de tática.
A minha história na Seleção Brasileira, no entanto, ainda estava para ser escrita. E eu estava longe do glamour de estrela do futebol. Pra vocês terem uma ideia do que eu estou falando, teve uma vez, jogando em Pernambuco, pelo Vitória de Santo Antão, que eu e minhas companheiras de clube tivemos de correr… Não, não era um treinamento. É que o laptop de uma delas tinha sido roubado e vimos o ladrão sair em disparada. O quê? Não deu outra: fomos atrás dele para pegar o computador de volta. Hahaha!
Vocês podem rir, porque agora essa história é engraçada, mas na época eu não tive coragem de contar pros meus pais.
O motivo? Tinha medo de que eles ficassem muito preocupados. Então, a tentativa de furto e mesmo outros perrengues que eu vivi no Vitória de Santo Antão ficaram por muito tempo longe dos ouvidos deles. ☺
Eu não disse que tinha sido uma privilegiada? Eu passei esses apuros depois do Santos, mas também tive a oportunidade de ir além do que imaginava — na verdade, bem distante de Araraquara.
Em 2013, apareceu a chance de jogar futebol no exterior, mais precisamente na Coreia do Sul.
A primeira coisa que meu pai fez, assim que soube do convite, foi olhar a localização no mapa.
“Mas é muito longe... com essa distância não vou poder te ajudar”, ele disse.
Sim, meu pai é desses, gente. Ele sempre quer estar ali, perto, e até hoje, quando volto pra Araraquara, ele quer saber onde estou, preocupado com a minha segurança, com meu bem-estar, mas sempre me respeitando.
E foi por isso que ele e minha mãe, mesmo com medo, deixaram que eu tomasse a decisão por minha conta e risco.
Me mandei pra Coreia, óbvio!
Não só pela ambição de evoluir na carreira, mas também pelo desejo de ajudar minha família. Com o pouco que ganhava jogando no Brasil, eu pagava o aluguel da minha avó, que nunca teve imóvel próprio. O sonho da família era comprar um lugar para ela morar. E pelo contrato que me ofereceram na Coreia, eu finalmente poderia dar uma casa pra minha avó. Por isso não pensei duas vezes quando recebi a proposta, porque retribuir tudo aquilo que minha família fazia sempre foi uma prioridade para mim.
Alguns anos depois, posso garantir que foi a melhor decisão que tomei. Uma escolha que fez toda a diferença tanto na minha vida pessoal como profissional.
Na Coreia, jogando pelo Icheon Hyundai, eu me destaquei e entreguei bem mais do que esperavam de mim. Eu não era a principal estrela e, exatamente por isso, consegui fazer o meu caminho — com muito suor, com muitos gols e com muitos títulos, graças a Deus.
Em sete anos por lá, fomos campeãs sete vezes, o que chamou a atenção de outros clubes no exterior — e o que me deu a oportunidade para viver uma experiência decisiva em outro lugar beeeem longe, um divisor de águas na minha vida.
O ano é 2020, e eu, como muitas outras pessoas no mundo, não fazia ideia de que um vírus global teria origem na China, muito menos na cidade de Wuhan.
Bem, você sabe que estou falando da pandemia de Covid-19, que mudou a história do planeta — e da minha família — nos últimos dois anos. O que talvez você não saiba é que eu tinha acabado de ser contratada pelo Wuhan Xinjiyuan. Isso mesmo, da cidade de Wuhan, onde surgiram os primeiros casos.
Foi um momento bastante difícil pra mim. Nós estávamos cientes da gravidade da situação e entendíamos que algumas medidas eram necessárias para que o vírus não se alastrasse ainda mais.
Mas, no meu caso, ficar confinada não foi nada legal. Passei a ficar ansiosa, porque nossa rotina lá em Wuhan era muito dura. Ficava sozinha, sem poder sair de casa por 28 dias seguidos. Nossa comida chegava em casa — e só sabíamos disso porque batiam na nossa porta.
O isolamento na China fez tão mal para minha saúde mental que eu resolvi que não queria continuar infeliz daquela maneira.
- Bia Zaneratto
Eu não gosto nem de lembrar.
Aqui no Brasil, meus pais sofriam quando eu ligava chorando, dizendo que não aguentava mais, que eu queria sair.
Se eu pudesse resumir, diria o seguinte: por causa da pandemia, na China não tínhamos vida. Assim que as coisas melhoraram um pouco, a sequência era treino-quarto-jogo, treino-quarto-jogo. Presa, isolada de tudo e de todos.
Nesse período, meu plano era ir jogar na Europa. Mas o isolamento na China fez tão mal para minha saúde mental que eu resolvi que não queria continuar infeliz daquela maneira. Se a cabeça não estiver boa, nenhum atleta consegue manter o rendimento. E, naquele momento, eu precisava voltar a me sentir bem, voltar a ter prazer de jogar futebol.
Então, pela identificação que já tinha com o clube, eu decido ir para o Palmeiras, que me deu a oportunidade de voltar a ser feliz. De voltar a ficar perto da minha família e dos meus amigos. De voltar ao meu país.
Durante o tempo que fiquei fora, muita coisa mudou por aqui. Agora, os clubes não só têm estrutura, como também existe apoio da mídia, com mais visibilidade. Agora, temos patrocinadores. Os estádios começam a ficar lotados nos clássicos e grandes decisões — tudo isso é muito importante (a ponto de eu achar que, hoje em dia, um ladrão pensaria duas vezes antes de roubar um laptop de uma jogadora durante o treino. Não, ele não teria essa coragem).
No Palmeiras, eu me recuperei mentalmente, vesti a camisa 10 e pude ver meu nome na camisa. Essa não foi uma conquista só minha, mas de todas nós, atletas, que tanto lutamos por reconhecimento.
#ElasTemNome.
Nós temos nome.
A única coisa que falta mudar, e eu sei que vai mudar, é o modo como algumas pessoas ainda veem a Seleção feminina de futebol. Posso dizer porque eu senti isso na pele na minha primeira Olimpíada.
Ter vivido Rio-2016 foi inesquecível para mim — e por vários motivos. Como atleta da Seleção, jamais tinha visto algo como aquilo: os olhos do mundo, mas principalmente dos brasileiros, estavam prestando atenção no nosso jogo. Para quem passou uma vida sendo ignorada, é muita coisa.
Nossa estreia foi incrível, num passeio contra a Suécia. 5 a 0. Tive a chance de fazer dois gols. Me lembro até hoje como foi. O lançamento em profundidade, a bola quicando dentro da área, eu ganho na velocidade, me esticando, e faço de biquinho. E o segundo foi especial, também. A chapada de canhota, uma característica minha, na entrada da área. Começaram até a me chamar de Imperatriz, em comparação com o Adriano Imperador.
E nós todas ficamos impressionadas com o apoio que recebíamos. Nas partidas da primeira fase, tudo foi mágico. A bola entrava, o nosso jogo fluía e estávamos confiantes de que a medalha de ouro seria nossa.
E então chegamos à semifinal. Jamais vou me esquecer daquela terça-feira, 16 de agosto, Maracanã lotado, 70 mil torcedores para ver a Seleção. Mais do que nunca, nós queríamos aquela vitória. E fomos buscar. Mas algo estava diferente naquele dia.
Cada jogo tem sua história.
É verdade, nós havíamos enfrentado — e goleado — a Suécia na estreia, pouco mais de dez dias antes. Dessa vez, no entanto, a equipe treinada pela Pia, que hoje está conosco, veio montada para se defender e nos pegar no contra-ataque.
Tivemos mais posse de bola. Tivemos mais chance de fazer os gols. Lutamos, nos empenhamos, demos carrinho, não faltou raça, não faltou entrega. Só que a bola não entrava.
Na prorrogação, quase fizemos o gol no último instante dos acréscimos.
Tô falando que a bola não entrava…
Pênaltis.
Havíamos passado na disputa contra a Austrália e agora vivíamos de novo o mesmo drama — um dos pênaltis deste jogo foi convertido por mim e posso dizer que é um terror a caminhada até a cobrança.
Contra a Suécia, nossa equipe foi derrotada. Não seria daquela vez que ganharíamos o Ouro.
Um dia depois, a Seleção masculina venceu Honduras nas semifinais e foi disputar a final, conquistando a medalha dourada pela primeira vez.
O futebol prega peças na gente e, algumas delas, são difíceis de assimilar. Nossa Seleção foi aplaudida depois do jogo contra a Suécia. Sentimos o carinho da torcida mesmo com a derrota.
Ainda assim, nos dias que se passaram, muitas pessoas começaram a fazer comparações com a Seleção masculina, como se nós tivéssemos pipocado e eles, não.
E ainda hoje sigo sem entender por que é que algumas pessoas fazem esses comentários, alguns deles muito maldosos, em relação às duas seleções. Como se, para torcer para os meninos, fosse preciso torcer contra as meninas, e vice-versa. Por que isso, gente? Pra quê?
Você não precisa odiar o Neymar para torcer pra Marta, nem secar a equipe feminina para provar que a masculina é melhor. Todos nós, homens e mulheres, representamos o Brasil. Se todos nós ganhamos, o Brasil ganha duas vezes.
Não podemos torcer pelo sucesso das duas seleções? Será que as duas não merecem ser campeãs?
Não é preciso odiar o Neymar para torcer pra Marta, nem secar a equipe feminina para provar que a masculina é melhor.
- Bia Zaneratto
O que eu sei dizer é que uma parte daquele apoio em 2016 se transformou em pressão desnecessária sobre os nossos ombros, porque teve quem imaginasse que nossa vitória seria uma derrota do time masculino. E nós, jogadoras, não queríamos isso.
Eu, Bia, não queria isso.
E é também por esse motivo que essa é uma derrota que dói até hoje.
Assim como doeu em Tóquio, quando perdemos para o Canadá. Pelo menos saímos de cabeça erguida, afinal, perdemos para as campeãs. E eu saí com uma imagem que vou guardar para sempre.
Estreia contra a China. No fim do jogo, eu marco o último gol da nossa goleada. Fazia pouco tempo que eu tinha perdido a minha avó para a Covid e, na hora que a bola balançou a rede, eu senti a presença dela comigo, bem ali, do meu lado. Foi totalmente espontâneo o gesto de me ajoelhar no gramado, olhar para o céu e fazer o “L” de Luzia com as mãos.
Desde então, eu dedico todos os meus gols para ela. Como eu queria que minha avó estivesse aqui pra ver que a neta dela “chegou lá”, do jeito que ela sempre acreditou.
Pra ver a Seleção garantindo o direito de sonhar mais uma vez com o Ouro na Olimpíada e lutando pelo título da Copa América.
Pra ver que estamos caminhando para ter o respeito que tanto esperamos no futebol feminino.
Houve um tempo em que nós, mulheres, não podíamos sonhar.
Éramos proibidas, até mesmo, de jogar futebol.
Hoje, nossos sonhos podem ser vividos — do jeito que nós quisermos, do jeito que você quiser.
Por isso, eu creio que o melhor está por vir, com uma geração que vai poder colher frutos ainda melhores do que aqueles que eu colhi.
Com mais oportunidades para quem quiser atuar dentro e fora do Brasil.
Com mais igualdade e reconhecimento para as atletas profissionais.
Com um passo por vez, percorremos o impensável. Muita coisa pela frente, porém… JUNTAS, SEGUIREMOS!!
Juntas podemos e faremos mais.
A base vem forte, e nós estamos vivendo só o começo de um futuro que demorou, mas chegou chegando. Trazendo a certeza de que esse esporte, o NOSSO esporte, jamais voltará a ser como era antes.