Filha do Vento

Andy Lyons/Getty Images

Seul.

Barcelona.

Atlanta.

Sydney.

Atenas.

Pequim. 

Seis Olimpíadas. E eu estava lá. Sempre na pista. Sempre correndo. Cem, 200 e 400 metros rasos. Ganhei 13 medalhas. Quatro de ouro, oito de prata, uma de bronze.

Sou Adria Santos, maior medalhista feminina paralímpica do Brasil. Comecei treinando sem nenhuma estrutura — corria com tênis de futsal no pé e só. Em pouco tempo, virei a “Filha do Vento”, como um treinador me apelidou durante um campeonato.

Eu terminava uma competição, subia no pódio e, na hora de descer, já estava pensando na próxima: qual seria minha estratégia, como eu iria fazer para crescer, melhorar, ir ainda mais rápido.

Nos Jogos de 1988, em Seul, eu tinha só 14 anos. Ganhei duas medalhas de prata e, embora não soubesse, ali eu tracei o meu futuro. 

Adria Santos medalhas Paralimpiada
Michael Steele/Getty Images

Quando parei, em 2013, estava com 39. Eu me sentia bem na parte física, mas cansada mentalmente. 

Exausta, pra dizer a verdade. 

Eu tinha perdido as Olimpíadas de Londres por causa de uma operação no joelho. Aquilo me desanimou muito. Comecei a refletir, olhei para trás, e pude enxergar toda minha vida em perspectiva pela primeira vez: uma pista de atletismo. 

Acho que só um atleta de alto rendimento sabe o real significado da palavra “renúncia”. Cotidianamente, você abre mão: seja de uma coisa que você gostaria de comer, seja do momento que você gostaria de passar com seus amigos, com sua família.

Parar deveria ser fácil, então. Eu já tinha ganhado tudo que eu poderia desejar e encerrar minha carreira naquele momento significava não precisar mais colocar todas as minhas decisões na balança do esporte, da preparação. Em outras palavras, chega de renúncia! Só que não importa o quão preparado você acredite estar, parar nunca é fácil.

Demorei anos para me reerguer, mas, com a ajuda das pessoas certas e paciência, eu consegui.

Adria Santos

Tristeza, dificuldade de respirar, tremedeira, aperto no peito, medo.

Num dia, eu era a pessoa mais confiante do mundo; no outro, não podia pisar numa pista ou passar por qualquer situação que lembrasse meus anos de atleta olímpica sem sofrer um ataque de pânico.

Antes de descobrir que eu estava com depressão, tranquei todas as minhas medalhas em um quarto e só fui entrar nele recentemente. Como não era mais uma atleta, o mínimo estímulo que me remetesse ao esporte já era um gatilho para aquele sentimento estranho que eu tinha no coração. Em inúmeras ocasiões, precisei de apoio para sair de eventos que envolviam atletismo.

Demorei anos para me reerguer, mas, com a ajuda das pessoas certas e paciência, eu consegui.

Por isso, neste 22 de setembro, Dia do Atleta Paralímpico, eu quero falar sobre minha trajetória. Sobre minhas medalhas, minhas lágrimas e, principalmente, sobre a minha alegria.



Quando criança, em Nanuque, Minas Gerais, nunca poderia imaginar que um dia eu sentiria medo. Tinha uma ladeira na cidade e, enquanto as outras crianças diminuíam a velocidade, eu acelerava, me jogava. Descia aquilo tudo de uma vez.

Hoje é com isso que eu sonho quando durmo. A ladeira, o pedaço de pau que eu fazia de boneca, a casa da minha infância, os meus sete irmãos pra cima e pra baixo... De olhos fechados, eu enxergo tudo, nos mínimos detalhes, como se nunca tivesse perdido a visão.

Eu nasci com retinite pigmentosa, uma condição genética que leva à cegueira. Por isso, minha família se mudou para Belo Horizonte, onde comecei a frequentar o Instituto São Rafael, uma escola para pessoas com deficiência visual. Lá, nas gincanas, o professor de educação física não demorou para perceber meu talento na corrida. 

Em pouco tempo, eu já estava treinando e competindo como velocista e, à medida que a perda da minha visão se acentuava, eu me tornava cada vez mais atleta.

Aos 13 anos, no meu primeiro campeonato nacional, bati o recorde brasileiro dos 200 metros rasos, baixando o tempo de 29,6 para 29,3. Um ano depois, embarquei para as Olimpíadas de Seul. 

Não é exagero. Num dia eu estava em Nanuque vendo um avião passar no céu, pensando que eu gostaria de estar dentro dele; no outro estava indo para o outro lado do mundo.

Dentro do avião.

Adria Santos paraolimpiadas
Andy Lyons/Getty Images

Até aquele momento, eu nunca tinha pisado em uma pista sintética, só treinava no piso de carvão do quartel da Polícia Militar em que usávamos a guia da calçada para simular uma largada em bloco. Eu não conhecia sequer a marcação das raias e foi isso que me impediu de voltar para o Brasil com um ouro. 

Na prova de 100 metros, competindo na categoria B2 — para atletas com percepção de vultos —, disparei bem na frente das outras corredoras, mas, ao enxergar uma primeira marca na pista, achei que era o fim da raia e desacelerei. 

Foi o que a Raissa Jouravliova, atleta da União Soviética, precisou para me passar. Mesmo assim, fiquei com a prata. E depois ainda ganhei mais uma na prova de 400 metros rasos.

Na Coreia, eu me espantei com tudo: com a estrutura dos estádios, com os pedidos de autógrafos, com o preparo dos atletas, com minhas duas medalhas. 

Dá pra dizer que em Seul eu ainda era um pouco criança. Apesar de sempre ter sido muito competitiva, tudo foi um pouco brincadeira para mim: como me jogar naquela ladeira de Nanuque, sem medo de cair.



1992, Olimpíadas em Barcelona, eu precisava voltar aos treinos depois de dois anos parada após o parto da minha filha, que nasceu quando eu tinha 15. 

Aos poucos, fui retomando: ora era minha mãe que ficava cuidando da Bárbara, ora era eu que a levava para as pistas comigo. Assim, ela foi crescendo e eu fui crescendo com ela.

A maternidade me obrigou a amadurecer duplamente.

Por um lado, deixei a infância para trás. Por outro, entendi o tamanho da mudança que o esporte tinha trazido para minha vida: se eu não pude ter uma boneca de verdade quando eu era criança, minha filha podia. Não por acaso, o primeiro presente que dei a ela foi uma bonecona bem grande, um bebezão, que ela guarda até hoje.

Apesar de já ser medalhista olímpica, foi minha filha que me fez entender que meu caminho era e continuaria a ser como atleta. Definitivamente, aquilo deixava de ser uma brincadeira. Por isso, cheguei a Barcelona muito determinada.

Nas provas de 200 e 400 metros, precisei correr acompanhada de guia. Minha visão tinha se degradado ainda mais nos últimos quatro anos e eu já não conseguia me manter na raia. Nem cheguei a disputar uma medalha, o que foi um pouco decepcionante.

Mas havia uma última prova: a de 100 metros. Nesta, minha baixa visão e a memória do meu corpo se deslocando na pista me permitiram correr sozinha.

Fiquei em primeiro na classificatória e depois, na final, ganhei meu primeiro ouro olímpico!

Lembro que no pódio a medalhista de bronze, Beatriz Mendoza, atleta espanhola com quem competi em três Olimpíadas, olhou para mim e brincou:

— Minha bandeira é mais bonita que a sua!

— Não, não, a minha é muito mais bonita! — eu retruquei.

Anos depois, acho que isso foi uma das coisas que eu mais senti falta quando parei de competir: esse clima de amizade e respeito que existe entre adversárias que convivem durante anos, sempre tentando correr um pouco mais rápido que as outras. Por isso, ainda com a medalha de ouro no pescoço, eu já sabia o que tinha que fazer: treinar. 

No próximo pódio, eu precisaria estar lá de novo com a bandeira do Brasil. Meu principal desafio, então, era me adaptar a correr com guia em todas as provas, porque era uma questão de tempo até eu perder totalmente a visão — o que aconteceu em 1994.

A relação com o guia é muito importante e é difícil encontrar a pessoa certa. Muitas vezes, o guia é um atleta de alto rendimento e, dependendo da intensidade do seu treino, você pode acabar prejudicando as competições dele. Foi o que aconteceu comigo algumas vezes. Além disso, só a partir de 2004 que a relação entre guia e atleta começou a se profissionalizar. Antes havia muito voluntariado e revezamento de guias. Eu mesmo só fui ter um guia fixo a partir de 2005, o Rafael.

Adria Santos corredora paralimpica
Mark Dadswell/Getty Images

Nos últimos vinte anos, o esporte paralímpico cresceu muito. Hoje, aquelas condições precárias em que treinávamos ficaram para trás — embora ainda exista muita gente batalhando sem qualquer tipo de apoio. O atleta precisa de estrutura, não só de um treinador. Precisa de psicólogo, fisioterapeuta, nutricionista… Porque o que você faz ali na pista é o resultado não só do seu trabalho, mas do trabalho de um monte de gente.

Só que toda essa consciência veio muito depois de 1996, nas Olimpíadas de Atlanta, quando ganhei medalha de prata nas três modalidades — 400, 200 e 100 metros rasos. 

Com guia, sem guia… Pouco importava pra mim naquela época. Eu era a Filha do Vento!



Em Sidney foi onde tudo encaixou. Paralimpíadas de 2000, eu não tinha passado por nenhuma grande mudança no esporte ou na vida pessoal. Não precisava me adaptar. Só tinha que treinar e treinar. E isso nunca foi um problema pra mim.

Cheguei na Austrália com um objetivo muito claro. Eu sabia onde queria chegar, o que queria conquistar. E tinha mais um motivo para correr: a Bárbara, minha filha, estava na arquibancada pela primeira vez em uma Olimpíada.

Não deu outra. Ouro nos 100 e nos 200 metros rasos. Eu tinha me tornado a maior medalhista paralímpica do Brasil! 

Só que no esporte há coisas que você controla e outras que estão fora do seu alcance…

Uma coisa que você não controla são os juízes de pista. Em 2004, em Atenas, eu ganhei um ouro e duas pratas. Só que deveria ter ganhado dois ouros. Lembra que eu falei que o papel do guia é essencial numa disputa? Pois é. Na prova de 200 metros rasos, o guia da minha adversária chinesa correu por ela. As imagens mostram isso claramente. Quem cruzou a linha de chegada na minha frente foi ele e não ela.

Outra coisa que você não controla são as lesões. A minha intenção, depois de voltar de Pequim com um bronze, em 2008, não era me aposentar. Eu queria ter participado dos Jogos de Londres em 2012 e depois me despedir do atletismo no Rio de Janeiro, em 2016. Mas, por causa do problema que tive no menisco, acabei parando em 2013. 

Aí começou a época mais difícil da minha vida…

Quando parei, vivi uma negação completa de tudo. Uma negação de mim mesma. De repente, nada importava: nem minha trajetória, nem as medalhas que eu tinha ganhado.

Eu precisava de ajuda. 

Psicólogo, terapias, medicação, aulas de dança, de pole dance, vestibular, faculdade, corridas de rua…

Antes de descobrir que eu estava com depressão, tranquei todas as minhas medalhas em um quarto. Não podia passar por qualquer situação que lembrasse meus anos de atleta olímpica sem sofrer um ataque de pânico.

Adria Santos

Tive de aprender a ir devagar, a respeitar o passo natural da vida e não o de uma pista. Depois de seis Olimpíadas, precisei treinar a andar e não mais correr.

A melhora veio aos poucos, num ritmo natural. No mês passado, inauguramos em Joinville o Instituto Adria Santos, que ajudou (tem ajudado) muito nesse processo. O carinho que eu recebo aqui, a possibilidade de retribuir tudo que eu conquistei, é algo que só se compara a ganhar uma medalha.

Hoje nós atendemos cerca de 50 crianças, mas queremos chegar a 80, sendo que 20% das vagas serão reservadas para crianças com deficiência visual. Nosso objetivo é iniciá-las no atletismo, mas, mais do que isso, formá-las como seres humanos. Um grande desafio e, também, uma grande alegria.

Já pensou se sai uma nova Adria do Instituto?



Em 2016, eu fui convidada para ser prefeita da Vila Paralímpica no Rio de Janeiro. Aceitei o convite com a maior honra, mas a verdade é que meu sangue fervia de vontade de estar na pista. Eu não estava em paz.

No último dia dos Jogos, a Janeth, campeã do basquete brasileiro, que também era prefeita da Vila, me desafiou para um tiro de 100 metros rasos. A arbitragem autorizou, um guia veio me auxiliar e nós duas disparamos.

Como ela me disse depois, eu não podia ter ido embora das Olimpíadas no Brasil sem ter pisado naquela pista. E eu pensei que, de certa forma, assim eu completava aquele meu desejo antigo de me aposentar só depois de 2016.

Adria Santos Players Tribune dia atleta paralimpico
Ker Robertson/Getty Images

Nos últimos anos, eu fui aceitando que aquele mundo de viagens, competições e medalhas tinha ficado para trás. Mas que não tinha acabado. Porque a gente nunca para de construir nossa própria história. 

Nada vai apagar o que eu fiz. Nem o que eu ainda tenho para fazer.

Parece simples aceitar isso, né? Mas não é. Na verdade, essa é a parte mais difícil. E, às vezes, tudo que você precisa é de um incentivo. Uma pessoa como a Janeth foi naquele dia para mim:

— Vai pegar sua sapatilha, Adria!! Vamos disputar os 100 metros agora!

O resultado da corrida? 

Claro que eu venci! Rsrsrs. 

Eu sou a Filha do Vento. Sempre na pista. Sempre correndo. Nem que seja para ir em busca dos meus sonhos.

Autografo Adria Santos

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