Adeus, Medalha

Lucas Seixas/The Players' Tribune

“Adriana Araújo, a lutadora que vendeu a primeira medalha olímpica do boxe feminino brasileiro.”

As palavras têm o poder de mudar vidas. 

E quando são ditas em rede nacional, então, é como se o nosso destino estivesse sendo escrito.

Ninguém me falou isso. Bem antes de tomar a decisão mais difícil da minha vida, o processo que me levou a ganhar a medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, o símbolo maior da minha carreira como atleta, me ensinou essa lição. 

Foi o que eu vivi.

“Adriana Araújo, anote esse nome, que ainda vai dar muito o que falar para o Brasil.”

Essas foram as palavras de Luciano do Valle, narrador da TV Bandeirantes, no ano de 2000, pouco depois da minha luta no Verão Vivo na Praia da Boa Viagem, em Recife.

Eu tinha perdido a luta, é verdade, mas não me sentia derrotada. Minha adversária naquela vez era Simone Duarte, ninguém menos que a Mulher Gato, com seis anos de experiência no esporte.

Eu? Menos que um ano. 

Não sei explicar a sensação. Só me lembro de ter ido à praia naquela noite e, olhado para os céus, e de ter feito um pedido a Deus.

“Senhor, me permita chegar entre as três melhores do mundo.”

Posso testemunhar o quanto a minha trajetória mudou de lá para cá. Nem nos meus melhores sonhos eu poderia imaginar o que estava reservado para mim.

Em um momento em que estava sem dinheiro e sem esperança, eu decidi vender a minha medalha olímpica.

Adriana Araújo

Creio que nunca contei isso para ninguém, mas é fato que, antes do boxe, eu não era a Adriana Araújo. Sim, meu nome de batismo é Adriana dos Santos Araújo. Nasci na Bahia, mas, até os 17 anos de idade, minha relação com o boxe era... nenhuma.

Dou até risada quando me lembro das conversas com uma amiga. Ela me incentivava a praticar boxe. E eu respondia assim:

“Você está louca? Tomar murro de graça?!”

E a verdade é que eu não me via fazendo boxe. Simples assim. Acontece que as mulheres já estavam na linha de frente, abrindo o caminho para que outras pudessem trilhar um sonho que parecia impossível.

Até começar no boxe, o futebol era a minha principal conexão com o esporte. Eu acreditava que chegaria a algum lugar jogando futebol — e parte da minha adolescência seguiu exatamente essa jornada.

Minha vida era muito boa nessa época. A nossa casa não tinha fartura. Mas ainda que meus pais tivessem de trabalhar muito, eles não deixavam faltar nada. E quando eu fecho meus olhos me recordo de um tempo em que tudo era mais fácil e divertido, porque eu sempre estava com meus amigos.

A primeira mudança aconteceu aos 14 anos, quando passei a me concentrar nos estudos e, aos 15, já estava trabalhando no mesmo prédio onde minha irmã era diarista. Um dia, um rapaz saiu desse mesmo prédio e me perguntou se eu queria trabalhar ali. Duas vezes por semana. 85 reais por dia.

“Sim.”

O dinheiro era importante porque meu pai já tinha dito que a obrigação dele comigo era apenas a comida. 

Aos 18 anos, tive meu primeiro emprego com carteira assinada. Agente de saúde. Minha missão era exterminar o mosquito da dengue.

Quando o boxe entrou na minha vida, na verdade, foi uma questão estética que me motivou. Eu pensava no esporte para entrar em forma. 

Lá em Brotas, onde eu fui criada, o meu primeiro treinador foi o Rangel Almeida, que percebeu algo diferente no jeito que eu espancava os sacos. Na minha cabeça, eu estava me libertando de todo o estresse, de todo o mal-estar e de energia ruim. Mas para o Rangel, era outra coisa. Ele notou a facilidade que eu pegava os movimentos — coisa que os meninos que estavam lá fazia mais tempo ainda não tinham conseguido.

Com três meses de treino, meus golpes e minha boa coordenação motora fizeram o Rangel me perguntar se eu queria lutar. Minha resposta? 

“Não, não quero, mas se você me colocar eu luto.”

Então, durante oito meses, procuramos adversárias, mas ninguém se habilitava.

Boi preto conhece boi preto. A turma sabia que, se um lutador estava vindo pelas mãos do Rangel, a chance de ser barra pesada era grande.

E eu sempre fui barril dobrado, como dizemos lá na Bahia.

Adriana Araujo boxe
Lucas Seixas/The Players' Tribune

A minha primeira luta foi com a Josiane, que já estava no boxe fazia cinco anos. De um lado, uma atleta com experiência. De outro, eu, uma novata. Como é mesmo que se fala?

“Os caras são grandes, mas a gente é ruim…”

Não, eu não venci aquela luta. Pelo contrário, até: no primeiro assalto, estava intimidada com tudo o que estava acontecendo. Eu não sabia o que fazer. Mas no segundo round mostrei do que eu era capaz. Bati pra valer e a Josiane sofreu nas minhas mãos.

Logo depois dessa luta, foi a vez do professor Luiz Dorea me fazer o convite. Eu tinha de ficar lá, na Academia Champion, onde estavam reunidos os grandes atletas da Bahia.

Quando me lembro do pedido do professor Dorea, penso no quanto me desenvolvi na Champion. Foi ali que meu sonho começou de verdade, quando eu me tornei uma atleta de alto rendimento. Não que tenha ficado mais fácil. Tive de me desenvolver mais rápido, como sparring, brigando pelo meu espaço, desafiando a mim mesmo como atleta.

Eu já me encontrava nesse contexto quando, na Praia de Boa Viagem, aconteceu o Verão Vivo, as palavras de Luciano do Valle e o meu pedido a Deus. 

As coisas começaram a acontecer.



Ter um objetivo na vida me deu a sensação de me tornar quem eu sou, a minha melhor versão.

Mas isso não foi da noite para o dia. 

Todo começo é difícil, e o meu não foi diferente.

Tomei muito soco na cara, treinei bastante, ouvi os conselhos do técnico Dorea, o meu maior incentivador.

As palavras dele foram importantes para que eu não me desviasse do meu alvo, e até mesmo me ajudaram a suportar a pressão que vinha de todos os lados.

Na minha casa, minha mãe não se acostumou de cara com a ideia de uma filha lutando boxe. Ela não gostava. Tive de mostrar para ela que eu podia ser alguém, fazer a diferença como boxeadora.

Fora de casa, não era muito diferente. Aliás, foi pior. Tinha de enfrentar a desconfiança de algumas pessoas. O que dizer das atletas dos Estados Unidos que ficavam nos desmerecendo, duvidando que sabíamos competir.

“No Brasil tem boxe?”, elas provocavam.

Eu não sabia inglês na época, mas a vontade era dizer: “Aqui é Brasil, p#rr@!”

Mas eu aguentei calada. Estava lá para lutar como atleta de alto rendimento, não para arrumar briga.

As dificuldades não paravam por aí. Nós ainda tínhamos de enfrentar a falta de estrutura para atletas do boxe. 

Adriana Araujo Players Tribune
Lucas Seixas/The Players' Tribune

Por isso, além dos treinamentos, fui sendo lapidada para ter uma mentalidade de vencedora.

O tempo foi passando e ganhei confiança, alguma experiência e um novo apelido. 

Pitbull. 

Eu tinha a fome da vitória e nada podia frear a minha dedicação, mesmo tendo de conciliar os treinamentos com meu trabalho fora da Academia. A rotina estava longe do ideal. E um exemplo foi o ano de 2006, quando fiquei de fora dos ringues. 

Quando tudo parecia muito distante, veio 2008 e a chance de disputar um Mundial. 

De novo, não tinha ninguém para me bancar. Não tinha dinheiro nem para a passagem. Então, uma dirigente dos Estados Unidos ligou para o Luiz Boselli, presidente da Confederação Brasileira de Boxe, e disse que eu não podia ficar de fora.

Cheguei no Mundial faltando três dias para a competição começar. Não foi o ideal, longe disso, mas era uma oportunidade em um evento gigante da categoria. No ano anterior, eu tinha sido campeã do Pan-Americano disputado no Rio de Janeiro. Meu nome estava no radar.

Daquela viagem para a China, jamais vou me esquecer do frio na espinha que senti quando cheguei na Alemanha. Durante a escala, vi que algumas pessoas tinham sido deportadas, mas eu não só consegui passar pela imigração numa boa, como até ganhei apoio das pessoas que descobriram que eu estava a caminho do Mundial de boxe.

Apesar desses esforços, não posso dizer que a minha experiência foi vitoriosa. Perdi para uma adversária que já havia derrotado outras vezes, o que só reforça a importância da estrutura para um campeonato de alto nível. Se eu tivesse tido mais tempo de ambientação e cuidado da minha alimentação até ali, o resultado teria sido outro.

Nos anos seguintes, até os Jogos de Londres, a expectativa foi crescendo de ver o boxe feminino como modalidade olímpica. Então, aconteceu. Na terra da rainha, eu teria a minha chance. E eu não iria desperdiçar por nada nessa vida.

Disputar os Jogos Olímpicos é a experiência máxima para qualquer atleta. Em 2012, fui pra lá com os meus olhos na medalha, e eu estava programada para vencer. Não tinha como ser diferente, fui para ser campeã, trazer a medalha para o Brasil.

Adriana Araujo Olimpiada boxe
Lucas Seixas/The Players' Tribune

Quando subi no pódio, conquistando o bronze, pude me lembrar do pedido que fiz a Deus no ano 2000: que eu me tornasse uma das três melhores do mundo. 

Mas eu não compreendia o que aquela conquista representava para o boxe feminino no Brasil. Quer dizer, sabe aquela história, que se ouve muito no futebol, de que a camisa pesa? Então, é verdade. No boxe, apesar das atletas pioneiras do nosso país, os árbitros pareciam só estar convencidos da nossa vitória quando nós nocauteávamos nossas adversárias. 

Os juízes não sabiam quem eram as atletas brasileiras.

E a estrutura que não davam para a gente... 

Esses obstáculos, no entanto, me fortaleceram. Se a alimentação não era adequada, eu dava conta com o que tinha à minha disposição. Se para a preparação física não havia um ginásio onde eu pudesse treinar, não tinha problema: o Parque da Cidade era todo meu.

Não precisava ser assim, porque eu não queria ser heroína, mas a verdade é que essas adversidades blindaram a minha mentalidade. 

Nesse tempo, é claro que pensei em desistir. Mas quando eu olhava para as dificuldades, logo me lembrava: ainda tenho muita coisa para conquistar.

Daí que quando veio a medalha, fiquei em choque, sem ter muito bem o que dizer por alguns dias. E acho que as pessoas não sabem, mas eu passava sempre pelo ginásio onde as meninas do vôlei estavam treinando. Nos Jogos Olímpicos de 2012, elas estavam desacreditadas, desenganadas, quase foram eliminadas na fase de grupos. 

Me lembro de encontrar as meninas ali, treinando, até que um dia a Fabi e a Fê Garay passaram por mim e, ao me encontrar com a medalha, disseram:

“Sua medalha é linda. Você tem noção do que você fez?”

Não, eu não tinha esse entendimento. Era a centésima medalha olímpica do Brasil. Não tive essa preparação para saber o que fazer quando se ganha uma medalha na competição mais disputada do mundo, quando os olhos do mundo estão prestando atenção em você. Nem meus treinadores, nem os dirigentes, nem a equipe souberam me dizer o que aquilo representava.

Ainda bem que a Fabi e a Garay estavam lá. 

E, claro, a seleção de vôlei ganhou a medalha de ouro alguns dias depois.



O que acontece quando você chega no topo? Você continua sendo você, mas com uma conquista, algo que é raro no esporte de alto rendimento, que é muito disputado.

Segui com muita vontade de vencer. Me mantive querendo disputar campeonatos de alto nível. Mas... eu também esperava que a minha vida fosse mudar com a medalha olímpica. Principalmente no lado financeiro.

Pouco antes dos Jogos Olímpicos de Londres, recebi um convite de um empresário canadense para me mudar e ser lutadora profissional no Canadá. 

Os ventos do norte não movem moinhos, mas, às vezes, eu penso: Será que eu deveria ter ido? A vida de um atleta é muito curta e temos de saber aproveitar as oportunidades. Eu escolhi ficar e sou feliz com a decisão, porque ela me levou para a medalha em Londres.

Depois da medalha, não me profissionalizei porque não tinha perspectiva de valorização. E como pugilista que sou desafiei quem estava na minha frente para que as coisas no esporte pudessem mudar. 

Outra derrota, só que desta vez veio com uma punição severa. Fiquei dois anos sem participar da seleção, logo eu que perdia 1 em 20 lutas. Olhei ao meu redor e ninguém moveu um dedo para me ajudar.

Mas eu sou barril dobrado, né? 

Fora do boxe de alto rendimento, lutei para manter minha sobrevivência como motorista de aplicativo. Nunca tive medo de trabalhar. E segui treinando porque o que faz um atleta é a rotina, o condicionamento e a mentalidade.

Até hoje não caiu a ficha de que abri mão do símbolo daquela conquista, mas os meus sonhos não acabaram.

Adriana Araújo

Mas... às vezes a gente cansa. Mesmo com o apoio do meu primeiro treinador... a idade começou a pesar. E veio a lesão no ombro. 

Em 2020, tive ainda uma chance de voltar. Lembro como se fosse hoje. 

— Campeã, surgiu a oportunidade de disputar o Mundial. O problema é que é daqui a 20 dias.

— Como assim, rapaz?

— É pegar ou largar?

Uma lutadora não foge de desafios assim. Mesmo fora de forma, fui atrás para me condicionar. Como das outras vezes, se eu tivesse mais tempo, se eu tivesse mais estrutura... a história teria sido outra. Fui para o confronto com a Chantelle Cameron. Eu enxerguei o medo no fundo dos olhos dela e até consegui dar dois knockdowns. Com os socos, eu abri o supercílio da minha adversária. Mas foi o mais perto que cheguei da vitória. No final, fui derrotada.

Eu sei que não devia ser assim, mas, às vezes, a gente desanima, sabe?

Pela falta de apoio emocional.

Pela falta de estrutura institucional.

Pelo tratamento desigual dado para as mulheres, mesmo que elas estejam no topo (e isso não apenas no esporte de alto rendimento).

Adriana Araujo medalha boxe
Lucas Seixas/The Players' Tribune

Então, num momento em que estava sem dinheiro e sem esperança, tomei a dura decisão de leiloar minha medalha olímpica. Tenho certeza de que em condições normais eu não teria feito isso. Mas a vida não é feita de condições normais, ao menos comigo não foi assim. 

Como diz o ditado que vale para todos os lutadores, “o mundo é um lugar cruel. Ninguém vai bater tão duro na gente quanto a vida. Mas não se trata de bater duro. É sobre o quanto você aguenta apanhar e, então, seguir em frente”.

Tive a chance de realizar o meu sonho e me tornar uma medalhista olímpica, um feito para poucas pessoas no mundo. Até hoje não caiu a ficha de que abri mão do símbolo daquela conquista, mas os meus sonhos não acabaram. 

Eu sei quem eu sou. 

E eu quero mais.

Quem sabe montar uma academia de boxe, onde poderia levar adiante o sonho de outras meninas e meninos?

“Adriana Araújo, a atleta que venceu suas maiores lutas fora do ringue.”

É assim que eu quero que o Brasil fale de mim. Com essas palavras, eu quero ser lembrada.

O nosso destino não está definido. Ele continua sendo escrito enquanto não desistimos de lutar e estamos dispostos a sacrificar o que mais amamos para aguentar os golpes que a vida nos dá.

Pode bater, que eu sigo em frente.

autografo Adriana Araujo

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