Um Coração Fora de Mim
Pense em uma menina alegre. Era eu! Minha infância foi um lugar seguro, cheio de carinho, com a família unida, muitas brincadeiras e estripulias ao ar livre.
Jogar bola na rua. Vôlei, queimada, handebol, caçador. Eu sempre adorei todas. E preciso confessar: eu sempre levei jeito. Puxei o meu pai, que jogava vôlei pela Polícia Militar e a minha tia, que jogava pela Seleção Paranaense. Vôlei estava no sangue, eu acho.
Outra coisa que teve na minha infância foi uma televisão. No meio da sala de casa. Foi por ela, que com nove anos de idade, eu assisti aos Jogos Olímpicos de Barcelona, em 1992. Foi ali que eu vi o Marcelo Negrão dar o saque e levar o Brasil ao ouro.
Eu tinha só nove anos, mas eu senti uma emoção enorme, qualquer coisa inexplicável. Aquilo ali acendeu uma faísca em mim, eu tenho certeza.
E aí veio Atlanta, em 1996. Eu já jogava vôlei, eu já sabia que eu queria fazer do esporte a minha vida e eu achei aquilo tudo absolutamente fascinante. Eu me lembro daquele jogo, Brasil e Cuba, seleção feminina de vôlei.
Meu Deus.
Meu Deus.
Que loucura.
Eu queria entrar em quadra com as meninas do Brasil, virar aquele jogo na raça. Meu corpo não conseguia ficar parado. Parecia que eu estava lá e foi assim que eu tive certeza que eu colocaria todo o meu esforço, todo o meu trabalho, todo o meu propósito nisso: jogar uma Olimpíada.
Ah, e teve a Gloria Estefan cantando Reach no encerramento. Eu chorava como se ela estivesse cantando para mim. Às vezes, eu acho que ela estava. Já prestou atenção na letra?
Alguns sonhos vivem para sempre no tempo…
Eu vou fazer o que for preciso para cumprir a promessa que eu fiz…
Se eu pudesse alcançar mais alto…
E só por um instante tocar o céu.
Aquela mulher deslumbrante, inspiradora, encantadora, estava cantando para mim. Era como se ela soubesse o que estava acontecendo na minha cabeça naquele momento. E o que aconteceria dali pra frente.
Na minha cabeça e no meu coração.
Era como se ela soubesse que, daquele dia em diante, eu desejaria viver aquela experiência com todo o meu corpo. E eu vivi. E eu vou contar pra você, claro.
Mas antes, teve muita coisa. E eu também quero contar isso.
Porque é a minha história. O meu sonho. O meu caminho para tocar o céu, como a Gloria cantou.
Eu comecei na quadra. Recebi um panfleto da escolinha de vôlei quando saía da aula e fui. Foi natural e, desde então, eu nunca mais parei.
Com 15 anos eu saí de casa para jogar. Voltei para Curitiba, a cidade onde eu nasci, mas onde eu já não morava havia 12 anos. Foi muito difícil, eu era muito apegada aos meus pais, à minha irmã, sempre fui uma pessoa muito família.
Eu só sabia estar perto. Eu esperava ansiosa pelo dia de pegar o ônibus e voltar pra casa, para Paranaguá, mesmo que eu estivesse muito feliz dentro de quadra. Depois, eu fui para São Paulo, Santa Catarina, para Itapema, para o Rio. A casa foi ficando mais longe, e a agenda mais cheia.
As visitas e os abraços mais raros.
Foram várias as vezes que eu chorei de saudades. Que o coração apertou.
Eu sonhava em estar nos Jogos Olímpicos e eu saí de uma edição, na minha casa, com uma medalha de prata no peito.
- Ágatha Rippel
Mas aí eu lembrava do saque do Marcelo Negrão. Das meninas contra Cuba. Da Gloria Estefan dizendo que o sonho existe para sempre.
Você reparou que os meus ídolos eram da quadra? Eu achava que era a quadra que me levaria ao meu sonho. Até que um dia, eu de férias, uma amiga me chamou para bater uma bola na areia.
Vôlei de praia.
Eu achei aquilo bem esquisito, pra falar a verdade. Seu corpo sua, você fica toda grudada. Ágatha à milanesa.
Mas tem uma outra coisa que acontece na areia também: você pega na bola o tempo todo.
São só duas. Não tem jeito. É bola, bola, bola.
Acho que eu não mencionei, mas eu sempre tive fome de bola.
Entendi que aquele era o meu lugar. Eu ia me acostumar com a areia, eu ia me acostumar com o que fosse, porque eu ia jogar ainda mais. Então, com 18 anos, eu disse: sou atleta de vôlei de praia. E com 21, eu fui pro Rio de Janeiro, de onde eu não saí.
Eu fui atrás do sonho, atrás da Sandra.
Sim, porque a essa altura, eu já tinha as minhas ídolas na areia. A Sandra Pires, campeoníssima, maravilhosa, era uma delas. Óbvio. E ela ia abrir time.
O não eu já tinha, né? Fui lá e disse para a Sandra que eu queria jogar com ela.
E ela disse que queria jogar comigo.
Bem, primeiro ela me cozinhou por um mês inteirinho, eu roí todas as unhas esperando. Mas deu certo. E que tempo maravilhoso ao lado dela. Eu aprendi demais. Eu cresci. E o Brasil passou a me conhecer. A menina que jogava com a Sandra. Que honra a minha! Eu costumo dizer que a minha carreira se divide em antes e depois dela.
Foi, sim, um momento de virada.
Mas, de alguma forma, também, foi um começo. Porque eu não podia parar de remar.
O sonho lá na frente. A música.
Porque isso foi em 2005 e, se você pensar que eu ganhei o ouro no Mundial em 2015, dá para imaginar que muita coisa aconteceu nesses 10 anos, não é?
Conquistas, derrotas, suor, lágrimas, muita insegurança.
Mas vontade de desistir não, isso nunca. Porque eu tinha o meu sonho, lembra?
A Gloria cantando. A medalha olímpica.
Eu só não podia imaginar que isso ia acontecer no Rio de Janeiro. A areia do Rio de Janeiro era a minha areia. As pessoas no Rio de Janeiro eram as minhas pessoas. Meu povo. Meu país.
Era o meu idioma que eu ouvia aquela multidão gritando ali na arena. E a arena era um caldeirão.
Me arrepio só de lembrar.
Claro que aquilo empurrou a gente. Mas, também, era uma pressão insana.
Imagina, fazer feio na frente da nossa galera? Pressão!
Eles gritavam o nosso nome. O coração disparava.
Mas deu certo. Ô se deu…
A gente veio de um ano maravilhoso, eu e a Bárbara. A gente sabia que tinha chance de medalhar e eu levei aquilo muito a sério. Como tudo que eu faço.
O que pode ser ótimo, mas também me custa muita coisa.
Sabe que nem ficamos na Vila Olímpica? Passamos duas ou três noites ali, para viver o clima, o sonho, a festa. Para entender que estava mesmo acontecendo. Mas depois fomos pro Centro de Treinamento do Brasil, na Urca, que ficava bem perto da Arena.
Era mais fácil chegar, mais fácil para se concentrar, perfeito pra gente.
Foco total.
O coração em festa, mas o corpo e a mente absolutamente concentrados na nossa missão. E a nossa missão era fazer o nosso melhor.
Foi aquela moleca que viu as Olimpíadas pela TV que me empurrou para subir no pódio. Passa o filme todo na sua cabeça, todas as escolhas, todo o esforço, todas as renúncias.
Tudo que você desejou acontecendo, o coração batendo e a multidão gritando.
Eu sonhava em estar nos Jogos Olímpicos e eu saí de uma edição, na minha casa, com uma medalha de prata no peito.
Não dá pra mensurar o tamanho disso. Não dá.
Segurar a medalha e pensar: Minha filha, eu ralei para te conquistar, viu?
Essa não foi a primeira vez que eu sentia que o mundo estava me dando muito, me entregando tanta coisa boa.
Foi essa mesma sensação, na verdade, que fez com que lá em 2008 eu pensasse em um projeto que me permitisse devolver um pouco de tudo de tão bonito que eu estava vivendo — e ainda iria viver, acho que eu já desconfiava.
Foi assim que eu criei o Projeto Ágatha. Lá em Paranaguá, com apoio do prefeito da época e de várias pessoas que pensavam como eu. Que acreditavam que o esporte pode ser um caminho para a transformação social. Lá, a gente oferece treinamento de vôlei de praia para crianças e funcional para os pais.
É um projeto para a família. Todo mundo junto, integrado, aprendendo e se divertindo. Sem pagar nada.
Eu sempre quis ser mãe. Sempre, desde menina. Mas eu sabia que antes eu tinha um caminho no esporte.
- Ágatha Rippel
Todo mundo ali, ao invés de estar na rua.
Isso é o mais importante.
Todas as vezes que eu estou no Centro de Treinamento do projeto, eu me emociono. De ver as crianças, de ouvir as histórias. E já faz um tempo.
Então estão chegando novas gerações, os filhos de quem foi criança no projeto, há 10, 15 anos.
É muito, muito bonito.
As mães que vêm me abraçar, me agradecer. Se elas soubessem que sou eu que tenho tanto a agradecer…
E agora, eu falei essa palavra, que é o nome do meu outro grande sonho: mãe.
Eu sempre quis ser mãe. Sempre, assim, desde menina.
Mas eu sabia que antes eu tinha um caminho no esporte. Eu tinha planos, metas e muito foco.
E eu achava que não dava para ter as duas coisas juntas.
Eu pensava que a maternidade viria com a aposentadoria.
Até que um dia eu acordei e pensei: não dá mais, eu quero muito. E eu quero rápido, porque eu sou assim.
Deu certo.
Você tá vendo como o universo é generoso comigo?
Eu engravidei logo, um outro coração batendo em mim.
O meu, de novo em festa. Mas, também, dividido: eu não queria parar de jogar.
Então eu não parei.
É claro que eu adaptei os treinos, aumentei os cuidados, fiz tudo com muito suporte e planejamento.
Fui treinando, entendendo o meu corpo novo. Eu não fiquei longe da areia, tentando me preparar para a grande mudança da minha vida.
Kahena nasceu e colocou tudo em outra perspectiva. Sim, é o maior amor do mundo.
Sim, aquelas mãozinhas agarrando o seu dedo são a coisa mais linda de se ver. E sentir.
Mas, também, é uma reviravolta.
Eu sempre fui uma pessoa independente, focada nos meus planos, nos meus objetivos.
No meu tempo. Meu. Meu. Meus.
Mas, meu amigo, o tempo da mãe é outro. Completamente diferente.
O tempo da mãe é o tempo da bebê.
A prioridade da mãe é o bem-estar da bebê.
O coração da mãe… você já sabe o que eu vou dizer.
Então, eu precisei me reorganizar todinha. Por inteiro. Corpo, cabeça, coração.
Levou um tempo — e não sobrou tempo para mais nada. Era Kahena e a bola.
Eu não tenho vergonha de dizer: minha vida toda para isso.
E assim fomos, nos organizando, equilibrando os pratinhos, levando os dias. E hoje, quando eu digo “filha, a mamãe vai trabalhar”, ela já faz assim com as mãozinhas, e o barulho do tapa na bola.
Acho que eu preciso agradecer ao universo de novo, não preciso?
Porque me sentir completa, realizada, é a melhor sensação do mundo.
Mentira: a segunda melhor.
A primeira é ouvir a palavra mamãe saindo daquele coração que bate fora de mim.