As Sensações Que Ficam Para Sempre

Rubens Chiri/SPFC

Türkçe okumak için tıklayınız.

Quantos sonhos cabem num menino de short, sem camisa, brincando com uma bola? É nisso que eu penso quando passeio por aí e me deparo com uma cena assim. 

Numa calçada em Curitiba, sob um viaduto em São Paulo, num quintal em Belo Horizonte, numa praça em Istambul, nas garagens, ruas de terra, no morro, na praia, na beira do rio… Em todo lugar tem um canela-seca de short, sem camisa, descalço, chutando uma bola — que às vezes é só um papel amassado, uma laranja, a tampinha de garrafa. 

E o moleque sorri, isso não varia. 

Eu olho e fico pensando: quantos sonhos cabem nesse momento tão simples de felicidade? 

Talvez a pergunta seja para mim mesmo. Hoje eu vasculho o passado e não consigo me ver em cenas em que não esteja jogando bola. Eu acho que nasci com ela, como se fosse um sexto dedo do meu pé. A minha mãe diz que não, que é exagero, mas ela não prestou atenção quando me viu fora da barriga pela primeira vez. A bola estava lá. 

Quantos sonhos cabiam em mim? Todos os sonhos do mundo, eu diria se tivesse sido poeta em vez de meia-esquerda. E todos os sonhos do mundo, aos trancos e barrancos, eu vivi por causa do futebol. Tive essa sorte. 

Obrigado, futebol! 

Alex Coritiba base infancia
Cortesia de Alex

Sou plenamente realizado. Em 20 anos de carreira como jogador, fiz mais de 1.000 jogos e 423 gols. Mas eu gostaria de falar também dos trancos e barrancos. Não por lamentação ou amargura, nada disso. É que de algumas coisas a gente só se dá conta conforme a idade avança. 

Eu tenho 44 anos e sou técnico do sub-20 do São Paulo agora. Meu trabalho é treinar, educar, orientar e conversar com jovens que, não faz muito tempo, eram molequinhos sorridentes de short e sem camisa que chutavam tampinhas. Às vezes me aflige ter de mostrar pra eles que o futebol, esse nosso sonho doce e maravilhoso, de alegrias, realizações, conquistas e riqueza, pode trazer também alguns dissabores. 

“Tenha sempre memória e paciência.” É o que eu aconselho para a molecada.

Memória para não esquecer todos os percalços que precisou superar pelo caminho. Paciência para não desanimar quando tiver de enfrentá-los.

Alex treinador Sao Paulo sub-20 base
Rubens Chiri/São Paulo FC

Eu custei a entender, porque nunca conversaram comigo sobre isso, mas a maioria das pessoas no futebol acredita que o desrespeito faz parte do jogo, como as traves e a grama. “É assim mesmo. Essas coisas estão lá e pronto, fazer o quê? Vai ficar aí reclamando? Se sentindo mal? Você é homem ou não é?” 

Só que não deveria ser assim. E como pouca gente fala sobre isso, eu quero falar. De canela-seca pra canela-seca.

Por exemplo, quando a gente tá começando e se muda sozinho pra uma cidade grande. Um dia sai tudo errado no treino, ou no jogo, a gente chega no alojamento arrasado e com quem pode conversar sobre aquela sensação de culpa? 

Com as paredes. 

Aos 44 é tranquilo falar. Aos 18 a gente só quer desistir de tudo. Jogador de futebol não é educado para essas situações. 

Mas eu acredito que a educação pode ser uma ferramenta para melhorar não só o atleta e o ser humano que formamos na base, mas o próprio futebol.

O maior benefício da leitura foi despertar minha curiosidade.

Alex

Quase sempre somos meninos simples, de famílias simples, só querendo acreditar que todo mundo é bom. E não existe faculdade de futebol onde te dizem “ó, você vai cobrar escanteio, vai errar e o cara na arquibancada vai te ofender, arremessar objetos, cuspir em você, como se você fosse um criminoso”. 

É triste, mas há diversas coisas assim. 

Nenhum dirigente te conta que aquele repórter vai te paparicar pra conseguir uma entrevista e depois, quando você ligar a televisão, ele vai estar lá te detonando porque você perdeu “um gol feito”. 

Não só na imprensa, mas no público em geral que acompanha futebol, tem muita gente que não faz ideia do que é o trabalho de uma semana num clube profissional, nem sequer das questões pessoais, psicológicas que afetam o desempenho do jogador. Gente que se dá o direito de escolher os heróis e os vilões da rodada como se escolhesse um tomate na feira — os “podres” são descartados.

Outra coisa: nenhum empresário vai dizer pra você se interessar por outros assuntos, manter a mente aberta pra aprender, estudar, porque você ainda será muito jovem quando parar de jogar bola. Ninguém te diz que a tua carreira pode explodir na quarta-feira e ser enterrada no domingo, porque te quebraram o joelho ou porque você errou um pênalti no clássico. 

E isso acontece o tempo todo, como se fossem pesadelos triturando os sonhos que a gente tem quando é moleque. No futebol, um único lance constrói ou arruina pessoas, vidas, histórias. Mas quem gosta de falar dessas coisas? Quem quer ouvir?

Eu, como a maioria de nós, não sabia de nada disso quando batia bola com meu pai ou minhas tias me levavam de caminhão pra ver o time feminino delas jogar. A gente morava no Jardim Campo Alto, região metropolitana de Curitiba, numa casinha de madeira com a latrina no quintal. Eu devia ter uns 10 anos quando conheci um banheiro tradicional, com louça, pia, vaso e chuveiro. Antes era a latrina, que o pai esvaziava quando enchia. 

Nosso campinho lá se chamava Sapolândia, de tanto sapo que a gente precisava driblar depois da chuva: as valetas ao redor do terreno transbordavam e aquilo virava um brejo. Mas pra um menino de short, sem camisa e com uma bola grudada no pé, tudo era diversão e sonhos bons.

Lembro do dia na quermesse da igreja em que eu percebi que seria jogador de futebol. Tinha lá aquela brincadeira de acertar a bola dentro da boca do palhaço de plástico. Quem acertasse ganhava um frango assado. Fomos eu e meu pai tentar. Ele chutou, chutou, chutou e não conseguiu. Eu não entendia como ele errava, porque a boca do palhaço era enorme. 

Até que ele me puxou e falou: “Vem cá, Alex, tenta você”. 

Chutei a primeira, acertei. 

Chutei a segunda, acertei também. 

Chutei a terceira, acertei de novo. 

Depois da sexta ou sétima bola que eu meti na boca do palhaço, o cara da barraca falou: “Chega, esse moleque não pode mais participar, tira ele daí”. 

Eu voltei pra casa feliz, com o jantar garantido e, pela primeira vez, uma noção clara de que a minha perna esquerda podia fazer coisas legais.

Alex camisa 10 Palmeiras
Getty Images

No entanto, esse encanto que a gente carrega no início acaba se desfazendo à medida que nos deparamos com o mundo real do futebol. Por muitos anos, eu ouvi aquela história de “Ah, o Alex não corre. Alexotan”. Nunca me perguntaram como eu me sentia ouvindo isso. Eu vou contar… 

No começo, no Coritiba, eu achava legal, porque, de fato, eu não precisava correr. Eu fazia a bola correr, a gente ganhava os jogos e todo mundo ficava feliz. Só que quando o time perdia transformavam essa “piada” num achincalhe, numa destruição pessoal, como se eu fosse um palhaço de plástico na quermesse e não um ser humano, um garoto de 17 anos. 

Era muito agressivo. 

Tudo bem discutir as minhas características de jogador, maneiras de eu ser mais participativo em campo, menos irregular. Ok, sem problema. Mas raramente a proposta era essa. A intenção era fazer graça, detonar, lacrar, como se diz hoje. Subir pisando na cabeça do outro. E não vou mentir: era pesado pra mim, pesadíssimo.

Aprendi a lidar melhor com isso jogando, jogando e jogando. E também lendo e me interessando por outras coisas, pelo mundo, pelas pessoas. O primeiro cara que me apontou o dedo e disse “se você continuar jogando assim vai parar por aqui” foi o Zinho, no Palmeiras. De cara eu fiquei bravo, discuti com ele, briguei. Mas logo entendi. 

Eu precisava mudar a minha maneira de jogar porque, no Palmeiras, o nível era mais alto. A competição interna era mais forte, os jogos e os adversários eram mais duros, e se eu quisesse fazer parte e evoluir teria que atuar diferente, participar mais do jogo. Então eu mudei. Mas a história de “Ah, o Alex não corre, o Alexotan”, desde que me aposentei transformada em “Ah, o Alex não corria, o Alexotan”, continua até hoje, pesada como sempre. 

Sou uma pessoa tímida, introvertida. E essa característica me fazia dar peso demais para as coisas ruins que vinham de fora. O que me ajudou nessa parte foi a leitura. 

Alex Ademir Alcantara base seleçao brasileira
Cortesia de Alex

Quando comecei no Coritiba, eu concentrava com um jogador já no final da carreira chamado Ademir Alcântara. Um dia ele me deu a biografia do Garrincha e disse: “Garoto, no futebol o que você mais vai ter é tempo livre. Concentração, aeroporto, ônibus, hotel, muitas horas sem ter o que fazer. Livro é uma ótima companhia”. Ele estava certo. E pra minha sorte ainda não existia celular, rede social, nada disso. Então, eu me habituei a ler. Mas o maior benefício nem foi preencher o tempo. Foi despertar a minha curiosidade. 

Naquele começo difícil no Palmeiras, por exemplo, eu quis conhecer as religiões. Fui em igreja católica, evangélica, ortodoxa, em terreiro de candomblé, de umbanda. Eu conversava com pastor, padre, pai de santo, com outros frequentadores. Fazia perguntas, muitas perguntas. Em parte porque eu gosto de pessoas, gosto de ouvir histórias. Mas também, acho, pra buscar algum alívio, um respiro naquela pressão insana. Às vezes ajudava, às vezes não. Porque a verdade é que eu sou um cara que não se conforma com injustiça. 

Talvez, se eu tivesse tido uma orientação, se alguém tivesse contado pro moleque da Sapolândia que o futebol também é feito de injustiça e não só de festa, gol, comemoração, eu poderia ter lidado de forma diferente, sei lá…  

Contar a minha história com sinceridade, sem filtrar meus sentimentos, é o melhor que eu posso fazer para conversar com a molecada que está começando, para tentar evitar que os mais jovens não deixem os pesadelos esmagarem seus sonhos. 

Alex 10 seleçao brasileira Copa do Mundo
Jorge Silva/Getty Images

A gente é ser humano… E o ser humano sente. Uns de um jeito, outros de outro jeito. Uns mais, outros menos. E eu senti muito por não ter tido a chance de disputar uma Copa do Mundo, especialmente a de 2002, quando já era campeão da Libertadores pelo Palmeiras e participei de todo caminho nas Eliminatórias com a seleção. 

Enfim, coisas da vida que vão formando a gente. E a gente nunca faz ideia do que tem dobrando a esquina.

Depois de não ter sido convocado para a Copa, eu vivi uma fase mágica no Cruzeiro, joguei com raiva de tudo e de todos. Conquistei títulos, reencontrei a minha paz, até que dobrei a esquina de novo.

Alex Cruzeiro 2003 triplice coroa
Djalma Vassão/Gazeta Press

Só que, dessa vez, não dei de cara com desilusão nenhuma. Pelo contrário, era a Turquia que me esperava. Eu nunca, jamais poderia imaginar a loucura que seriam os meus anos no Fenerbahçe. Impossível descrever, mas vou tentar. 

O futebol na Turquia é único, não existe nada igual. Todo mundo é apaixonadíssimo por seu clube. Sim, isso é mais forte do que no Brasil. Com uma diferença fundamental… 

Todo mundo vaia o time adversário, o jogador rival. Mas parece haver um limite. Não cruzam a linha. Eu sempre fui bem tratado por torcedores do Galatasaray, Beşiktaş, Trabzonspor, Bursaspor. Encontrava com os caras no aeroporto, na rua, e eles vinham falar comigo na boa. Por isso eu tenho um carinho imenso pelo povo turco. Foi uma experiência inesquecível. 

Não existe nada igual ao futebol na Turquia.

Alex

Lembro que no dia em que eu deixei o clube os torcedores cercaram a minha casa, fizeram uma vigília. Pularam o muro, invadiram o jardim, pessoas contando que tinham viajado quilômetros só pra pegar a minha mão e dizer obrigado.

Num dos dias dessa vigília, que durou mais de uma semana, eu estou lá com a minha família toda e a campainha toca. Eu olho e vejo um sujeito grandalhão, uma cara que eu conhecia de algum lugar e não lembrava de onde. Rapidamente eu me liguei: era um hooligan turco famoso, que já tinha sido preso, torcedor do Galatasaray. 

E agora? O que eu faço? 

Bom, abri a porta pro cara e ele:

— Oi, você poderia autografar umas camisas e tirar uma foto comigo?

— Claro, entra.

— Olha, Alex, você nos fez sofrer bastante… Mas te admiro e te respeito.

Era isso. O cara me deu um abraço, agradeceu e foi embora. Que loucura!

Alex estatua Turquia Fenerbahce
Chris McGrath/Getty Images

E rivalidade não falta por lá. Fenerbahçe x Galatasaray é guerra. Você pode até ganhar o campeonato nacional, mas, se perder o clássico, a sua conquista não é absoluta. E se nenhum dos dois for campeão o que importa é quem terminou a temporada melhor posicionado na tabela. Eu vivi tudo isso com bastante intensidade. 

Foram oito temporadas, sendo campeão e artilheiro e ajudando o clube a passar da fase de grupos numa Champions pela primeira vez, em 2008, uma das coisas mais gratificantes da minha vida. Nós avançamos até as quartas de final contra o Chelsea e por pouco não fomos além. Vencemos em casa e perdemos em Londres por 2 a 0, numa dessas partidas que fazem a gente esquecer dos perrengues e lembrar como o futebol é maravilhoso.

São tantas lembranças boas… Uma vez fui almoçar na casa do maior jogador da história do Fenerbahçe, o Lefter. Ele, um senhor de 80 anos, vira pros caras e diz: “Se eu tenho uma estátua no clube, o Alex tem que ter também”. Fizeram a estátua. 

Outra vez, o Murat, um soldado do exército turco que tinha perdido os dois pés, precisou trocar a prótese que ele usava por um modelo novo, altamente tecnológico e ainda em fase de estudos. Os médicos disseram pra ele escolher um molde pros pés da prótese. E não é que, entre 80 milhões de habitantes do país, ele disse que queria os meus pés?! Até hoje ele brinca que é “de Souza” também. 

Alex The Players Tribune
Rubens Chiri/São Paulo FC

Então, o que ficou pra mim, da volta por cima no Cruzeiro à experiência de vida transformadora na Turquia, é que ali eu voltei a me divertir no trabalho e a acreditar que um ambiente diferente é possível no futebol — e que isso é importante principalmente pra piazada que está chegando. 

Voltei a sonhar. Voltei a ser o canela-seca que driblava sapo e metia sete bolas na boca do palhaço na quermesse. Eu percebi que, mais do que os acontecimentos, as conquistas, a glória, o dinheiro, o que fica para sempre são as sensações. E se é o que fica, a gente tem que cuidar delas com carinho. Guardar na memória.

É por isso que hoje, como treinador e educador, eu adoro ficar lembrando dos momentos de felicidade da minha carreira, como os anos em que joguei no Fenerbahçe e morei em Istambul: pra não esquecer que o futebol sempre será mais sonho do que pesadelo. 

A gente só precisa ajudar os molequinhos de short e sem camisa a manter a chama acesa.

Autografo Alex 10

VEJA MAIS