Para a Torcida Tricolor
Irmão, tu sabe o que é abraço de alívio? Não? Então deixa eu te contar, porque eu conheço essa parada de trás pra frente e de cima pra baixo.
Vamos dizer que abraço de alívio é como a bola, a chuteira, o Maracanã e a camisa do Fluminense. Faz parte da minha caminhada no futebol.
Assim, eu sou da comunidade da Primavera, em Cavalcanti, zona norte do Rio. Nasci e fui criado no alto do morro, bem no alto mesmo. E comunidade não tem esse nome à toa. Ali todo mundo se conhece, se ajuda como dá, torce um pelo outro, ri junto nas conquistas e chora junto nos tombos.
Só que às vezes as coisas ficam complicadas. É operação da polícia, é troca de tiro, é bala perdida… essas coisas que toda hora mostram na TV.
Então, no começo, ir treinar nunca foi simples pra mim. Eu perdi muito treino nos dias em que botar o pé pra fora de casa era arriscado demais. O solzão brilhando lá fora, eu louco pra jogar, mas trancado e ouvindo os estalos, os gritos, o choro e a correria na nossa porta.
Nessas horas, o meu medo só não era maior que a minha tristeza. Não poder treinar me deixava arrasado. Aí, quando as coisas ficavam, vamos dizer, “normais”, eu conseguia sair.
Imagina só: um moleque de 12 anos indo pra escola em Cascadura às 6 da manhã, de lá pro treino de campo em Xerém à tarde, depois direto pro futsal em Laranjeiras à noite e voltando pra Cavalcanti só depois da meia-noite. Tudo de ônibus, sozinho e sem celular.
Rapá, a minha mãe ficava muito aflita. Muito. Tu não faz ideia.
Todas as noites ela me esperava lá embaixo no morro pra gente subir juntos pra casa. E todas as noites, assim que me via, ela corria e me dava um abraço de alívio.
Não me soltava.
Eu não sei dizer quanto durava esse abraço.
Levava tanto tempo que eu podia sentir o coração dela ir desacelerando devagarzinho e aos poucos entrar num ritmo normal. Aí a gente caminhava em silêncio pelas vielas e eu pensava: Será que ela ficou o dia inteiro nessa aflição?
Sim, ela tinha ficado.
Pô, então eu vou fazer tudo isso valer a pena.
Acho que foi assim que eu me fiz jogador de futebol. Cada abraço de alívio que tirava a aflição da minha mãe, em mim, me dizia pra honrar a canhota que Deus me deu e cair pra dentro, que uma hora a minha chance ia aparecer e eu ia conseguir compensar tudo.
As chances, na verdade, não apareceram. Elas foram cavadas pela minha mãe, que, apesar de ter o coração o tempo todo apertado por causa desses perrengues, nunca me pediu pra desistir. Pelo contrário. Foi ela que me colocou no projeto social da comunidade quando eu tinha cinco anos. Depois, o professor disse pra ela procurar algo mais sério pra mim, porque eu tinha jeito com a bola, e ela me levou pro Mackenzie, no Méier.
Mais pra frente, até hoje eu não sei como, mas a minha mãe sempre meteu a cara pra tentar me dar uma vida melhor, ela conseguiu um teste no futsal do Fluminense. Eu fui aprovado e, então, a mágica começou.
Lembro como se fosse hoje: eu saindo de casa pro primeiro dia de treino nas Laranjeiras, minha mãe me segura pelos ombros, olha no fundo dos meus olhos, um pouco tensa mas contente, e manda a letra:
— Alex, faz o que você sabe e não queira ser melhor que ninguém. Você só tem que competir com você mesmo. Esse é o seu começo. Agora vai. Eu vou estar sempre torcendo por você e te esperando com um abraço.
Essa resenha com a dona Lidiane me ajudou em vários momentos depois, quando eu fiz a transição pro futebol de campo e fui treinar em Xerém. Não me refiro à parte técnica, essa eu não estranhei. Por causa do meu estilo rápido, de pensar antes de a bola chegar e conseguir desenrolar na hora do aperto, me adaptei rápido ao campo. E olha que são jogos bem diferentes um do outro.
Mas essa é uma das mágicas do futebol: eu acho que tem coisa que vem com a gente. Tô dizendo o seguinte… Você olha pra caras como o Marcelo e o André jogando e sabe que nem tudo eles aprenderam; muita coisa ali nasceu com eles, e trocar a quadra pelo campo acaba sendo um lance só de se acostumar.
Agora, a mágica não garante tudo. Não garante que a gente nunca tropece, caia e se arrebente. Eu me arrebentei feio quando entrei pela primeira vez na lista de dispensa do Fluminense. O terror de todo moleque da base, em qualquer clube, é a lista de dispensa. Apesar das coisas que eu vim sabendo, das outras tantas que eu aprendi, tinha garoto lá jogando mais. E quem tá na lista de dispensa quer mostrar tudo o que sabe pra sair dela e se livrar daquele nó na garganta. A sensação é péssima.
Nessa época, em Xerém, de dentro do campo eu olhava em volta e via aquele monte de moleque sentado no muro aguardando pra fazer teste e possivelmente tomar o meu lugar. É aflição que chama? Então… Estar na lista de dispensa me mostrou com nitidez o que a minha mãe sentia comigo fora de casa o dia todo enquanto rolava troca de tiro na favela. Me mostrou que o pavor vem da nossa impossibilidade de ter o destino nas mãos. De fazer tudo, tudo, tudo e mesmo assim não ser o suficiente.
O tombo foi inevitável: eu fui dispensado do sub-14 do Fluminense e uma nuvem pesada baixou lá em casa. Nem as lesões que eu tive recentemente me deixaram tão baqueado. Eu ficava triste por ver meu sonho indo pelo ralo, a minha mãe ficava triste por me ver triste e eu ficava mais triste ainda por estar causando tristeza a ela.
Parecia uma viagem com passagem só de ida pro fundo do poço. Só que pra dona Lidiane não existe fundo do poço, né?
Não sei como ela me arrumou um teste no Vasco. Eu fiz e fui reprovado. Depois, teste no Madureira. Passei e fiquei lá um ano, jogando pouco. Era um alívio saber que nem tudo estava perdido. Mas toda noite, quando a gente se encontrava no pé do morro pra subir pra casa, a primeira coisa que eu dizia assim que conseguia me soltar do abraço dela era assim:
— Mãe, eu não sei como, mas vou voltar pro Fluminense.
Só tinha um jeito. Começar tudo de novo, pelo futsal, e tentar cruzar mais uma vez a ponte pra Xerém.
Foi o que eu fiz.
Tudo igualzinho, inclusive a parte ruim. A galera do futsal me recebeu, eu fui bem, fiz a transição pro campo e… fui parar na lista de dispensa outra vez. Mas aí o mundo deu uma freada. A pandemia deixou tudo em modo de espera.
Com os treinos e as aulas na escola suspensos, eu treinava pelo Zoom e jogava pelada com meus amigos no campo de terra no morro. Apesar da apreensão e da incerteza por causa do vírus, eu adorava aqueles rachões. Porque lá era assim: não tinha falta, podia descer a porrada que o jogo não parava. Isso me obrigava a ser mais ligeiro. Soltar a bola rápido, pensar rápido, me desmarcar rápido, ajeitar o corpo rápido, driblar e chutar rápido. Senão tomava pancada.
Quando a gente retomou os treinos presenciais, eu me surpreendi comigo mesmo. Estava jogando mais solto, mais liso. Meus treinadores também perceberam. Eles fizeram uma reunião. Decidiram me tirar da lateral esquerda e me fixar no meio de campo. A partir daí tudo foi dando certo. E eu finalmente me senti um filho de Xerém!
Eu acho que tem coisa que vem com a gente. Essa é uma das mágicas do futebol.
- Alexsander
Não demorou pro Fernando Diniz me puxar pro time profissional. No meu primeiro jogo, contra o São Paulo, quando ele chamou meu nome no intervalo, eu comecei a suar. Encharquei a camisa antes de entrar em campo. Parecia um sonho confuso. Fiquei meio avoado.
Umas imagens aleatórias e bagunçadas se misturavam na minha cabeça. Eu na Leopoldina esperando o ônibus, meu nome riscado numa lista, a gente abaixado em casa em dia de tiroteio, o coração acelerado da minha mãe, o Marcelo saindo do videogame pra visitar a gente em Xerém e perguntando, moleque por moleque, um por um, como estavam as coisas, se ele podia ajudar em algo… E lá no fundo, me trazendo pra realidade, a voz do Diniz:
— Alexsander, presta atenção! O que tu fazia na base tu vai fazer aqui, sem medo de errar. Se tiver que dar caneta, tu dá caneta. Errou, não tem problema. É só correr pra recuperar a bola. Entendeu?
Entendi! E quando dei por mim eu estava tocando na bola pela primeira vez num jogo profissional: um chute forte de fora da área, que o goleiro do São Paulo espalmou e o Cano pegou o rebote pra empatar.
Daí pra frente coisas mais inacreditáveis começaram acontecer comigo, como marcar um gol em decisão de Campeonato Carioca contra o Flamengo, no Maraca lotado. Aquilo foi tão surreal que eu até me perdi um pouco. Eu não sabia pra onde correr, não sabia se ria ou se chorava, eu queria gritar, mas não sabia o que dizer.
No meio da loucura, só me acalmei quando senti o canto da nossa torcida chegar, me rodear e me levantar do chão como se fosse uma marola. Uma sensação de paz que eu nunca tinha sentido. Desde então eu entro em campo desejando só isso: flutuar no canto da galera tricolor outra vez, outra vez, outra, mais outra…
Pra sempre.
E agora nós estamos na final da Libertadores. Eu sei bem o tamanho dessa parada. Mas aprendi a pensar jogo a jogo. Porque desde o começo foi o que o Diniz repetiu pra gente: no futebol, nós temos de viver, da melhor forma possível, o presente.
Não interessa se fomos bem na última partida, não interessa se perdemos, se goleamos, não interessa se estamos desfalcados ou quem vai jogar no próximo fim de semana.
Passou, esquece tudo isso.
É o aqui e agora que conta.
Foi assim que a gente chegou na decisão. Uma luta de cada vez e sabendo da ferida que a final de 2008 abriu no peito dos torcedores. Eu tinha só cinco anos, não lembro de quase nada daquela derrota nos pênaltis pra LDU. Mas sei que a ferida é grande, profunda e arde à beça em mim também, porque eu olho pra ela todos os dias.
Sabe, eu tenho um compromisso particular nessa decisão. Na verdade, dois.
Um com o Marcelo, porque ele é a minha referência, a minha inspiração. Sábado contra o Boca eu vou correr tudo o que eu já corro e mais um tanto pelo Marcelo, se precisar. Porque esse cara não tem igual. Ele mais do que ninguém sabe o que é ser um moleque de Xerém, ter dificuldade pra ir treinar, sair do futsal para o campo e conquistar o mundo. O Marcelo sempre foi meu ídolo, o jogador que eu queria ser quando crescesse.
Tenho um compromisso com minha história no Fluminense, com a minha família e, especialmente, com a minha mãe, por ela me mostrar que o futebol é a vida que a gente sonha enquanto os tiros estalam lá fora.
- Alexsander
No dia que eu me machuquei sério, num jogo contra o Cruzeiro, o Marcelo foi eleito o melhor em campo. E eu acho que, até o fim da vida, eu vou esquecer a dor que eu tava sentindo, mas jamais as palavras dele no vestiário. Eu lá deitado na maca pensando se era o meu fim, se um dia eu ia voltar a jogar, o Marcelo vem direto e dá o prêmio dele pra mim:
— Toma que é teu, moleque. Mesmo se machucando, você foi o melhor hoje. Volta logo porque a gente precisa de você.
Caraca! Preciso dizer mais alguma coisa? O Marcelo é um monstro. Todo o meu respeito e admiração, irmão.
O outro compromisso é com a minha história no Fluminense, com a minha família, com o meu pai e, especialmente, com a minha mãe, por causa de tudo o que eu contei antes.
Por ela me ensinar o que é uma aflição, o que é um coração acelerado, um abraço de alívio, me mostrar que o futebol é a vida que a gente sonha enquanto os tiros estalam lá fora.
Obrigado, mãe.
Então, se tudo der certo, sábado no Maraca quem vai dar um abraço de alívio sou eu.
Um abraço de alívio em cada torcedor tricolor que me faz flutuar. A quem sempre serei grato por todo apoio e todo sacrifício para vir ver Flu…
Meu grande amor.
Vamosss!