Às Vezes Antissistema, Sempre Antifascista
Pode ser que você nunca tenha ouvido falar de mim. Talvez já tenha até me visto na televisão, jogando contra o seu time, mas nem deve se lembrar.
Tranquilo, sem problema.
A história que eu quero escrever aqui não é sobre futebol.
Sou um operário da bola, que raramente tem contrato garantido para a temporada seguinte. Tô nesse ramo há muito tempo e já joguei por clubes de camisa pesada, como Fortaleza, Náutico e Santa Cruz, mas ainda não disputei uma primeira divisão de Campeonato Brasileiro. Antes de virar jogador, minha profissão — ou melhor, meu ganha-pão — era bem longe dos gramados.
Durante parte da minha vida, eu fui traficante. Isso mesmo… Traficante. Não tenho vergonha de dizer, irmão. Esse capítulo faz parte da minha história. Pra te contar como eu cheguei vivo até aqui, ainda no corre para vencer nesse esporte, eu preciso reconhecer meu passado.
Agora que você já tem uma noção de quem eu sou, vamos começar do início. Onde tudo começou.
Ceará, Fortaleza, Parque São José, Favela Vertical.
Foi lá que aprendi a jogar bola nos campinhos de terra. Desde moleque, o pessoal do bairro que me via jogando 4 contra 4 nas peladas falava: “Esse cabra aí é diferente dos outros”.
Eu jogava num time do projeto social da favela. Nosso treinador, o Bira, gostava muito de mim e do meu futebol. Um dia ele chegou e disse que tinha me indicado pra fazer teste numa equipe que estavam montando em Natal para disputar um torneio sub-15.
“Simbora!!”, eu respondi de bate-pronto, sem nem perguntar como é que a gente ia pra Natal. De avião é que não era, né? Encarei 10 horas no busão. Um moleque de 14 anos viajando sem o pai e sem a mãe. Só eu e o Renê, meu melhor amigo, que também jogava bola na comunidade e foi indicado pro teste. Era meio que uma loucura. Mas quando a gente vem de favela e tem um sonho, não dá pra escolher muito.
Durante parte da minha vida, eu fui traficante. Não tenho vergonha de dizer.
- Breno Calixto
Depois de um tempo em Natal e de ser reprovado em outro teste, dessa vez no Cruzeiro, eu resolvi voltar pra Fortaleza. Já estava com 17 anos. Só que o Bira tinha assumido o profissional do Coríntians de Caicó e me chamou pra lá. Aí me mandei de volta pro Rio Grande do Norte.
Cheguei para ser o quarto zagueiro, para compor elenco. Daí, a uma semana da final contra o ABC, no Frasqueirão, um zagueiro se machucou. O outro titular tinha levado o terceiro cartão amarelo e estava suspenso.
“É o seguinte, Breno... Vou te colocar nessa fogueira aí”, foi o que o Bira me disse no vestiário.
“Simbora!!”, eu respondi. “Agora vamo ver se eu sirvo mesmo pra essa vida.”
Cara, eu nunca tinha entrado num campo profissional. E ia estrear num jogo para quase 20.000 pessoas em Natal.
O presidente do nosso clube não queria que o Bira me colocasse. Atacante de 17 anos, beleza, é mais fácil. Mas zagueiro de 17 anos? Ninguém é maluco de lançar. Devo minha vida inteira como profissional ao Bira, porque ele me bancou. O ABC acabou sendo campeão estadual. Mesmo assim, fiz uma boa partida na minha estreia. A partir dali eu decidi que seguiria carreira no futebol.
Já tinha alguns anos de profissional, mas eu sentia que, de um jeito ou de outro, eu continuava com o pé fincado na Favela Vertical. E não digo isso por mal. Sempre fui feliz na favela. Aproveitei muito a minha infância, jogava bola, brincava na rua, saía pra roubar goiaba… Não posso reclamar.
Na verdade, as pessoas se baseiam em filme e novela ao criar uma visão errada do que é viver em comunidade. A favela é um lugar bom de se morar justamente pela humildade dos seus moradores.
Você sempre vai encontrar uma mão estendida para quem tá com dificuldade de comprar um botijão de gás, para quem tá devendo aluguel, para quem tá com conta de luz atrasada…
(Se bem nunca pagamos conta de luz na favela. É tudo na base do gato… Hehehe!)
Enfim, é o jeitinho que a gente dá pra sobreviver. Você aprende desde cedo que ninguém é melhor que ninguém. Somos todos uma família só.
Fulano tá passando necessidade? Simbora rachar uma cesta básica e pá… Fome, não passa.
Morre alguém e a mãe não tem dinheiro pra enterrar o filho? Junta todo mundo, pega um dinheiro aqui, outro ali, compra um caixão e dá um velório decente pro filho dela. Porra, isso acontece muito na favela.
Eu vi várias vezes.
E sei disso não só por ter visto, mas porque também tive que ajudar a enterrar muitos amigos.
Um deles… o Renê.
Quem viu ele jogar, sabe que eu não tô exagerando. O Renê era craque de bola. Craque! Depois que fizemos o teste juntos em Natal, ele passou pelo Corinthians, jogou Copa São Paulo e Campeonato Baiano pelo Vitória. Tinha tudo pra ser um grande jogador.
Mas ele sofreu uma lesão grave e voltou pra casa para se recuperar. Foi aí que ele se enrolou na vida…
Convidaram ele para uma festa, que, na verdade, era outra coisa. Lá na favela, a gente chama isso de cruzeta. Era uma emboscada. Ele foi levado para outra cidade e executado com vários tiros. Quando paro pra pensar… Ele tinha só 20 anos. Com todo talento, com todo futuro pela frente.
Mataram o Renê num domingo. Na quinta, ele tinha deixado uma chuteira nova na minha casa. Na cabeça dele, a gente deveria focar no futebol.
“Já arrumei um teste pra gente. Vamos sair dessa vida.” Não deu tempo. Essas foram as últimas palavras que eu ouvi do Renê.
Todo mundo sabe que vida de jogador de time pequeno é complicada. Quando eu não estava jogando ou sem contrato com equipes, eu estava na favela. Ali estão todos os meus amigos e a minha família. E ali também eu precisava correr atrás do meu ganha-pão, porque o dinheiro que recebia jogando bola mal dava pra ajudar com as contas de casa.
Essa vida que o Renê dizia era o tráfico de drogas. Sim, nós dois éramos traficantes.
Antes até de me tornar jogador, teve uma época que… Eu passei alguns anos envolvido no tráfico. Mas não foi porque eu quis.
“Opa, tenho algumas opções aqui e vou escolher o tráfico.”
Nada disso.
Foi o que estava ao meu alcance naquele momento. Pela condição financeira da minha família, o tráfico era o que mais servia para mim. Era o que me dava dinheiro imediato.
Se eu tentei arrumar emprego? Ôh… Mas recebia sempre a mesma resposta: não tem. Quando dava sorte de ir para uma entrevista, os caras perguntavam logo de onde eu era.
Parque São José, Favela Vertical.
Aí já pensavam: “Pá, é bandido!”. Eu praticamente conseguia escutar isso só pela cara que eles faziam.
Você se esforça para procurar uma atividade legal, mas o sistema te fecha as portas. É um sistema julgador, e a pessoa da favela é julgada o tempo inteiro.
Porra, tô tentando ser do bem, trabalhador, mas só levo porrada, é o que a gente sempre pensa.
Então, temos de encontrar formas de sobreviver dentro desse sistema.
Pergunte a 10 traficantes se eles escolheram essa vida. Nenhum deles vai dizer que “optou” pelo risco de ser preso, de ficar 20, 30 anos dentro de uma cadeia ou até mesmo de ser morto. Ninguém deseja isso.
Por ser de onde eu venho, tenho obrigação de ser antifascista.
- Breno Calixto
No começo, a gente praticamente nem percebe que tá entrando. Vende um tantinho aqui, um tantinho ali… E, de repente, aquilo já se torna a sua realidade.
Eu nunca fui de assaltar. Nunca precisei dar um tiro em alguém. Experimentei algumas drogas mais leves como a maconha, mas nunca fui usuário. Até porque os próprios traficantes dão a letra para os moleques que estão começando:
“Querem vender, vão vender. Mas usar é proibido.”
Por um tempo, o tráfico foi meu sustento, incluindo o início de carreira como jogador. Saía pra jogar, juntava o dinheiro do salário de atleta, que era uns 1.500 reais, no máximo, e mandava pros caras que vendiam a droga pra mim.
Essa fase durou pouco, felizmente. Eu ainda não tinha me firmado no futebol. Ainda pensava que tudo podia dar errado. Ainda estava com a cabeça no tráfico.
Só fui largar de vez essa vida depois da morte do Renê e de ver um amigo ser executado na minha frente em pleno Revéillon. Eu percebi que poderia acontecer a mesma coisa comigo. Sabe por quê? Eu só tinha ódio na minha mente. Só queria saber de vingança. Quase entrei em depressão de tanto sentimento ruim que carregava na cabeça. Graças a Deus, meu pai foi firme e segurou a minha onda.
E sabe quem me ajudou a sair do tráfico? Os próprios traficantes.
Meus amigos, que eram os chefes da favela, sempre quiseram me tirar de lá. Eles diziam: “Breno, a gente não quer mais que você venda droga. Você joga pra caramba. Vai correr atrás do seu sonho”.
Quando eu comecei a me firmar no profissional, eles conseguiram me convencer, e eu finalmente entendi que não poderia deixar escapar a oportunidade que Deus me deu de buscar uma vida melhor.
Eles viram que eu tinha futuro e iria representar bem a minha comunidade lá fora.
A maior bobagem que a televisão inventou sobre a favela é que traficante só sai dessa vida se for pra igreja. Que mentira, velho!
Pelo menos onde eu cresci, se você entra limpo e sai limpo, sem dever ninguém, os caras não vão te obrigar a vender droga. Ainda mais eu, que sou cria do bairro. Eles nunca iriam impedir meu sonho. Pelo contrário, me deram o empurrão que eu precisava para seguir carreira no futebol.
Os caras foram ponta firme comigo. E até hoje são meus amigos. O único problema que posso arranjar por lá é se eu voltar pra casa e não levar umas camisas do meu time pra eles.
Também precisei ter muito foco para não me desviar do caminho. Antes, eu tinha dinheiro “fácil” na favela. Agora, eu era profissional, mas ganhando 1.500 reais. E o time ainda atrasava dois, três meses de salário. Isso quando pagava… F***!
O tráfico me ajudou a colocar comida na mesa da minha família. Foi o nosso meio de sobrevivência. Mas, se você me perguntar, te digo que eu me arrependo. As lembranças ruins do que eu vivenciei nesse meio vão me acompanhar para sempre.
Sei que muita gente que não me conhece vai me julgar ao ler este texto, mas eu não me importo. Já até imagino o que estão pensando:
“Ah, tá defendendo bandido!”
“É vagabundo!”
“Entrou pro crime porque quis.”
“Bandido bom é bandido morto.”
“CPF cancelado.”
Essas pessoas não conhecem a verdadeira causa do problema. Muitas delas nem sabem que existe um problema. Elas estão entorpecidas pelo sistema. Ou ganham muito dinheiro com ele. É melhor não enxergar — ou fingir que não enxerga — o problema maior.
Você sabe de qual sistema eu estou falando. É o sistema programado para manter as coisas onde estão. Para manter o povo pobre em seu devido lugar, de preferência na favela.
Um exemplo: meu bairro tem 10.000 habitantes e só duas escolas públicas. Querem mesmo educar as pessoas desse jeito?
Outro: a polícia acha que todo mundo na favela é bandido. Eles sabem quem é bandido e quem não é, ou onde se encontram os verdadeiros bandidos. Mas, muitas vezes, eles estão ali só para agredir e oprimir o trabalhador, ainda mais se for negro.
É claro que tem policial bom, que cumpre sua função. No entanto, muitos deles estão contaminados por esse discurso violento contra a população favelada. Não temos nem o direito de manifestar nossa indignação. Se a gente faz um protesto por mais educação e segurança, toma gás de pimenta e cassetete na cara.
Por ser de onde eu venho, por tudo que eu vivi, tenho obrigação de me opor a esse sistema. Tenho obrigação de ser antifascista.
Ser antifascista é ser contra quem chama a luta para acabar com a pobreza, o racismo e todos os preconceitos de “mimimi”. O fascista de hoje em dia é assim, quer calar as mulheres, os homossexuais, os negros e o povo trabalhador de forma autoritária. Somos a minoria que eles querem esmagar. Mas a gente vai batendo de frente enquanto tiver voz.
Quando alguém diz que a solução para resolver os problemas da favela é agredir e matar, sou contra também. A solução para mudar o sistema está na educação. Em oferecer às crianças da favela as mesmas oportunidades das outras. O ser humano informado e capacitado vai longe.
E aí a gente se dá conta que o buraco é mais embaixo… Cara, até hoje não chegou nem saneamento básico na minha favela. Passa um rio no meio das casas. Quando chove, alaga tudo e vira um lamaçal. Por fora, as coisas evoluem, mas, lá dentro, paramos no tempo.
Sabe quem me ajudou a sair do tráfico? Os próprios traficantes.
- Breno Calixto
Qual é a solução proposta pelo nosso atual Governo? Armar a população e fazer discurso para matar bandido, o que, no fim das contas, só leva mais violência pra favela.
Hoje os moleques começam cada vez mais cedo no tráfico, com 12, 13 anos. Tento fazer minha parte tirando alguns deles dessa vida. Mas não é dizendo “você tem que sair, senão vai morrer” que vou convencê-los. Disso eles já ficam sabendo antes mesmo de entrar pro crime.
Não é com palavras que ajudamos os outros, mas com ações. Há pouco tempo, indiquei um amigo a um time. Agora ele está se encaminhando no futebol. E quero tirar muitos mais. Incentivar quem eu puder.
Costumo dizer que o futebol salvou minha vida. E as pessoas acham que salvou por eu ter realizado meu sonho ou por ter saído da favela ou por ter rodado o Brasil inteirinho ou por ter descoberto meu verdadeiro dom.
Não, o futebol SALVOU minha vida! De verdade! Sem o futebol, eu provavelmente estaria morto. Acredite, isso não é exagero.
Do grupo de 17 amigos da minha infância, só cinco estão vivos, contando comigo. No ano retrasado, a gente fez uma vaquinha pra ajudar no enterro do último amigo que perdi. Como eu disse, isso acontece e vai continuar acontecendo… Por causa do sistema.
A carreira de jogador é curta, mas eu estou disposto a pagar o preço por às vezes me manifestar e me rebelar contra o sistema. É participando da política, é dando a cara a tapa que a gente pode mudar essa realidade. Não quero que meus filhos vivam num país de bosta quando eu parar de jogar. A propósito, o meu mais velho se chama Renê, em homenagem ao maior craque que conheci, meu melhor amigo, que jamais será esquecido.
Não quero ser lembrado como “Breno Calixto, o jogador que saiu da favela”. Até porque eu saí do tráfico, mas nunca saí da favela. Quando estou de férias, me meto lá dentro de novo. Fico descalço, saio sem camisa, ando de moto, curto com a galera… É a minha casa. Quando eu tava na merda, foram os favelados que ficaram do meu lado, não as pessoas que se aproximaram de mim depois que eu virei jogador.
Quero que lembrem de mim como “Breno Calixto, o jogador que É da favela”. O jogador que nunca se esqueceu dos amigos de verdade. E que estará com eles pro que der e vier enquanto estiverem vivos.
Favela não é filme. Favela não é novela. Favela é vida real. E, na vida real, nada se resume ao bem e ao mal.
“Favela venceu.”
Essa é a mensagem que levo no meu peito. É mais um símbolo individual, para mostrar que um favelado saiu da lama e do tráfico de drogas para se tornar um jogador com mais de 10 anos de carreira profissional. Mas eu tenho consciência de que ainda falta muita coisa para a favela vencer de verdade.
Hoje eu defendo a União Recreativa dos Trabalhadores (URT) na primeira divisão do Campeonato Mineiro. Amanhã, sei lá. A única certeza é que sempre estarei na defesa do meu povo e na luta antifascista.
Tô no corre.