De Corpo e Alma

Marcelo Maragni/The Players' Tribune
Em parceria com
Netshoes

Quando você começa uma carreira no esporte de alto rendimento, você se imagina em vários lugares. Em várias situações. Momentos decisivos e inesquecíveis. 

Você quase consegue encostar naquelas imagens, que são muito, muito reais. 

Eu sonhava bastante. Eu me via ganhando o mundo, claro que sim. 

Eu ainda sonho. Ainda bem. 

Mas se tem uma coisa que eu nunca imaginei, nem nos meus momentos mais otimistas, foi comemorar os meus 40 anos bem no meio de uma Olimpíada. 

Quarentando e jogando. Jogando muito. 

E foi exatamente isso que aconteceu. Eu tive até uma festinha, as meninas fizeram para mim. Bolo, parabéns pra você, muitos abraços. 

E depois, o maior presente: a medalha de prata no meu peito. 

Meu coração pulsando com aquela conquista. Eu ali, cheia de vida, me entregando de corpo e alma.

Tóquio, 2021. Que ano. Que sonho. 

Eu sonhei muito, ainda sonho. Mas eu nunca imaginei que eu seria a medalhista olímpica mais velha do Brasil. 

Mais. Velha. 

Velha. 

Eu nem gosto dessa palavra. Porque quando usada no contexto do esporte, tem um tom um pouco pejorativo, uma leve insinuação de que você já passou do tempo. 

Mas, olha: aos 40, eu estava na minha melhor forma. Foi quando eu mais joguei. Quando eu entreguei tudo. E deu no que deu. Então, quer saber? Às favas com essa conversa de velha. Quarentona, absolutamente inteira. 

Na minha primeira Olimpíada. 

Nem nos meus maiores sonhos. 

Carol Gattaz Players Tribune
Marcelo Maragni/The Players' Tribune

Assim, quando a gente escuta que uma atleta está em uma Olimpíada aos 40 anos, é natural que a gente pense: Ah, segunda ou terceira vez, já é experiente, tem prática. 

Mas não foi assim comigo. Tóquio, aos 40, foi a minha primeira vez. 

E foi exatamente assim que eu vivi essa história: com  a emoção, o encantamento, com o brilho nos olhos das primeiras vezes. Mas, também, com o sangue nos olhos, porque eu queria aquela medalha como nunca tinha desejado nada. 

E foi mágico. Intenso. Inesquecível. 

Eu me sentia, ainda me sinto, capaz de tudo. Meu corpo respondia, eu entregava, vinha de uma sequência de ótimos resultados. Tudo ali aconteceu exatamente como tinha que acontecer. 

E se você me perguntar, eu digo com toda a certeza: eu não troco essa medalha de prata por nada. Não troco. 

Essa é minha. Você sabe que eu ainda olho pra ela todos os dias? 

Olho. E não troco. 

É claro que ter sido cortada da seleção, lá em 2008, me doeu. Ainda dói quando eu penso nisso. 

Mas o que não te mata, te fortalece, não é assim que se diz?

Eu tinha 27 anos e, olhando daqui, eu acho que eu não estava pronta.  Talvez eu nem jogasse, talvez fosse uma Olimpíada inteira no banco. Mas é óbvio que eu queria ter ido. 

E na época, claro, eu achava que estava pronta. 

Mas não estava. E não fui. 

Olha que bonita essa geração mais nova, cheia de confiança e orgulho. Eu me emociono. E desejo que as pessoas olhem para nós, atletas, e se preocupem com o nosso rendimento. Com a nossa entrega. E é isso.

Carol Gattaz

E o Brasil foi com o time que tinha que ter ido, está aí o ouro que elas ganharam para comprovar isso. Não se contesta um ouro olímpico, não é mesmo?

Mas, também, não se contestam sentimentos. 

Eu respeito a minha dor. 

É claro que machucou. Não sou ingênua de dizer que não. Eu já passei dos 40, não tenho tempo, nem motivo, nem interesse para fingir que eu não senti o que eu senti. 

Mas se fosse possível, eu diria para aquela Carol que acalmasse o coração. Eu voltaria no tempo para dar um abraço nela, para secar aquelas lágrimas (minha nossa, quantas lágrimas!!).

Te acalma, menina. Sossega. 

É provável que ela, a Carol daqueles dias, gargalhasse da minha cara. Ela não saberia sossegar. Eu ainda não sei.  Sossegar nunca foi a minha palavra preferida. 

Desde pequena eu sou assim: agitada, acelerada. Frenética. Foi por isso que eu comecei no esporte, e eu fazia de tudo. Futsal, vôlei, basquete. Me dei bem em todos, desde o começo. Sei lá, tudo me parecia fácil. E gostoso de fazer. 

Até bola queimada. Eu era muito boa em queimada. E as meninas não queriam jogar comigo, porque eu era muito forte. Então vinham os meninos. E eu continuava mandando bem. 

Ainda mando. Quer jogar?

Traz a bola, só vem. 

Carol Gattaz volei
Marcelo Maragni/The Players' Tribune

Na escola, tudo o que queria era que chegasse a hora da Educação Física. Eu só queria jogar bola. Eu ficava ali, inquieta na cadeira, balançando os pés, esperando a hora. E quando ela chegava, eu me sentia em casa. 

Jogar sempre foi a minha casa. 

Assim como a minha mãe. Ela sempre foi abraço, colo, casa, tudo. 

Por isso, quando eu saí de São José do Rio Preto para São Caetano do Sul, foi um susto. 

As pessoas falam muito em perder o chão. Mas eu me senti perdendo o teto. O abrigo. As asas quentinhas da minha mãe, que me abraçavam e diziam que tudo sempre ia ficar bem. 

Imagina. Deixar a minha casa, o colo da minha mãe, do meu pai, o conforto e a segurança de um lugar que se conhece com a palma da mão, para, de repente, dividir a casa com sete meninas, em uma cidade completamente nova, tendo que me reinventar a cada dia.   

Foi um caos. 

Eu ligava chorando para a minha mãe toda semana. Porque não dava pra chamar todos os dias, não era igual hoje, essa modernidade de ligação de vídeo na palma da mão. O tempo inteiro. Com um clique. 

Era caro, e nem sempre funcionava bem. 

Mas eu ligava e chorava e minha mãe dizia: 

— Aguenta mais uma semana, filha. Se depois você quiser voltar, você volta. Mas foca nos próximos sete dias. Só sete.

Com essa conversa, com a sabedoria de uma mãe, com um jeito todo dela, ela foi me levando. E eu fui ficando e me acostumando com a minha rotina nova. A gente se acostuma com tudo, né?

Até com a comida do refeitório, que não era lá grandes coisas. 

A minha mãe já sabia disso. Eu aprendi na marra. 

E foi assim que, com 17 anos, eu começava a me tornar uma profissional. 

Eu começava com aqueles sonhos todos que eu já falei. 

E aí, você sabe o que aconteceu: São Caetano, Curitiba, São Caetano de novo, Osasco, Itália (sim, o país), Rio de Janeiro, Araçatuba, Campinas, Belo Horizonte.  

Cinco vezes o Grand Prix. Três vezes a prata nos Campeonatos Mundiais. Prata também na Copa do Mundo e na Liga das Nações. Dois ouros e uma prata na Copa dos Campeões. Um ouro no Sul-Americano. Três ouros e uma prata no Sul-Americano de Clubes. Sim, tudo isso. 

E muitas convocações para a Seleção Brasileira, mas não nas Olimpíadas — como já falamos. 

Enquanto tudo isso acontecia, a vida acontecia também. 

E eu preciso dizer: eu nunca fiz questão de levantar uma bandeira, de militar, de gritar por uma causa, porque eu não sou assim. Eu estava focada no meu trabalho, no meu jogo. Eu sempre quis que as pessoas me vissem como a atleta que eu sou. 

Mas, também, eu não sou de me esconder. Porque eu não preciso. 

E eu sou uma mulher que ama homens e mulheres. 

Assim. Bissexual. 

Simples, não é? 

E nunca aceitei que me dissessem que isso era errado. Feio. Torto. Absurdo.

É claro que, há 20 anos, eu tinha medo de dizer com a tranquilidade que eu digo hoje. Não vou mentir. Eu tinha medo de não me aceitarem no time. De me olharem atravessado. Eram outros tempos. 

Mas, também, eu sempre tive, ainda tenho, a certeza de que amar é uma coisa tão bonita. 

E que eu não estava fazendo nada de errado. Só sendo quem eu era. 

Quem eu sou. 

Por isso, não houve um grande movimento, assim, de sair do armário, de me assumir. 

Que as meninas que estão começando agora entendam que elas podem se concentrar no jogo delas, sem se preocupar com o que os outros vão pensar sobre quem elas amam ou deixam de amar. 

Carol Gattaz

Mas, chegou uma hora, que eu parei de esconder. Não escondi os meus relacionamentos. Os meus amores. Meu coração. 

Eu agi como eu acredito que todo mundo deveria agir: com naturalidade. 

As pessoas vêm me parabenizar, me dizer que eu abri portas para que outras atletas pudessem fazer a mesma coisa. Que fossem livres. 

Não só no vôlei, mas em outros esportes, que são ainda mais preconceituosos. Machistas. Racistas. 

As pessoas vêm pra me dizer que eu dei coragem. Eu acho isso bonito, sim. Mas, por outro lado, eu queria que isso já nem fosse mais pauta de conversa, sabe?

A Carol tem uma namorada.

Tem, e daí?

A outra tem um namorado e isso não é assunto. 

A fulana não tem ninguém. E isso não é assunto. 

Por que, então, que o meu namoro tem de ser?

Já caminhamos muito, que bom. Mas ainda temos muito o que percorrer. Ainda bem que o cardio está em dia. Se precisar, a gente corre. 

E nós não vamos parar. Olha que bonita essa geração mais nova, cheia de confiança e orgulho. Eu me emociono. E desejo que as pessoas olhem para nós, atletas, e se preocupem com o nosso rendimento. Com a nossa entrega. E é isso. 

Carol Gattaz bola volei
Marcelo Maragni/The Players' Tribune

Que as pessoas olhem para a Carol Gattaz e vejam essa história: da menina que não desistiu. Não desistiu com os perrengues, não desistiu com os cortes, não desistiu com as lesões. 

Que, na verdade, foi ficando melhor com o tempo. Que sonhou e alcançou. 

Que precisou se adaptar e se redescobrir várias e várias vezes. Que vai fazer de novo, se for preciso. 

Que precisou aprender a escutar o corpo. A respeitar o corpo. Que teve que entender como cuidar dessa que é a principal ferramenta para o trabalho. 

Que as pessoas olhem para a Carol Gattaz e pensem, com o perdão do palavreado: que mulher foda! A dona da porra toda. 

E só. 

Que as meninas que estão começando agora entendam que elas podem se concentrar no jogo delas, no desempenho delas, sem se preocupar com o que os outros vão pensar sobre quem elas amam ou deixam de amar. 

Que a gente possa se cuidar.

Do corpo, da mente, do coração. 

Que todo mundo entenda que esporte é esporte e amor é amor. 

E que todos dois fazem muito bem.
Ao corpo, à mente, ao coração.

autografo Carol Gattaz

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