Sim, Eu Ainda Tenho Voz Para Gritar

FIVB/Divulgação

Um ano atrás, eu estava sentada no banco dos réus. Foi assim que eu me senti, como alguém que tivesse cometido um crime. Julgada por, supostamente, ter praticado um “delito de opinião”.

Como é que pode?

Era isso que eu pensava diante de todos aqueles homens que pareciam ter a sentença pronta para me silenciar.

Por várias vezes e por vários motivos, senti raiva nos últimos 365 dias. Mas hoje me sinto de consciência limpa por ter lutado pela minha absolvição. Por ter lutado pelo direito de me expressar livremente.

Se eles imaginaram que aquela denúncia iria me deter, devem ter se frustrado.

Eu não parei. Eu ainda tenho algo a dizer. Muita coisa, por sinal, continua entalada na garganta.

Ainda estou aqui, disposta a gritar quantas vezes forem necessárias pelo que acho justo.

E você, está disposto a escutar? Pois eu tenho uma história para contar. Quero te apresentar as causas que eu defendo, dentro e fora das quadras. E a Carolina que você, por mais que já tenha me julgado pelas fake news que leu por aí ou pelo que eu gritei na TV para todo o Brasil ouvir, não conhece.



Como filha de jogadora, crescer no meio do esporte era uma coisa natural para mim. Em nossa casa tinha um jardim enorme, e foi ali que eu comecei a jogar vôlei com meus irmãos. 

“Eu sou a Shelda.”

“Eu sou a Jackie.”

“Eu sou a mamãe.” 

A gente queria ser como elas. Mas, apesar dessa iniciação precoce, eu tenho de admitir que, no começo, eu não sonhava ser jogadora. Eu queria ser veterinária.

Faltou combinar com minha mãe, que tinha o sonho de que um dos filhos fosse pianista. Então, na minha infância, eu acabei fazendo de tudo: piano, violão, gaita, ginástica olímpica… Só optei pelo vôlei como prioridade por volta dos 11 anos, vendo a Maria Clara, uma das minhas irmãs mais velhas, se arrumando para jogar no Flamengo. 

Carol Solberg Isabel Salgado mae
Cortesia de Carol Solberg e Isabel Salgado

Um dia eu resolvi ir junto e me encantei. A gente não saía do clube. Eu adorava estar ali. Aos poucos, o negócio começou a ficar sério. Fui convocada para a seleção brasileira infanto-juvenil para treinar em Minas Gerais. E, naquela empolgação da juventude, eu percebi que tinha possibilidades de ser uma jogadora de vôlei de quadra e topei sem pensar muito.

Eu estava com 14 anos nessa época. Consegue imaginar o que é para uma garota carioca, criada na praia, ter de se mudar para Minas? Posso te garantir que é uma mudança e tanto. 

Foi lá que eu vivi o grande conflito da minha adolescência. Eu queria sair, passar o dia inteiro na praia, ir às festas, curtir o verão do Rio — e quem já passou pelo menos um verão no Rio sabe do que eu estou falando. 

“Ué, cadê a praia?”

Eu não podia dar um mergulho em Minas. Ao mesmo tempo, eu também queria ser jogadora de vôlei. Como o centro de treinamento da seleção ficava em Belo Horizonte e só havia equipes de quadra em outros estados, eu teria que sair de vez do Rio se realmente quisesse seguir essa carreira.

Será que é isso mesmo que eu quero fazer da vida?, pensava.

No meio desse grande conflito, veio uma grande descoberta. Por que não unir o útil ao agradável? Vôlei + praia = Rio de Janeiro. É isso! Por que não ser jogadora de vôlei de praia, como minha mãe?

Era a combinação perfeita.

Mas tinha um problema: eu precisaria dar um jeito de entrar no circuito. 

No meu primeiro campeonato, a menina com quem eu ia jogar se machucou faltando uma semana para o início do torneio. Fiquei sem parceira e já tinha me conformado em adiar a estreia no circuito. Até que veio uma grande solução. Por que não jogar com minha mãe?

Ela tava aposentada do vôlei. Expliquei a situação, respirei fundo e fiz o pedido. 

“Mãe, vamo jogar comigo?”

Sabe como é, né? Mãe é mãe, sempre faz de tudo para agradar os filhos. Mas, para realizar o meu desejo, ela precisou fazer uma dose de sacrifício. O torneio era em Recife. No verão de Recife. 45 graus!!

Cara, tomei um susto quando minha mãe se esticou toda pra pegar uma bola e ficou deitada na areia. Corri para ajudar ela a se levantar, mas tomei um esporro: “Ei, calma, calma... Espera!”. Eu ali, com 15 anos, sem nenhuma casca no vôlei de praia, demorei a entender que ela queria ganhar tempo para recuperar o fôlego debaixo daquele calorão. Minha mãe tava fazendo uma cera. Hahaha!

Nós terminamos o torneio em penúltimo lugar, ganhamos só uma partida, mas jogar com minha mãe foi um barato. Ela me salvou várias vezes, passando bolas de segunda, se antecipando nas disputas de rede… Quantas jogadoras iniciantes podem se dar o luxo de ter a melhor parceira possível logo na competição de estreia?

Também foi o primeiro torneio do meu irmão, Pedro. E a Maria Clara ainda disputou o mesmo campeonato. Logo depois, coincidiu de ela estar procurando uma nova parceira. Eu já tinha cumprido minha parte, que era entrar no circuito. 

“Tá bom, vamos ver qual é…”

Carol Solberg Fora Bolsonaro politica esporte
Adrovando Claro/Gazeta Press

Sim, a Maria topou formar dupla comigo. Eu era uma pirralha, mas ela acreditou em mim. Concordou em dar um passo atrás na carreira, zerando seus pontos no ranking, para me proporcionar a chance de começar minha história no vôlei de praia.

Desde então, foram 13 anos jogando com minha irmã. Sou grata ao esporte pela oportunidade de rodar o mundo ao lado dela e pelos momentos que me presenteou com minha família.

Nossa técnica era a nossa mãe. Ela sempre guiou nossos caminhos, principalmente nos torneios fora do Brasil. Numa das primeiras viagens, quando fomos jogar em Paris, ela tinha uma amiga que morava na cidade e pediu para que a gente pudesse ficar na casa dela. 

“Uau, Paris, a Cidade Luz!”, você deve estar pensando. 

Vai nessa… Essas viagens tinham zero glamour. A gente viajava praticamente no esquema de mochilão, se hospedando na casa de um conhecido do conhecido ou até mesmo em albergues.

No caso dessa amiga da minha mãe, ela morava longe pra caraaaaca do centro de Paris. Quase duas horas de ônibus e metrô. Como a gente não falava nada de francês, penamos para chegar ao local do torneio. 

Quando Maria e eu conseguimos achar o bendito lugar, já exaustas de tanto andar por Paris, a gente encontra o Pedro dormindo num banco de madeira, abraçado com a mala. Ele tinha viajado antes e passou pelo mesmo perrengue. Chegou no local tão tarde da noite que preferiu dormir ali mesmo pra não correr o risco de perder o horário do jogo.

Como eu disse, zero glamour. Isso em um torneio oficial! De qualquer forma, não tenho nada a reclamar, porque o vôlei me permitiu sofrer, mas também vibrar muito ao lado dos meus irmãos.

É verdade que com a Maria Clara nem tudo eram flores. A gente caía na porrada direto, mas fazia as pazes rapidinho. Tudo era muito intenso. Nunca foi uma relação neutra, água de bidê. Chorando ou gargalhando, a gente resolvia todos os problemas assim que eles surgiam. Era uma sorte — e também desgastante — jogar com minha melhor amiga. Mas, em todo esse tempo juntas, tive muito mais alegrias do que tristezas ao lado dela. 

Carol Solberg Maria Clara volei de praia irmas
Matthew Stockman/Getty Images

Quando eu engravidei pela primeira vez, a gente pensou em se separar. Na última hora, concluímos que era bem melhor jogar vôlei uma perto da outra. Porém, quando nós duas engravidamos ao mesmo tempo, entendemos que havia chegado o momento de tentar coisas novas. 

Foi uma dor imensa a nossa separação. 

Jogar contra a minha irmã? Como é que eu vou jogar contra a Maria? 

Nossos dois filhos estavam na arquibancada no nosso primeiro jogo como adversárias. Salvador e Joaquim nasceram com apenas um mês de diferença. Ainda eram bebês naquela partida em Aracaju. 

Olha, deve ter sido um dia horrível para a minha mãe, vendo as duas filhas se enfrentarem. E foi tudo bem esquisito. 

Na hora do jogo, caiu uma chuva torrencial, uma tempestade absurda. Pra completar, eu ainda não tinha me acostumado em ter a Maria como rival. De vez em quando eu falava: “Booora, Maria!”. Mas ela tava do outro lado. 

“Meu Deus, troquei o nome da minha parceira!!!”. Hahaha!

Eu ganhei o jogo, 15 a 13 no tie-break, mas o que nunca vou esquecer é da sensação estranha que foi jogar contra ela, com nossos filhos debaixo de chuva na arquibancada.

Ter filhos e correr um circuito mundial não é fácil. Mais uma vez, eu precisei buscar inspiração na minha mãe para conciliar a rotina de atleta com a maternidade. Ela perdeu vários aniversários nossos e almoços de Dia das Mães ao correr atrás do seu sonho. Mesmo sentindo a distância, eu sabia que ela estava longe porque nos amava. E amava jogar vôlei. Descobri cedo que o mais importante não eram as datas especiais, mas o nosso dia a dia.

Por isso, admiro a coragem da minha mãe. Ela se casou várias vezes, nunca se acomodou em casamento nem teve medo de ficar sozinha. Nada a impediu de dar uma criação exemplar aos filhos.

Temos de quebrar o tabu de que atleta não fala sobre política.

Carol Solberg

Eu também sempre tive muito desejo de ser mãe. Não queria esperar minha carreira acabar para ter um bebê. Aprendi a otimizar meu tempo como mãe e atleta. Nos dois primeiros anos do José, meu primeiro filho, ele cresceu correndo o circuito comigo. Três meses depois de dar à luz, eu já estava competindo novamente. 

Acelerei a minha volta porque existe muita insegurança para as jogadoras que escolhem ser mãe. Passei toda a gravidez do Salvador sem patrocínio. Tive que fazer um investimento pessoal e botar grana do meu bolso pra poder voltar no ano seguinte. 

Pô, é foda tomar a decisão de engravidar com essa pressão de não saber o que vai acontecer. Nem todas têm esse privilégio de bancar o retorno ao circuito. Uma equipe de vôlei de praia custa muito caro. Se você não tiver patrocinadores, a conta não fecha. E aí você paga pra jogar. 

Quando a mulher volta a competir depois da gravidez, não tem nenhum tipo de benefício, pelo contrário. É só prejuízo. Financeiro e técnico, já que perdemos uma porcentagem dos nossos pontos no ranking pelo tempo que ficamos “paradas”. 

É preciso criar um mecanismo de proteção para as atletas que são mães. Afinal, para os homens, ser pai e continuar jogando vôlei não é uma questão. Assim como não é uma questão que tipo de uniforme eles devem vestir.

Carol Solberg The Players Tribune
Fernando Young

Eu já passei por situações constrangedoras, de fotógrafos da própria competição fazerem fotos com certos enquadramentos... Eu entro no site e fico revoltada:

O que é isso?

Estou ali de biquíni, me matando, pulando de um lado pro outro, e o cara vai lá e tira uma foto dessas?

É óbvio que, pelos movimentos na quadra, vai acontecer do biquíni entrar na bunda. Qual a necessidade de botar uma foto desse tipo na Internet?

Não tenho problema em jogar de biquíni. Cada atleta tem de jogar da forma que se sente melhor. Mas há pessoas que sentem mais frio. Eu, por exemplo, sou muito friorenta. Em vários lugares, eu prefiro jogar de roupa. Aí vem um juiz de tênis, calça e casaco e diz que não tá frio o suficiente pra eu jogar de calça…

P****, eu sou brasileira! Pra mim, isso aqui tá um gelo. Quero jogar de roupa.

Eu preciso mostrar que minha mão está congelando, que estou morrendo de frio, simplesmente porque alguém quer decidir como eu devo entrar em quadra.

Alegam que não é bom pra TV ter um monte de mulher vestindo calça. Não me interessa se quem está assistindo quer me ver de calça ou de biquíni. Não é isso que influencia o meu desempenho. Mas, infelizmente, essa é a imagem da mulher que o esporte vende. O vôlei de praia ainda está atrelado à hiperssexualização das atletas. 

Se você só assiste à minha modalidade porque quer ver mulher de biquíni, você faz parte do problema. Nós não jogamos para que nossos corpos deem audiência. Jogamos para que reconheçam o nosso talento e o esporte que amamos. 

O vôlei de praia feminino já é consagrado no Brasil. A essa altura do campeonato, não precisamos da audiência de quem só quer nos ver de biquíni para provar nosso valor. 

Querem fazer um uniforme? Beleza! Queremos ser ouvidas, queremos dizer como nós nos sentimos mais confortáveis. Até 2012, jogar de biquíni era uma obrigação imposta nos regulamentos. Mas até hoje, em algumas competições, a mulher ainda não pode jogar de short, enquanto ninguém obriga os homens a jogar de sunga. 

Carol Solberg biquini volei de praia
Gazeta Press

Inevitável não relacionar isso ao fato de que o poder das instituições que regem o esporte continua dominado pela figura masculina. E o caminho para mudar esse cenário é a política.

“Ai, mas não se mistura esporte com política.” 

Faça-me o favor. Sempre se misturaram. 

Falam tanto em espírito olímpico que o COI deveria incentivar — e não censurar — os atletas a denunciarem a discriminação de gênero, orientação sexual, raça e religião, a não se omitirem diante de violações dos direitos humanos. Esses são os valores que o esporte precisa promover. 

Temos de quebrar o tabu de que atleta não fala sobre política. Somos muito focados em nossa performance, no nosso sono, no nosso descanso. Mas, dentro das limitações de cada um, nós precisamos sair da nossa bolha.

Se eu puder fazer a diferença na vida de uma pessoa, valendo. Ninguém quer fazer propaganda eleitoral ou dizer “vote no candidato tal”. O que eu quero é usar o máximo do alcance que tiver para chamar a atenção da sociedade para causas importantes.

Sob o Governo Bolsonaro, o que há é uma destruição total do pouco que conseguimos construir e avançar neste país.

Carol Solberg

Nunca terei admiração ou idolatria por um atleta só porque ele é o fodão na sua modalidade. 

Maneiro, palmas pra ele. Mas eu, Carolina, não consigo ficar emocionada. O que me emociona é ver o Lewis Hamilton fazendo o que ele faz fora das pistas. Fabi e LeBron, fora das quadras. Marta e Rapinoe, fora do campo. Diogo Silva, fora do tatame. Joanna Maranhão, fora da piscina.

É bom e não usa sua voz pra nada? OK, respeito. Cada um, cada um. Mas não me representa. 

(Se bem que os que ainda apoiam o atual Governo no Brasil, francamente, eu não respeito, não).

Ahhhhrrrggg!! Dá um negócio aqui na garganta! 

Eu adoraria pensar menos em política. Mas, com esse Governo, é impossível não pensar na situação do país. Todo dia eu sinto raiva pelo o que está acontecendo. Isso não significa que governos anteriores não tiveram problemas. A diferença é que havia um lugar aonde se queria chegar. Havia um norte.

Sob o Governo Bolsonaro, o que há é uma destruição total do pouco que conseguimos construir e avançar neste país. Somos a nação que mais mata pessoas pretas e LGBTs e temos um presidente dizendo que não existe racismo no Brasil. Ou que preferia ter um filho morto num acidente do que gay.

Detalhe: ele disse tudo isso antes de ser eleito! E mais da metade dos eleitores votaram nele. 

O que gritei no ano passado é o que eu grito todos os dias da janela da minha casa. Além de ter sido denunciada por isso, ainda fui vítima de muita fake news. Tive até que processar um cara que publicou um monte de mentiras sobre mim no Youtube. 

Por outro lado, fui muito abraçada pelas pessoas que realmente importam. Tenho certeza que eu estava — e ainda estou — defendendo o lado certo da história. A onda de apoio que recebi é bem maior que esse pesadelo que vivemos no país. Uma onda que me deu esperança por dias melhores.

Um ano depois do meu julgamento, eu agora compartilho a alegria de lançar um projeto social, o Instituto Levante, onde oferecemos aulas gratuitas de vôlei de praia a dezenas de crianças. Não podemos normalizar a desigualdade. Temos de fazer o que estiver ao nosso alcance em nome de um país mais igualitário.

O esporte transformou a minha vida. É hora de utilizá-lo para ampliar os horizontes de quem mais precisa e promover valores que eu acredito, como inclusão, diversidade e empatia. No momento, este tem sido o foco da minha energia, sem contar, obviamente, os meus planos de carreira.

Fiquei fora da Olimpíada de Tóquio por poucos pontos, em terceiro lugar na classificação. Foi um golpe duro de assimilar, mas já estou sonhando com Paris — espero que não precise ficar na casa da amiga da minha mãe como daquela primeira vez :)

Carol Solberg carta Players Tribune
FIVB/Divulgação

Quero ir para a Olimpíada porque é o meu sonho, não para levantar bandeiras. Mas, se eu conseguir a vaga e sentir necessidade de me manifestar nos Jogos, pode ter certeza que eu não vou me calar. 

Cresci num ambiente com muitas mulheres, onde eu tenho voz desde pequena. Minha mãe sempre se posicionou e nos mostrou a importância das atitudes que tomamos fora das quadras. Quem vê de longe pensa: “Elas só devem falar sobre vôlei em casa”. Deus me livre! Não mesmo. Falamos sobre tudo.

Sou privilegiada por tantas coisas, mas a principal delas é ser filha da minha mãe. Por ela ter me ensinado não somente a amar o esporte, mas a entender que a vida vai muito além disso. 



Ah, só pra não esquecer… 

FORA BOLSONARO!!!

Autografo Carol Solberg

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