O Barro de Onde Eu Venho
Olá, eu sou Deiveson Figueiredo, tenho 35 anos e sou lutador do UFC.
Mas isso talvez você já saiba. Então eu tô aqui pra te contar o como e o porquê das coisas que me fizeram ser eu. Você se surpreenderia se eu te dissesse que eu venho do barro?
Olha só: eu nasci em Soure, na Ilha do Marajó. Sabe onde fica? Estado do Pará, norte do Brasil. Amazônia brasileira, irmão. Marajó é terra mágica de rio, igarapé, floresta, de praia e outras belezas naturais. Terra também de perrengue, corre, palafita e gente forte que encara tudo com bravura. Marajó é terra de búfalo, vaqueiro, de luta e mistério. Juntando todas essas coisas está o barro que me forma.
É o barro da fazenda onde eu fui criado. Ah, cara, que baita saudade eu sinto. Saudade de correr por aqueles pastos todos com liberdade, sem medo, podendo ver o sol se pôr no horizonte todo dia. Eu reparo muito nisso. Na cidade a gente não consegue enxergar pra mais de dois ou três quilômetros adiante, é ou não é? Na fazenda era diferente. Não tinha prédio na frente atrapalhando. Não existia barreira, não existia limite. E eu acho legal de ter sido uma criança que cresceu sem limite pro olhar. Sabe por quê? Porque isso me levou a descobri que também não existia limite pros nossos sonhos — tá aí o meu cartel do UFC pra provar.
E quando chovia no Marajó? Rapaz! Quando dava aquela tempestade de fim de tarde? Pesada, braba, só encanto. O aguaceiro caía e transformava a pastagem verde em um campo platinado.
De repente ele estava lá: o campo platinado brilhando debaixo da lua e te ensinando sobre força, sobre transformação, sobre a vida.
Lembro que nas manhãs seguintes, eu e meus irmãos saíamos pro alagado pra imitar os vaqueiros. Só que, em vez de búfalo, a gente juntava os patos de minha mãe. Tudo garotinho, a gente laçava os patos e trazia pra malhada, que é essa juntada de bicho, copiando os gestos dos vaqueiros. Depois, mais crescido um pouco, eu comecei a me aproximar da beira do curral pra ver os búfalos de perto. Ô animal brabo! Desconfiado. Imprevisível. Eu gostava de tentar pôr a mão nele pra ver ele reagir e querer me chifrar. Aquela fúria do búfalo me fascinava. E, além do mais, eu não tinha noção do perigo. Nunca tive. Tanto que até os 18 eu trabalhei de vaqueiro com meu pai.
Foi meu pai, um homem também nascido e criado em fazenda, que passou pros filhos esse sentimento de destemor. Ele me ensinou a fazer nó e trançar as cordas pro cabresto, a lidar com animal brabo, a amansar búfalo. Era uma coisa maluca, perigosa, mas que me deixava confiante. Eu realmente sentia prazer em mexer no búfalo. Queria entender ele, prever os movimentos daquele corpo imenso que avançava pra cima de mim querendo me matar. Sabe como é? Um prazer que vinha do risco envolvido, da adrenalina. Eu ficava elétrico.
À essa altura você está associando essas paradas de búfalo e tempestade com a minha carreira de lutador. Só tenho uma coisa a te dizer: você tá certo.
Coragem.
Adrenalina.
Prazer.
Risco.
Eletricidade.
Tem tudo isso na caminhada que a gente faz até o octógono antes do combate. Na minha primeira luta no UFC foi assim. Eu nunca vou esquecer. O locutor Bruce Buffer mandando aquele freestyle dele anuncia o meu nome, eu venho andando e meu pensamento voa pra fazenda, pro alagado, pra beira do curral. De repente eu estou em Soure, pondo a minha mão no dorso de um búfalo, e meu peito parece que vai explodir. Então, hoje, antes de qualquer luta, já virou meu ritual: eu mentalizo a fazenda, imagino que eu estou lá comemorando a vitória com meus amigos, meus irmãos, meu pai. A gente feliz naquele barro da fazenda. Essa é a minha fonte de confiança agora.
É, cara, eu te disse que o Marajó é mágico.
Mas eu nem contei o principal ainda, que é a minha origem na luta. Eu comecei fazendo luta marajoara. É uma modalidade criada no Marajó, só tem lá. Lembra um pouco o wrestling e a greco-romana. Não pode soco nem pontapé nem estrangulamento. O objetivo é só desequilibrar o oponente e jogar ele de costas no chão. A gente chama também de agarrada ou lambuzada, porque ela é bastante praticada pelos vaqueiros dentro do curral, como diversão. Nasceu daí, parece.
Dizem que os vaqueiros se inspiraram nos movimentos de dois búfalos brigando, mas não sei se é verdade. O certo é que é quase uma tradição religiosa pra nós do Marajó. Na festa do Glorioso São Sebastião, que acontece em janeiro, se pratica muita luta marajoara. Os lutadores se lambuzam no barro das primeiras chuvas do ano pra receber a bênção e a proteção do santo. Assim a coisa vai passando de geração pra geração.
Lá em Soure, meus tios e meu avô por parte de mãe são todos lutadores. Praticam a luta marajoara. Meu avô, que é uma figura fundamental na minha vida, colocava a gente pra lutar quase todo dia no quintal de casa.
Você não vai acreditar, mas o meu avô um dia sonhou que eu ganharia o cinturão do UFC. Nesse sonho, ele me via com uma pedra de ouro enorme na mão. Na hora ele interpretou que a pedra de ouro só podia ser o cinturão e aí saiu pelas ruas de Soure dizendo pra todo mundo que o neto dele ia ser campeão do UFC. Ninguém entendeu nada, mas ele tinha razão. Até hoje eu me agarro nesse sonho do meu avô pra ser um lutador melhor. Saudade grande, vô. Um beijo pro senhor. Infelizmente o senhor partiu antes me ver conquistar o cinturão, é a vida, mas eu sinto a sua presença todos os dias nos treinos. Fica em paz.
Bom, e tem meu pai também. Não posso deixar de falar dele. Como o meu avô, meu pai sempre se amarrou em luta. Um dia eu quero levar o velho pro meu corner no UFC. Um dia ele vai comigo, já fiz essa promessa. Foi ele que me ensinou as posições da luta marajoara, as pegadas e muita coisa que eu carrego nos combates de MMA.
Depois eu fui pra capoeira e pro jiu-jitsu, mas a minha principal característica no octógono, que é a agilidade, vem da luta marajoara. Já a agressividade vem do búfalo mesmo. Eu lembro que nos campeonatos que a gente fazia em Soure não existia uma categoria pro meu peso, que na época era 60 quilos. Então eu lutava com os caras de 70 quilos, 75. Pra ganhar eu tinha que ser um búfalo que não existe, cumpádi! Um búfalo ligeiro, búfalo mágico.
E assim eu venho vindo. O curioso é que a luta marajoara me trouxe pro UFC e também quase me fez desistir de tudo. Foi por causa dela que eu vim pra Belém, a capital do Pará. Vim pra ser lutador profissional, mas até conseguir isso eu fui vendedor de CD, de sorvete, fui sushiman, segurança de festa, piloto de mototáxi, carregador de água mineral, o que me dava uma dor na lombar desgraçada e me fazia andar todo torto, vendedor de roupa… Pô, vendedor de roupa… Lembro que na primeira vez peguei 200 reais, comprei minha passagem, vim de Soure a Belém, comprei sete shorts, voltei pra Soure e vendi todos. Com a grana, fui de novo a Belém e dessa vez comprei sete shorts e sete camisas. Toca pra Soure vender tudo. De 200 reais em 200 reais eu fiz uns 4 mil nesse vaivém.
Eu vivo pra nocautear. Eu vivo pra ganhar o bônus e dar uma condição melhor pros meus filhos.
- Deiveson Figueiredo
Mas nem sempre as vendas iam bem. Aí eu trabalhava de ajudante de pedreiro. Pesado demais, eu não gostava, mas a necessidade me fazia levantar da cama e ir. Também tentei trabalhar como pescador, mas logo vi que eu não tinha talento. Até que descobri um trabalho que eu fazia com gosto e competência: cortar cabelo. Cabeleireiro! Trabalhei muito tempo num salão. Fazia chapinha, progressiva e até maquiagem. Chegou um tempo que, vendo que a luta não desenvolvia em termos financeiros pra mim e que nos cortes e tal eu ia bem, falei pro meu patrão no salão: “Chega de luta. Agora eu quero ser cabeleireiro profissional. Vou me qualificar pra isso”. Aí fui fazer curso de colorimetria pra aprender a descolorir e tingir cabelos. Fiquei bom nisso. Estava até com planos de montar um salão pra mim. Eu já tinha desistido de ser lutador.
Até que um cara franzino como eu, amazônico como eu, caboclo como eu começou a nocautear todo mundo no UFC. Era o José Aldo. Acho que ele nem sabe disso, mas foi ele que me instigou a retomar meu sonho de ser lutador.
Deu no que deu, né? Quando eu voltei pra luta e depois cheguei no UFC, o que foi que eu trouxe?
O Deiveson cabeleireiro.
Vou explicar: é que nessa retomada, antes do UFC ainda, a primeira luta que eu fiz eu entrei vestindo uma máscara do Deus da Guerra. Eu tinha visto essa máscara no shopping e fiquei louco por ela. Fui pra academia e falei dela pro meu irmão. Não é que ele me aparece com a máscara? Eu fiquei tão feliz que parecia criança fazendo malhada de pato no alagado. Usei a máscara na primeira luta. Nocaute! Aí ela virou meu amuleto da sorte. Eu saía na rua e o pessoal vinha pedir foto: “Aí, Deus da Guerra! Chega aí, Deus da Guerra! Mandou bem, Deus da Guerra”. Mas quando eu entrei no UFC veio uma água fria: não podia usar máscara, era proibido. Eu pensei: Pô, e agora? Vou ter que criar outro personagem pra continuar com o show.
Aí juntei a minha infância no Marajó e minha vida adulta em Belém. Tudo fez sentido, irmão! Tudo ficou claro, eu pude enxergar longe de novo. Pintei o cabelo de platinado com uma listra vermelha — platinado como o pasto alagado e vermelho como o barro — e pronto, tava escrito: era assim que eu ia vencer no UFC.
E esse sou eu.
A minha vida é isso.
Eu vivo pra dar show pra galera que pagou o ingresso. Eu vivo pra nocautear. Eu vivo pra ganhar o bônus e dar uma condição melhor pros meus filhos.
Eu sou búfalo, cara. Eu sou tempestade. Eu sou guerra. Eu sou marajoara. E nunca me esqueço que foi do barro que eu vim.