Uma Última Luta

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Cincinnati, Estados Unidos, 20 de outubro de 2007. 

Eu podia sentir meu corpo vibrar com a batida da música que vinha do ginásio lotado.

BUM-BUM-BUM! 

À minha volta, os outros lutadores se aqueciam, falavam com eles mesmos, davam pulos, rezavam, batiam contra o peito.

Eu tinha 29 anos. Aquele era o momento mais aguardado da minha vida e eu estava prestes a sair do vestiário, passar no meio do público — umas 20 mil pessoas que não paravam de gritar — e subir no octógono. Antes disso, o cutman, o cara que estanca sangramentos durante a luta, passou por mim e me chamou para “fazer a mão”, que, no jargão, é enfaixá-la com bandagens.

Ele colocou uma cadeira de costas pra outra, mandou eu sentar, estender o braço e, com a prática de quem faz isso diariamente, pegou a fita e começou a enfaixar minhas mãos mecanicamente. 

Aquela era minha estreia na maior competição de MMA do mundo e minha cabeça foi longe. Viajou até um dia específico da minha adolescência, quando o David Kerr, que seria campeão mundial de taekwondo — mas naquela época era só meu amigo de escola — chegou com uma fita VHS de UFC na mochila.

Nunca esqueci o que assisti naquele dia. 

Royce Gracie, da família que deu origem ao jiu-jitsu brasileiro, finalizava todos os adversários. Um atrás do outro. Eu já tinha visto lutas de Vale Tudo, mas nunca tinha visto um octógono. Era fantástico. Aquela arena não deixava escapatórias, não tinha para onde fugir. Aquilo era pra valer. Só acabava quando um lutador prevalecia sobre o outro.

Demian Maia MMA UFC Brazilian Jiu Jitsu
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Então, eu estava lembrando dessas coisas quando um tapinha do cutman no meu joelho me devolveu para a realidade: tudo pronto, minha luta de estreia no UFC ia começar. O vestiário continuava com seu clima tenso, os graves da música ainda faziam meu corpo vibrar, a plateia lá fora não parava de gritar um segundo. Antes de levantar, olhei para a minha mão envolta pelas bandagens e notei: eu não tremia. 

Se eu disser que não estava com medo, estaria mentindo. Todos sentem medo antes de uma luta — lutas envolvem coisas demais. Para mim, foram anos de preparação, anos de expectativa desde a época em que assisti aquele VHS. 

Mas minha mão não tremia.

Já no octógono, cumprimentei o Big John McCarthy, o mesmo árbitro daquelas primeiras lutas do Royce. Em seguida, o Ryan Jensen, meu adversário, chegou, batemos luvas e o gongo tocou. A partir daí, eu sabia exatamente o que fazer.

Em pouco mais de 10 segundos, levei o Ryan para o chão, porque é no chão que minha luta acontece. É lá que eu grudo no adversário como cola, sem deixar espaço para ele se mexer, pensar ou ter qualquer reação.

Meus princípios me dizem que a técnica deve prevalecer sobre a emoção.

Demian Maia

O Ryan ainda conseguiu resistir um pouco, mas aos 3 minutos, quando tentou se levantar, joguei ele de novo contra a lona. Dessa vez, consegui encaixar um mata-leão. Foram poucos segundos até ele desistir.

Aquele UFC 77 marcou minha estreia no torneio. Venci com o prêmio de melhor finalização da noite. No fim da luta, ainda ajoelhados, eu e o Ryan nos abraçamos. E, nessa hora, eu pude olhar para minha mão mais uma vez e constatar que eu continuava sem tremer.

Meu corpo estava sob controle, minhas emoções também. Naquele momento, eu tive uma certeza: eu fui feito para o octógono.



Meu objetivo sempre foi o MMA. Mas para chegar lá eu precisava aprender jiu-jitsu.

Quando eu tinha uns 14 anos, vi um evento da família Gracie contra o pessoal do Full Contact e do kung fu — a arte marcial que eu treinava na época. O resultado me deixou completamente obcecado pelo jiu-jitsu, porque lutadores de menor porte conseguiam vencer os de maior sem necessariamente serem violentos.

Pode parecer contraditório, mas luta não tem nada a ver com briga. Luta é um desafio, uma técnica. Depende de dedicação, foco, treino físico e emocional. Briga é choque de vaidade, falta de capacidade para dialogar. Depende de raiva e de uma autoimagem frágil, suscetível a qualquer desacordo. 

Luta é controle, briga é descontrole.

E foi isso que me atraiu. Apesar do jiu-jitsu ter sido estigmatizado durante muito tempo como algo violento, relacionado a grupos de pitboys, eu sempre acreditei que a proposta prática e filosófica da luta propõe o contrário disso. Depois, quando assisti àqueles primeiros campeonatos de UFC, não tive dúvida.

Demian Maia luta UFC
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Apesar da vontade, eu demorei para começar a treinar. Nos anos 1990, além do estigma ruim, o jiu-jitsu era elitizado. As academias eram muito caras e, como havia muita disputa entre artes marciais, eu tinha até receio de sair do kung fu para procurar outro tipo de treinamento. Só consegui fazer isso em 1997, aos 19 anos.

Com pouco tempo no jiu-jitsu, comecei a ganhar competições. Uma atrás da outra. Vice-campeão mundial com a faixa azul, campeão de regionais, campeão mundial com a roxa… Rapidamente, me tornei uma referência, virei professor e fui cinco vezes melhor do mundo.

Em 2003, fui convidado para ir a Tóquio para um um desafio de jiu-jitsu esportivo com kimono entre Brasil e Japão. Foi um negócio especial. Aquela era minha primeira grande viagem internacional e o time brasileiro só tinha campeões: Ronaldo Jacaré, Mário Reis, Bibiano, Fábio Leopoldo… Claro que ganhamos o desafio!

Nos dias seguintes, fizemos alguns seminários, passeamos pela cidade e, um pouco antes de voltarmos ao Brasil, fomos convidados para assistir o Pride, competição que, na época, rivalizava com o UFC.

No caminho, já perto de onde seriam as lutas, começaram a aparecer milhares e milhares de pessoas. Era tanta gente que eu não conseguia entender o óbvio, por isso comentei com um amigo: “Caramba, deve estar rolando algum evento por aqui, deve ser jogo de futebol!”. O cara só olhou pra minha cara e deu risada:

— Claro que não! Tá todo mundo indo pra luta!

Óbvio!! Só que eu nunca poderia ter imaginado algo daquela dimensão: 70 mil pessoas no Tokyo Dome lotado!

Eu já estava maravilhado com a cultura e a educação dos japoneses, mas naquele dia fiquei ainda mais. Aquilo estava cheio como o Maracanã em dia de Fla Flu e, mesmo assim, você conseguia ouvir o que o corner falava pro Minotauro que estava lutando naquela noite.

Durante a luta, dava para escutar até o barulho dos socos e, a cada golpe bem aplicado, a torcida soltava um “Ohhhhh!”, aplaudia e voltava a prestar atenção. Parecia até uma apresentação musical, um concerto, e não uma luta. O público entendia os atletas lá no ringue como verdadeiros artistas marciais. Em determinado momento, eu virei para o Jaca, o Ronaldo Jacaré, e disse: “Eu preciso lutar MMA”.

Jiu-jitsu é a minha arte marcial e eu gostaria de ser lembrado como um dos maiores representantes dela. Mas a verdade é que, apesar do reconhecimento, nunca consegui esquecer o octógono. O UFC era o lugar aonde eu queria chegar.



Consistência. 

Para mim, essa palavra resume minha trajetória no UFC. Depois da minha estreia em 2007, foram 22 vitórias e 11 finalizações. Eu sou o brasileiro com mais vitórias na história. No ranking geral, estou em segundo, atrás apenas do Donald Cerrone, que tem 23.

Esse número é resultado da minha consistência. Por nunca ter desistido de treinar nem de tentar evoluir.

Claro que é importante vencer, ganhar títulos, mas são os treinos, as pequenas coisas do cotidiano que te fazem perseverar. Eu nunca consegui o cinturão, mas minhas derrotas não me desanimaram, porque o cinturão jamais foi meu único objetivo, uma obsessão. O que eu queria era estar no topo e isso não se conquista em um dia, mas no passar dos dias.

Gostaria de subir no octógono mais uma vez e finalmente dizer adeus. Esse seria meu último desejo como lutador de MMA.

Demian Maia

A luta que melhor representa tudo isso aconteceu há três anos, quando eu enfrentei o Ben Askren, um dos maiores lutadores de wrestling dos Estados Unidos. 

Ao contrário de todos os meus outros adversários, o Ben não ia evitar o chão. Pelo contrário. Ele com certeza ia tentar me derrubar, porque sua especialidade, como a minha, é o grappling, a luta agarrada.

Durante o combate, a tática do Ben foi clara: me manter longe das grades, onde eu ganhei a maior parte das minhas lutas, me cansar com golpes de curta distância e me derrubar faltando apenas um minuto para o fim de cada round. 

Demian Maia vs Ben Askren UFC
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Assim, ele deve ter feito as contas, ia garantir uma vitória por pontos. Só que no terceiro round, mesmo sendo um especialista, o Ben me derrubou cedo demais.

Era o que eu precisava para minha consistência falar mais alto. Lutando agarrado, tive tempo de pensar uma saída para a disputa que estava muito dura, encontrei um mata-leão e finalizei no terceiro round.

No fim de 2019, recebi o Oscar do MMA Awards na categoria “Finalização do Ano” por essa vitória contra o Ben. Sem dúvidas, foi o auge da minha carreira.

Depois dessa premiação, veio 2020, a pandemia, e em 2021 chegou ao fim meu contrato com o UFC — uma história que completa 15 anos hoje.

No começo da minha trajetória, depois de eu ter acumulado sete vitórias, começaram a sugerir que eu mudasse meu comportamento, que fosse mais showman, provocasse os adversários, falasse coisas polêmicas. Porque, segundo essas sugestões, só assim eu teria a oportunidade de disputar o cinturão.

Sempre que penso nisso, lembro de um professor do ensino fundamental, o Ricardo Dreguer. Ele dizia: “Ou você tem princípios ou você não tem. Não existem princípios variáveis, que mudam de acordo com o que acontece”. Por isso, eu nunca acatei aqueles conselhos.

Meus princípios me dizem que luta não é briga, que a técnica deve prevalecer sobre a emoção, que o jiu-jitsu é tão interessante justamente pelo elemento de não violência que há nele. E, no futuro, quando as pessoas escutarem o meu nome, quero que elas lembrem também dessas coisas.



Eu tinha uns três anos, estava com minha mãe e meu irmão esperando para atravessar uma avenida movimentada. O sinal estava fechado para pedestres, os carros passavam velozes. 

Do outro lado, eu já podia ver a escola e o porteiro que nos recebia todos os dias com uma palavra de boas-vindas. De repente, eu simplesmente saí correndo para atravessar a rua. Um trólebus, um desses ônibus antigos que eram conectados à rede de energia por umas hastes móveis que ficavam no teto, vinha na minha direção. 

O motorista botou o pé no freio: o barulho da frenagem, o trólebus deslizando pelo asfalto… FRISSSSH!! Deslizando, deslizando, deslizando… Quando finalmente parou, a alguns centímetros de mim, lembro de ver as hastes do teto indo para frente, soltando-se da rede elétrica, movidas pela inércia da freada. A parte de cima do ônibus tombando enquanto os pneus fritavam no chão.

Aqueles segundos duraram uma eternidade e essa lembrança me acompanhou a vida toda. 

Com o passar do tempo, comecei a relacioná-la à ideia de impulsividade e agressividade. Eu era pequeno, não sabia o que estava fazendo, mas fui movido por um impulso. Eu precisava controlar aquilo. E aprendi a fazê-lo lutando, primeiro kung fu, depois jiu-jitsu e, finalmente, MMA no UFC.

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Nunca briguei, nunca banquei o valente na rua, sempre trabalhei com inteligência e paixão. Por isso, tenho certeza que há uma conexão entre aquele menino e o lutador que sou hoje. 

Escrevendo este texto aqui de Helsinque, na Finlândia, onde estou ministrando alguns seminários, fiquei pensando em tudo isso: nas coisas que acredito, nas coisas que me marcaram. 

Minha carreira no UFC acabou, mas não terminou. 

Legados não têm fim. Mas hoje eu cheguei à conclusão de que gostaria de me despedir.

Gostaria de subir no octógono mais uma vez, olhar para a minha mão e constatar que eu continuo sem tremer: não porque tenho coragem de correr na frente dos carros, mas porque tenho a calma da consistência, de saber esperar, de uma vida inteira dedicada a defender os verdadeiros valores da arte marcial. 

Voltar ao lugar onde representei por tantos anos o jiu-jitsu brasileiro, com orgulho de ter entregado o máximo que eu pude, e finalmente dizer adeus… Esse seria meu último desejo como lutador de MMA.

Uma última luta. 

Uma luta simbólica.

Uma luta.

autografo Demian Maia

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