Deserto
O meu local de trabalho é uma terra seca. Um deserto.
Torcedor cruzeirense, desculpa começar dessa forma meio brusca, mas, antes de falar do nosso amor em comum, se você quer me conhecer de verdade, não vejo outro jeito: eu preciso te contar como é passar a vida debaixo das traves tentando impedir o ápice, a maior alegria do futebol, que é o gol.
Pensa comigo… Tirando mãe de goleiro, ninguém assiste a um jogo torcendo por defesas inesquecíveis garantindo o 0 a 0; o que as pessoas querem ver é bola na rede. Quanto mais, melhor. Tanto que de tempos em tempos a Fifa atualiza as regras pra que mais gols sejam marcados, e não menos. Mas aí quem está lá pra ser o estraga-prazeres?
Eu.
Você me pergunta: E os gritos? A tensão? A decepção? A felicidade? Sim, tem tudo isso o tempo todo dentro da pequena área. Só que nada tira a aridez da posição. Nossos erros sobrevivem eternamente. Os acertos não resistem ao próximo chute do atacante adversário. Na infância, somos os últimos escolhidos pro time da pelada. E nossa glória é atrapalhar, como diria aquele narrador, o grande momento do esporte.
Não é à toa que nós usamos o número 1. Olha bem a forma dos algarismos: nem o 0 é mais seco que o 1. Então é por isso que eu digo que o meu local de trabalho é um deserto. Na minha pequena área, nem grama nasce direito, mas ali eu me sinto em paz.
Pois é. Em paz.
No deserto a gente entende que não está sozinho e ouve melhor o que Deus quer nos dizer.
Na primeira vez que ouvi eu tinha 14 anos. Jogava na base do União Bandeirante, do Paraná, depois de ter crescido sendo mascote, ajudante de roupeiro e engraxate de chuteiras no time amador do meu pai, em Nobres, Mato Grosso, onde eu nasci. Era a primeira vez que eu ficava por minha conta. Um menino, o caçula da família, sozinho longe de casa atrás de seu sonho de ser jogador de futebol. No começo a empolgação é grande, a gente se sente forte, adulto, só alegria. Mas não demora pra saudade começar a apertar. É duro. Quem está começando, pais e atletas, precisa saber disso. Porque essa sensação, em muitos e muitos casos, faz com que a garotada abandone o sonho de ser jogador. Tem que estar amparado. Eu quase desisti. Faltou um tantinho assim… Sofria demais com a situação e um dia eu quis resolver aquilo. Deixei o alojamento do clube, fui até um orelhão na esquina e liguei pra casa:
— Não aguento mais, quero voltar. É muito difícil ficar longe de vocês. Estou com saudade e vou voltar.
Foi minha irmã mais velha que atendeu o telefone. Se tivesse sido a minha mãe, que foi contra eu ter saído de casa tão novo, talvez eu tivesse ido procurar a minha terra seca em outros campos. Mas, do lado de lá da ligação, eu ouvi as palavras de Deus saindo da boca da minha irmã Fabiana:
— Fábio, você pode até voltar. Só não pode se arrepender do que escolher.
Não respondi nada. Fiquei mudo. Foi uma conversa curta, de poucas palavras e muito silêncio, que mudou a minha vida. Até hoje eu guardo isso como um sinal.
Porque ela falou uma coisa e bateu em mim outra. Quando desliguei o telefone e caminhei de volta pro alojamento era uma frase diferente que se repetia no meu ouvido, na voz da Fabiana. Dizia: “Calma que tem coisa pra você no futebol, calma que tem coisa pra você no futebol”. E tinha mesmo. Eu só não imaginava que seria tão rápido.
Um ano e meio depois, eu me tornei o primeiro jogador do União Bandeirante a ser convocado pra seleção brasileira de base. Fui campeão sul-americano e mundial sub-17. E a história de como os caras da seleção me acharam é tão surreal que eu fico pensando se não teve uma intervenção divina aí também.
Eu jogava no interior do Paraná. Quem prestava atenção no União Bandeirante? Mas aconteceu um campeonato juvenil em que o União foi uma das sedes. Na nossa chave tinha o Matsubara e a Portuguesa. Se classificavam duas equipes por grupo pro mata-mata em Curitiba e a gente não passou. Aí começa o mover de Deus: Matsubara desclassificado por uso de jogador irregular. O União fica com a vaga e nós vamos jogar contra o Atlético-PR. Todas as partidas no mesmo dia, no mesmo horário, na capital. O pessoal da seleção foi ver Flamengo, o Cruzeiro, os times de maior expressão, claro. Só que caiu uma tempestade, um dilúvio, e o nosso jogo, só o nosso!, precisou ser interrompido. Ficou pro dia seguinte.
Adivinha: só sobrou União x Atlético-PR pros caras da seleção assistirem. E eles assistiram. O deserto tinha virado mar. Resultado?
Eu.
Eu, o jogador que mais vezes vestiu a camisa do Cruzeiro na história. O Cruzeiro! Um dos maiores clubes do mundo! Não vou dizer que lá em Nobres eu não sonhava com coisas grandes enquanto engraxava as chuteiras dos jogadores do time do meu pai. Claro que eu sonhava. Mas isso é enorme.
A partir dali eu continuei sendo convocado para as seleções de base, joguei o Mundial sub-20 de 1999, na Nigéria. Também estavam lá o Ronaldinho Gaúcho, Forlán, Keita, Xavi, e o Júlio César era o meu reserva. Perdemos nas quartas de final pro Uruguai. Na volta, o União me emprestou pro Cruzeiro. Essa primeira vez foi uma passagem curtinha, mas intensa e iluminada. Vou contar por quê…
Eu treinava com os profissionais e jogava com os juniores. À certa altura, o Paulo Autuori me colocou de segundo reserva no time principal e foi aí, mesmo sem oportunidade de jogar, que conquistei meu primeiro título importante, a Copa do Brasil de 2000. Quando a gente ganha um título desse tamanho ao lado de caras como Sorín, Cléber, Ricardinho e Oséas, não tem como ficar indiferente, não tem como duvidar. Tinha mesmo coisa pra mim no futebol!
Mas no fim do empréstimo eu acabei voltando pro União. Lembro que, no último dia na Toca, me despedi do pessoal e fui embora com uma sensação boa de tranquilidade. Não sentia preocupação, decepção, nada. Só uma intuição de que eu ia voltar. Eu não tinha telefonado pra minha irmã dessa vez, mas, sozinho ali dentro do meu carro, me preparando pra partir, eu ouvia claramente a voz, como se alguém estivesse sentado do meu lado, no banco do carona:
— Tem coisa pra você no Cruzeiro.
Fiquei um mês no União e fui pro Vasco como segundo reserva também. Eu tinha 19 anos. O titular era o Helton. Num Vasco x Vitória em São Januário, pelo Campeonato Brasileiro, eu fiquei pela primeira vez no banco, porque o reserva imediato estava machucado. O Helton, que já era o Helton, ídolo da torcida, sentiu o joelho no intervalo. Quando o time volta pro segundo tempo, quem está no gol?
Eu.
Esse jogo foi até tranquilo. Só que no domingo tinha o Santos na Vila Belmiro. A partida das quatro da tarde, com televisão, todo mundo ligado nela porque o Edmundo tinha brigado com o Romário e ido pro Santos. Meu primeiro jogo como titular no futebol profissional. E o primeiro do Edmundo contra o Vasco desde a briga com o Romário. Do meu lado, a ansiedade que senti naquele dia eu nunca mais deixei de ter. É a mesma em todo jogo desde então. Todo. Qualquer estádio, qualquer competição, qualquer adversário. Depois a partida começa, e conforme eu vou tomando conta do meu deserto a ansiedade passa. Mas antes do juiz apitar o início é duro. E eu me sinto do mesmo jeito ainda hoje, sempre, mais de 20 anos depois.
Pegar pênalti é uma dádiva que não tem comparação.
- Fábio
Bom, estou lá como titular nesse Santos x Vasco especial. Pênalti pro Santos. O Edmundo vem caminhando pra bater. No gol, o desconhecido Fábio, de 19 anos. O ex-roupeiro, mascote e engraxate de Nobres. O Edmundo chuta, eu defendo. O juiz manda voltar. Ele chuta de novo. Eu vou nela de novo. Dessa vez na trave e pra fora. O jogo termina 1 a 1, pra alegria das mães de goleiros, especialmente pra minha.
Cinco anos depois, quando termina a minha história no Vasco, eu tinha três propostas sobre a mesa: do Santos, do Atlético-PR e do Cruzeiro. A do Cruzeiro, financeiramente, era a pior. Mesmo assim eu acreditei que era onde eu devia estar. Eu confiava na voz que falou comigo naquele dia em que deixei a Toca pra voltar pro União.
É o seguinte: Deus fala comigo, com você, com todo mundo. O negócio é que eu ouço. E boto fé. Ia ter coisa pra mim no Cruzeiro. E teve. Muito mais do que eu podia desejar.
São quase 1.000 jogos e continuo contando. Mil jogos! Você consegue imaginar? Às vezes, nem eu acredito. Dois títulos de Campeonato Brasileiro, três Copas do Brasil, sete Mineiros, fora os prêmios de melhor goleiro dessas competições e os mais de 30 pênaltis defendidos. É muita coisa. E eu sinto um orgulho danado de cada uma dessas conquistas. Mas pegar pênalti é uma dádiva que não tem comparação.
Nunca marquei um gol na vida, imagino que a emoção seja igual. Talvez igual a fazer gol numa final. E tem também a disputa de pênaltis…
Ah, posso te contar um segredo? Todo goleiro adora uma disputa de pênaltis. Verdade. Porque é o único momento em que a gente não erra. Não tem como. Quem erra ali é sempre o atacante. Na frente dele está um vão de 7,32 metros de largura por 2,44 de altura. Grande pra caramba. No meio, um único obstáculo, fininho como o número 1. Se o atacante não põe a bola pra dentro desse vão imenso, erro dele. Pra gente só resta o acerto, que é defender.
Na decisão da Copa do Brasil de 2017, contra o Flamengo, eu defendi a cobrança do Diego e nós vencemos por 5 a 3, depois do 0 a 0 no tempo normal. Foi engraçado até, porque depois de pegar o pênalti eu dei um “Glória a Deus!” tão alto, tão forte, que me faltou oxigênio no cérebro. Sério! Quase desmaiei. Emoção demais!
Agora, não foi alegria o tempo todo. Quando voltei pro Cruzeiro, em 2005, eu atravessei o portão da Toca pensando nos grandes goleiros que tinham feito isso antes de mim: Raul, Paulo César, Dida… Eu queria ser como eles, estar nessa constelação. Só que o começo foi complicado, eu tinha ficado quatro meses parado e a torcida desconfiava de mim. Tanto que no final do ano o clube contratou mais dois goleiros. Ou seja, a posição não era minha. Se eu quisesse teria que brigar por ela. Me firmei como titular, mas aí veio a primeira lesão no joelho.
Não desanimei e dei a volta por cima.
Bem mais tarde, em 2016, teve outro momento difícil. Eu sofri mais uma lesão grave no joelho e achei que era o fim. Teve desconfiança de novo, se eu realmente seria capaz de atuar em alto nível. Sofri. Fiquei arrasado. Até pensei em encerrar a carreira ou ir embora. Mas eu olhei em volta e tinha a minha terra seca comigo, o meu lugar de paz onde sempre posso ouvir, refletir e me fortalecer.
Não desanimei e dei a volta por cima.
Entre altos e baixos, eu tive muitas oportunidades de deixar o Cruzeiro. Uma delas, a mais engraçada, envolveu a voz e um telefonema também. Vou te contar mais essa história e depois eu paro, prometo. Mas preciso testemunhar isso pra você.
Eu tinha 26 anos e estava de férias na Itália com a minha esposa. Meu empresário me liga:
— Ó, Fábio, vem pra Espanha porque nós fechamos com um time daqui.
— Mas eu tô com passagem pra voltar pro Brasil. Se eu for pra Espanha, corro o risco de perder voo.
— Dá tempo. Vai ser rápido. Está tudo pronto: você assina o contrato, volta pra Itália e pega seu voo pro Brasil.
Lá fomos nós, eu, a Sandra e nosso filho Pablo. Um dirigente do clube nos recebeu no aeroporto e já estava maluco com a minha chegada. “Você vai gostar muito daqui! A cidade é isso, a cidade é aquilo! Os torcedores te adoram!” A gente curtindo. Passamos no hotel pra deixar a Sandra e o Pablo e, quando eu estava saindo, a Sandra me puxa:
— Vem cá, vamos orar.
Achei estranho, porque a gente nunca tinha rezado junto. Oramos e ela falou assim:
— Senhor, se não for uma bênção para as nossas vidas, pode levar a gente embora, que tudo bem.
E eu pensando comigo: Oi?! Como assim?! O que minha mulher tá falando?! É o nosso sonho viver na Europa. Está tudo certo. Só assinar. Eu disse “amém” e fui pro estádio. Era Deus falando com ela, só podia ser. Entendi isso depois. Porque quando sentei na frente do dirigente e li o contrato, vi que estava tudo errado. Valores, duração, tudo. Eu balançava a cabeça e o dirigente:
— Tem alguma coisa errada, Fábio?
— Ô se tem. Só o meu nome está certo aqui.
Aí a gente esclareceu. Meu empresário tinha acertado com um agente espanhol, e esse agente não passou os termos corretamente pro clube. Mesmo assim, o dirigente me queria muito lá e continuou:
— Não tem problema. Pode rasgar esse contrato. A gente escreve outro agora mesmo. O que você quer?
São quase 1.000 jogos e continuo contando. Mil jogos! Você consegue imaginar?
- Fábio
Pedi tudo o que eu queria — aproveitei pra dar uma exagerada, inclusive hahah — e ele não disse um não. Mas, como estava demorando, enquanto redigiam o contrato novo eu dei uma saidinha pra ligar pra Sandra.
— Nossa, Fábio! Onde você está?! A gente vai perder o voo.
— É que estava tudo errado no contrato, mas já resolvi, fica tranquila. Estão refazendo e daqui a pouco eu tô aí.
— Mas você esqueceu da oração?
Eu fiquei mudo outra vez, como anos atrás lá no Paraná. Não respondi nada, desliguei o telefone e voltei pra sala do dirigente:
— Rasga esse contrato também. Eu não vou ficar.
— Nós colocamos tudo o que você pediu. Está errado ainda?
— Está certo agora. Mas, quando Deus fala, eu ouço.
E dessa vez eu ouvia que, apesar do meu sonho de jogar na Europa, e ali era só pegar a caneta pra realizar esse sonho, dessa vez eu ouvia que continuava tendo coisa pra mim no Cruzeiro. Quando entramos no táxi pra ir pro aeroporto, o motorista me olhou pelo retrovisor e disse:
— Gran portero! Você vai se dar bem aqui.
Comentei com a Sandra que podia ser Deus falando pra gente ficar. Ela respondeu que Deus não é da confusão, é da certeza. Eu quase chorei.
Muita água rolou depois disso. Eu voltei, conquistei mais títulos, defendi mais pênaltis e tive mais uma porção de propostas pra sair. Pra Rússia, Portugal, Itália, pro Grêmio, recentemente, quando o Felipão chegou lá. Mas naquele táxi a caminho do aeroporto, eu olhava pela janela e enxergava tudo com nitidez: eu estava abrindo mão de um sonho com a certeza, mais uma vez, de que o meu deserto fica nos gramados de Minas Gerais.
A voz me disse isso tantas vezes e estava me dizendo de novo. E de novo eu escolhi ouvir. Porque Deus tem cuidado de mim ao longo da jornada por este grande deserto. Ele sabe que na Toca e no Mineirão eu cultivo a minha felicidade, irrigando a terra seca da pequena área com o meu suor, as minhas lágrimas e a força da nossa torcida, que me enche de esperança.
Este ano do centenário do Cruzeiro não está sendo fácil. Foi uma tragédia a gente ter caído pra Série B. Eu sou o capitão do time, tenho a minha responsabilidade e conheço bem o lugar que ocupo — dentro da área, na história desse clube gigante e no coração dos torcedores.
Pelo meu tempo de casa, as pessoas acham que eu tenho um poder absoluto, mas, infelizmente, minha atuação é limitada. Ao contrário de quando você recebe um contrato, como na época em que abri mão do meu sonho na Europa para ficar no Cruzeiro, eu não tenho a caneta. Se tivesse, poderia ter feito muita coisa. No entanto, sou funcionário do clube. Não cabe a mim tomar decisões fora do campo.
Apesar das adversidades, digo com total segurança: a gente vai voltar. Eu tenho certeza. Você pode me perguntar como eu posso ter tanta confiança, ainda mais no meio desse doloroso processo de reconstrução.
Eu tenho. E repito: a gente vai voltar! Eu estarei aqui para viver esse momento.
Sabe por quê? Dias atrás eu estava um pouco triste com toda essa situação nossa e fui assistir televisão. Liguei e estava passando um documentário sobre os locais mais remotos da Terra. A voz do locutor explicava que os desertos, por causa da baixa umidade no ar, são os melhores lugares pra gente ver as ESTRELAS em toda sua beleza e grandiosidade e que eles têm o céu mais AZUL que em outras partes do planeta.
Quem você acha que estava falando?
Eu escolhi ouvir.