A Escolha
Ainda me lembro como se fosse hoje como e quando aconteceu comigo.
O momento do clique, quando a chave girou e eu descobri que a Sociedade Esportiva Palmeiras era o meu destino.
Tinha acabado de chegar em São Paulo e, depois de passar em frente ao Allianz Parque e ficar espantado com o tamanho do estádio, fui visitar o alojamento da base.
Ninguém me conhecia e nem mesmo eu não sabia direito quem eram aquelas pessoas. Mas eu já tinha ideia da grandeza do maior campeão do Brasil.
Aquele dia, hoje eu consigo perceber, representaria algo mais importante para mim. Na época, eu jogava pelo Guarani e estava prestes a negociar com o principal rival do Palmeiras. Estava quase tudo certo, só faltando alguns detalhes para fechar o contrato.
Então, aconteceu.
Chegando no alojamento, me deram de presente uma camisa do Palmeiras, que acabava de ser campeão brasileiro. O ano era 2016. Eu tinha 16 anos. Foi a primeira vez que ganhei uma camisa oficial de time de futebol.
Naquele instante, eu soube o que tinha de fazer. Recusei a proposta do rival, aceitei a oferta do Palmeiras e não tirei a camisa do corpo por um bom tempo.
Uma camisa que me proporcionou sonhos que jamais imaginei realizar.
Lá em Morungaba, cidade onde eu nasci, nós não tínhamos acesso a uniformes oficiais dos clubes.
Esse era um objeto de desejo bem distante para nós, na real.
Na minha casa, minha família sempre cuidou de mim, mas não se enganem, não tinha luxo algum…
Quando nós jogávamos futebol, era na raça mesmo: na rua, driblando os adversários e os paralelepípedos. Sentiu aí? Lá se foi mais um tampão do dedo… E vocês acham que a gente se importava com isso? Nem um pouco. A gente queria é jogar futebol até que nossas mães nos buscassem na volta do trabalho.
“Ô, moleque rueiro, bora pra casa jantar!” Kkkk
E só assim nós parávamos, mas no dia seguinte estávamos lá novamente. Jogando bola o dia todo, todos os dias.
Nessa época, quem estava sempre comigo eram meus primos, verdadeiros irmãos para mim. Em meio a nossas brincadeiras na rua, não dá pra esquecer um dos dias mais felizes da minha vida: o dia que eu ganhei uma bola de futebol de verdade.
Sim, porque as bolas que a gente jogava, só por Deus! Muitas vezes, mesmo que nós chutássemos com toda força, elas nem chegavam na área quando estávamos no campo da cidade, o Morungabão. Era bola de plástico, e olhe lá…
Então, eu devia ter uns oito anos quando minha mãe me deu esse presente de Natal.
Era uma bola de futebol oficial branca, com o escudo do Brasil no meio. Nunca chorei tanto como naquele dia. Abracei a bola, dormi com a bola, e, quando acordei, parti pro jogo. Ficamos o dia inteiro no campo.
A gente não precisava de mais nada, falando sério.
Jogava futebol com tanta vontade que acho que vem dessa época essa minha gana de competir, o tempo todo, com todo mundo.
Sem exagero, acho que o caminho natural era mesmo atuar em um clube, como um atleta profissional, vivendo a experiência de um jogador.
Eu sei que existem muitos garotos com talento, que podem chegar lá e fazer a diferença quando começam a jogar pra valer. Mas eu também tinha confiança no meu futebol, de que a minha hora ia chegar.
Porque eu sempre soube que ia chegar.
Então, não me importei, quando entrei no Guarani, de jogar como zagueiro. Eu queria mesmo era viver aquele sonho. E assim a minha história como atleta começou, na zaga.
Quando estava na base do maior clube do interior, surgiu a possibilidade de jogar no Palmeiras. E, assim, tão rápido como apareceu, eu... fiz o que ninguém acredita quando eu conto: recusei.
Eu disse “não”.
Olhando pra trás, eu até dou risada, de nervoso, com essa atitude. Caraca, negar um clube do tamanho do Palmeiras, como eu pude fazer isso?!!
Mas não é arrogância, não é soberba, não é porque eu me achava superior.
Era porque ainda não era o meu tempo.
E eu sempre acreditei nisso: que há tempo para todas as coisas, e que o meu tempo ia chegar, a minha hora ia chegar.
Então, ainda no Guarani, me recordo do meu treinador na época dizendo que ia me preparar para que não acontecesse comigo o que rola com vários jogadores, que vão para um clube grande, batem e voltam, sem estar preparados para isso.
E eu queria estar preparado para viver coisas grandes.
Um ano depois, e lá estava eu, em São Paulo, prestes a tomar a decisão que mudaria de vez a minha vida.
O Corinthians tinha feito uma proposta que parecia irrecusável. Pensando bem, a minha decisão teve, sim, a ver com aquele presente que o Palmeiras me deu, pois eu tive a certeza ali que seria abraçado de uma forma especial pela torcida e pelo clube.
E, como dizem, o resto é história.
Quem sai de uma cidade pequena e, de repente, encontra São Paulo, toma um choque: é tudo muito grande, tem barulho pra todos os lados, sem contar que, muitas vezes, a gente não conhece ninguém.
Minha mãe até veio morar comigo, mas, naquele primeiro mês, moramos na casa de parentes por não saber direito como seria a vida por aqui.
Será que vou conseguir ficar, jogar bem no Palmeiras?, eu pensava.
O tempo passou. E, aos poucos, a mágica começou a acontecer. Meu futebol se destacava e chamava a atenção dos diretores, da torcida e até mesmo da Seleção Brasileira.
Sou capaz de lembrar das lágrimas que caíram no meu rosto quando recebi a notícia da convocação para a Seleção sub-20.
Não fazia tanto tempo assim, eu estava jogando descalço na rua de paralelepípedo, com uma bola que, quando chutava, nem ia longe.
E agora eu estava na Seleção Brasileira, disputando torneio internacional, indo de avião para o exterior, com direito a carro do clube para a reapresentação.
De tão feliz, eu nem podia imaginar o que estava por vir. Às vezes, mesmo que a gente esteja fazendo a coisa certa, a vida vem e nos testa.
Resultado: positivo. Fui pego no doping.
Quero deixar claro aqui que nunca fiz nada de errado quanto a isso, seguindo todas as recomendações do departamento médico. Por isso que nem pensei que uma carne que comi quando estava com a Seleção num torneio no México poderia me causar problemas no exame antidoping. Pior, isso quase custou a minha carreira.
Eu vinha bem no clube, minhas atuações eram comentadas pelos torcedores, pelos conselheiros, geral me elogiando nos treinos do Palmeiras. Mas naquele momento... tudo foi por água abaixo. Quer dizer, se a acusação de doping fosse adiante, eu poderia ficar até dois anos afastado do futebol.
Eu tinha 18 anos de idade e perderia a chance de subir para o profissional. Ou seja, seria o fim do meu sonho.
Graças a Deus, eu recebi apoio de todos no clube, de gente que sempre torceu por mim e que confiou na minha palavra. No julgamento, os advogados conseguiram provar que a carne que eu comi no México estava contaminada com a substância proibida. Até porque eu não tinha motivos para fazer uma coisa dessas intencionalmente.
Depois de um mês afastado do futebol, sem poder nem sequer pisar no clube, eu estava livre para fazer o que mais gosto… Jogar futebol. Jogar pelo Palmeiras.
Acho que uma lição que comecei a aprender nesse dia foi que, quando a gente fica perto de perder aquilo que ama, passamos a dar mais valor e a nos dedicar ainda mais.
No meu caso, eu aprendi que não conseguiria passar outro mês — ou até mesmo uma semana — longe do Palmeiras.
Em dezembro de 2019, os jogadores do time principal ganharam 15 dias de férias antes do início da temporada de 2020, que, eu não tinha como saber, mudaria para sempre a minha história e a história do clube. Nesse mesmo período, saiu o anúncio do técnico que retornava para o Palmeiras depois de muitos anos.
O professor Vanderlei dispensa apresentações. Não tem nem o que falar, um cara que foi vencedor por onde passou e que aposta no talento de atletas da base, com aquele jeitão dele…
— Veberton, dá lá no Gabriel Medina!!!
Foi assim que ele me chamou no meu primeiro treino com o profissional… Hahaha! Ele sempre brincava com esse negócio de trocar o nome dos jogadores:
— Que p**** de Gabriel Medina o quê? É Gabriel Menino, c@r@lh#!!
Não poderia ter alguém melhor para ser meu primeiro treinador no time de cima… Kkkkk!
Tô falando isso porque posso descrever a importância do professor Vanderlei no Palmeiras a partir de dois jogos contra o nosso maior rival, jogos importantes para mim.
Por causa da pandemia, ficamos sem atuar por várias semanas e retornamos justamente num clássico contra o Corinthians, em Itaquera. Na casa deles, fomos derrotados por 1 a 0. A cabeça pesou porque tínhamos a chance de desclassificar o rival, mas, infelizmente, não conseguimos naquele dia.
As rodadas eram curtas e, uma semana e meia depois, lá estávamos nós, de novo, enfrentando o Corinthians, desta vez na final do Paulista.
Na véspera da decisão, o professor Vanderlei mandou nos chamar na concentração, o Patrick de Paula e eu.
E ali ele disse o seguinte: “Quero que vocês fiquem à vontade em campo, felizes. Vocês não chegaram aqui à toa, entendeu?”.
Tem ideia do que é isso? Era a final com nosso principal adversário e ali estava o Luxemburgo, dando uma moral absurda pra molecada.
Então, quando o Patrick pegou a bola para cobrar o último pênalti, eu tinha confiança no que ia acontecer.
O resto é história, né?
Para quem tá de fora, pode não parecer grande coisa, mas, às vezes, nessa passagem da base para o profissional, alguns jogadores se perdem, e isso acontece porque falta uma palavra de apoio na hora certa.
Tanto foi assim que, quando houve a troca no comando técnico, nós sentimos a mudança no esquema tático, mas já estávamos prontos — Wesley, Veron, Danilo, Patrick e eu — para encarar a pressão de uma Libertadores.
Desde o princípio, o Abel enxergou que nosso grupo tinha tudo para ser vencedor.
- Gabriel Menino
E eu não poderia deixar de falar do professor Abel aqui. Nosso treinador é muito inteligente e mudou a forma como nós nos preparamos para os jogos decisivos, principalmente em mata-mata.
As palavras dele grudaram na nossa mente: “Não é o que nós queremos fazer, mas sim o que precisa ser feito”.
Nós aprendemos a disputar até o fim, duelando em cada centímetro do campo, sem deixar o adversário respirar. Pode ser no Paraguai, na Argentina, no Maracanã, no Uruguai… Não importa, nós vamos… até o fim.
E na preparação desses grandes duelos ele nos passa tranquilidade para entrarmos concentrados, respeitando, sim, os times que estão do outro lado, mas sabendo que sempre temos condições de ganhar. Desde o princípio, o Abel enxergou que nosso grupo tinha tudo para ser vencedor.
Tem até um caso engraçado, que vale a pena contar… Na minha primeira Libertadores, eu virei pro Jailson e falei: “Mano, dá pra ganhar essa copa, hein? Vamos ganhar essa p****!!”. E o Jailson, com toda experiência, segurou minha empolgação: “Calma, garoto, é difícil. Ainda nem passamos da fase de grupos”. Eu sabia que era difícil, mas, antes mesmo do mata-mata, eu tinha certeza de que seríamos campeões.
De onde vem essa confiança? Da nossa dedicação em campo, porque a gente sabia que, se entregasse tudo, ia ser muito complicado ganhar da gente. É o que o Abel sempre diz: “Se você faz a sua parte em campo, pode dormir de cabeça tranquila porque fez o seu melhor”.
E a gente sabia que estava fazendo o melhor.
Eu sabia.
O único problema de chegar ao topo é conseguir se manter lá. Ninguém me contou isso numa preleção. Eu tive de aprender sofrendo na pele, pagando pelos meus próprios erros.
Em 2021, o mundo parecia estar aos meus pés.
Depois da Libertadores no começo do ano, tive a chance de viver o sonho olímpico, numa Seleção recheada de craques, jogadores que eu admirava na infância.
Ganhar a medalha de ouro aos 20 anos foi muito especial e, sendo bem honesto, isso mexeu um pouco comigo. Na verdade, mexeu mais do que eu gostaria de admitir na época.
Quando voltei do Japão, e isso é muito comum num time de alto nível como o Palmeiras, outros atletas estavam jogando bem na minha posição.
Eu poderia ter entendido aquilo como um sinal para seguir motivado, para me dedicar mais, para entregar mais e melhor para o clube que aprendi a amar e respeitar.
Mas, infelizmente, eu não agi assim.
Preferi me esconder atrás das coisas que havia conquistado. No fundo do meu coração, eu acreditava que ser titular era não apenas um direito, mas uma obrigação pelo que eu já tinha feito, em tão pouco tempo, no futebol.
É, eu sei, às vezes a gente viaja.
Pouco a pouco, fui deixando de me concentrar nos treinamentos. E, como vocês sabem, a vida é feita de escolhas. E nesse momento da minha, eu fiz as piores escolhas possíveis.
EU escolhi dar mais importância para as coisas de fora do que para o trabalho dentro do clube.
EU escolhi fazer coisas que só deveria fazer nas férias ou nos momentos de folga antes dos treinos.
EU escolhi inventar justificativas em vez de reconhecer que treinava mal porque chegava cansado depois de fazer as coisas que eu não deveria ter feito.
EU, sendo bem sincero de novo, perdi um pouco o foco.
A vida é feita de escolhas. E nesse momento da minha, eu fiz as piores escolhas possíveis.
- Gabriel Menino
Apesar disso, eu sempre dava um jeito de arranjar desculpas pra tudo.
“Por que você não está 100%, Gabriel?”
Porque estou machucado.
“Por que você se machucou de novo?”
Sei lá, todo jogador se machuca…
“Por que você saiu do time?”
Porque estou machucado.
Acabei entrando num círculo vicioso, numa fase de negação tão profunda que já não conseguia perceber que se eu machucava o tornozelo uma, duas, três vezes, não era só por azar, mas porque EU escolhi não tratar direito. Não estava com a cabeça focada nem mesmo para fazer o tratamento de uma lesão.
“Tá, mas a culpa é de quem?”
A culpa é minha. Não tenho o que esconder. Fui eu que cavei esse buraco e só eu, Gabriel, podia sair dele.
Deixei de ser necessário para o clube e, para piorar a minha ansiedade na época, o Palmeiras começou a ir bem sem mim.
Fiquei mais confuso. Inseguro. Com raiva.
E o fundo do poço foi o Mundial, no começo do ano.
Eu torci demais pelo Palmeiras, claro, mas, ao mesmo tempo, fiquei muito frustrado por ter ficado de fora daqueles jogos.
Me lembro das palavras do Anderson Barros, nosso diretor de futebol, que me fez colocar um pé de volta na realidade: “Quando estava bem, você poderia escolher o clube onde gostaria de jogar. Agora, você não consegue nem se firmar aqui. Volte a fazer como antes, Gabriel, a se dedicar. E as coisas vão acontecer”.
Não foi só ele. Minha família, meu empresário e toda equipe que trabalha comigo também mandaram a real pra mim.
E eu finalmente entendi o que estava acontecendo.
Que não havia outros culpados por eu estar fora do time. Que eu deveria parar de inventar desculpas. E compreendi, então, o que tinha de fazer.
Deixei de lado o que me tirava o foco do meu trabalho. Me inspirei em atletas como Casemiro, Neymar, Cristiano Ronaldo e até o McGregor, do MMA. Se quisesse me tornar uma referência no esporte como eles, eu teria de mudar a forma como encarava a minha carreira.
A saída era me dedicar integralmente não apenas para retomar um lugar no time, mas para reconquistar a confiança da torcida, da comissão técnica e da direção do clube.
Mais importante, recuperar a minha confiança no que eu posso fazer em campo. Mesmo com uma carreira tão curta, já fui convocado para a Seleção principal, disputei finais de Libertadores, ganhei vários títulos e até uma Olimpíada.
Sei que posso muito mais e que isso depende só de mim.
Das minhas escolhas.
Só tenho a agradecer a Deus por ser muito bom comigo e me dar oportunidades de corrigir as minhas falhas. De fazer diferente.
E agora, um ano depois de ter começado a cavar o buraco de onde eu consegui sair, tenho a chance de disputar mais uma semifinal de Libertadores (a terceira seguida), sem contar o desafio de conquistar o meu primeiro Brasileirão. Penso nisso toda vez que olho o escudo de campeão estampado naquela camisa que ganhei quando cheguei na base.
Ao torcedor palmeirense, eu posso garantir que não vou cometer os mesmos erros novamente. E que, se tem uma coisa que aprendi cedo, como cria desse clube, é ser obcecado por vencer.
Por isso, não tenho medo de sonhar grande. De acreditar que podemos ganhar mais 10 Libertadores, ou oito Brasileiros ou até mesmo um Mundial. No que depender de nós, vamos lutar sem parar.
Se a vida é feita de escolhas, eu me sinto abençoado por ter tomado a melhor possível no dia que escolhi o Palmeiras.
Era o que eu queria fazer.
E o que precisava ser feito.