A Vida Pelo Basquete

Marcelo Maragni/The Players' Tribune
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Netshoes

Eu gosto de ser eu. 

E eu sou a mesma, a menina que veio lá de Carapicuíba, que subia na bicicleta, no skate, no rolimã. Que carregava o irmão pelo braço para jogar futebol na praça. 

E ele ia. 

Depois disso, sim, eu fui campeã mundial, pan-americana, medalhista olímpica duas vezes e quatro vezes campeã da WNBA, a maior competição de basquete feminino do mundo. E quando eu falo isso, é claro que o meu coração se enche de alegria, porque foram sonhos, sonhos realizados. Mas isso não me mudou. Eu sou a mesma. 

Eu sou a Janeth. 

Eu sou o que eu aprendi com a minha mãe desde pequena: eu sou trabalho, eu sou caráter, eu sou amor. Eu sou a minha mãe e isso é o que eu carrego de mais bonito. 

Eu cresci numa casa cheia de afeto e isso me marcou profundamente. O resto não sobrava, nunca sobrou, mas o amor sim. Minha mãe, dona Rita, sempre fez tudo por mim e pelo meu irmão. 

E essa é a maior força que alguém pode ter. 

Minha mãe sempre disse que a gente devia estudar de manhã, acordar cedo, fazer render o dia. Então era isso, escola no começo do dia e depois voltar pra casa, me mexer, brincar e esperar por ela. 

A hora que ela chegava em casa, nossos corações se enchiam. A casa tava completa. Nós três e o maior amor do mundo.

Quando eu tinha uns nove ou dez anos, eu pensei: e se eu fizesse um macarrão para quando ela chegar? Mas ela já estava chegando e eu resolvi usar a panela de pressão. Você pensa: era o meu primeiro macarrão. Na panela de pressão. Eu não tinha a menor ideia de quanto tempo deixar aquilo ali. Deu certo? Claro que não. Virou uma massa molenga. Não dava pra comer. 

Foi direto para o lixo. 

E minha mãe fez o jantar. 

E a gente riu muito. E eu rio disso até hoje. 

Em 1983, o Mundial de Basquete foi aqui no Brasil. Eu já era fominha na Educação Física, estava jogando vôlei, porque não tinha basquete no Corinthians, onde eu jogava, mas assistir àquelas meninas em quadra mexeu demais comigo. 

Foi ali que começou o sonho: eu queria fazer aquilo. 

Foi a minha professora de Educação Física que me ajudou, ela conhecia os técnicos de Catanduva, no interior de São Paulo, e me levou pra lá. 

Eu tinha 12 ou 13 anos. Uma menina. E de repente, estava morando muito longe de casa, cinco horas de distância, sozinha. Sozinha não, numa república em que eu não conhecia ninguém. Que é um jeito de ser sozinha também. 

A equipe já estava formada, as meninas entrosadas e eu chegando. Com saudade de casa, assustada e, definitivamente, sem muito preparo para morar ali.

Lembra do macarrão? Pois é. 

Eu passava o dia todo na quadra. O treino acabava e eu continuava ali. 

Arremesso. 

Habilidade.

Arremesso. 

Habilidade. 

Janeth Basquete Olimpiada
Marcelo Maragni/The Players' Tribune

De noite eu ia para a aula. E quase sempre eu dormia. Eu estava exausta. Mas nunca reprovei, ficava ali na média, sete, oito. E dez em educação física. Nisso eu sempre tirei dez. 

E, nossa, a saudade de casa chegava a doer. Eu ia no orelhão, telefonar para a minha mãe, e chorava de saudade. E eu sei que ela sentia também, mas ela dizia: 

— Filha, é o seu sonho? Se é, você continua aí. Fica forte. Quando sobrar um trocado, eu vou te ver e a gente mata a saudade. 

E aquilo me dava força, porque era o meu sonho, ela sabia. E eu sabia com toda a minha alma.

Era o meu sonho. E sonho é inegociável, não é?

Com 16 anos, fui convocada para a seleção, mas acabei cortada. Foi ali, naquele corte, que eu prometi a mim mesma: se um dia eu voltar, eu não saio mais.

Janeth

Eu lembro que eu não tinha dinheiro nem pra comprar as coisas básicas de casa, roupa íntima, produto de higiene. Era um aperto só. E aí, eu e outras duas meninas arrumamos um senhor que patrocinava a gente. Todo fim do mês ele dava um dinheiro para essas coisas, e a gente ia, feliz, resolver tudo no supermercado. Meu primeiro patrocinador. 

Sonho. 

Inegociável. 

E as coisas foram acontecendo.  

Logo no final do ano, acabou o Campeonato Paulista e eu fui eleita como a melhor jogadora. Com 16 anos, fui convocada para a seleção.

Sonho, né?

Mas eu fui cortada. A Maria Helena Cardoso me disse: 

— Você não está pronta. Ainda não tem tudo o que precisa. Você tem que melhorar. E aprender a aproveitar todas as oportunidades. 

É claro que aquilo me destruiu. Eu pensei que uma vez dentro, dali ninguém me tirava. Mas a gente se engana. E quando isso acontece, dói. Foi ali, naquele corte, que eu prometi a mim mesma: se um dia eu voltar, eu não saio mais. 

E foi isso. Eu fiquei 21 anos na seleção brasileira. 

Era uma casa aquilo. E eu, que passei toda a minha infância morando em casas simples, dividindo um espaço com várias famílias, tendo em um cômodo só a sala, a cozinha e o quarto, eu me encontrei. 

No começo, a gente ficava lá, catando bola para as grandes. Gandulando. Mas isso significava, também, ver as grandes jogando. Assim, de perto, assim, bem na minha cara. 

Hortência e Paula ali. Era fascinante. 

Meio mágico, né? E por falar em mágica, foram várias as vezes que a Paula passou a bola para mim e eu ali, boba, sem imaginar que isso fosse acontecer. E pum: bolada na cara! Susto. Sangue. E uma risada. Eu estava jogando com elas: com Paula e com Hortência. 

Com aquelas mulheres que eu tinha admirado por tanto tempo. 

Eu estava ali. E sabe? Eu não queria ser melhor que a Paula ou que a Hortência. 

Não. 

Eu queria ser melhor que a Janeth. 

E era pra isso que eu treinava. Todos os dias. 

Janeth Arcain Players Tribune
Marcelo Maragni/The Players' Tribune

Eu ficava lá até fazer 300 arremessos certos. Isso foi me levando, cada vez mais longe, mas também me deu bursite no braço e um problema na cartilagem do joelho, pela repetição do movimento. 

Estar na seleção brasileira é ter suas próprias metas, suas próprias marcas para superar. 

E eu não me deixava abater. Se um dia não treinei bem, eu pensava: amanhã eu vou treinar. E aí, arremessava minhas 300 bolas outra vez. 

O Pan-Americano de Indianapólis, para mim, foi o começo de uma era. Foi o momento que marcou esse encontro, esse tripé com Paula e com Hortência. Ali a gente se entrosou, se entendeu e foi isso que possibilitou a gente a chegar aonde chegou. 

Eu brinco com elas até hoje: que sorte que eu cheguei. Sorte do Brasil, sorte a delas, mas, principalmente, que sorte a minha. Como eu pude aprender com elas e como foi intenso. Maravilhoso. E tem uma coisa que é importante demais: como nós fomos nos tornando um time unido, afinado, todas nós, companheiras, amigas, correndo atrás do nosso sonho e fazendo acontecer. 

Você pensa: Pan-Americano de Cuba, 1991. Ganhar o ouro ali, na casa delas. Fidel Castro entregando medalha pra gente, com cara de poucos amigos. Ele não queria entregar, né? A gente era zebra. Quando começou o jogo, a Paula disse: “Quer saber? Vamos estragar a festa delas aqui na casa delas”. E foi o que a gente fez. 

A gente já tinha aprendido a ganhar de Cuba. A gente já sabia o que fazer. 

Mesmo na casa delas, a torcida inteira contra. Fidel Castro no ginásio. Leonor Borrell pontuando enlouquecida. 

Mas a gente sabia o que fazer. 

E a Paula disse para a gente estragar aquela festa.

Estragamos. E posso dizer: aquela vitória teve um gosto especial. 

Mas aí, veio Barcelona. 

Pensa num tombo. Um capote, uma porrada. Nós fomos vice-campeãs ao contrário. Ou seja: penúltimo lugar, entre todas as seleções. 

O que aconteceu?

A gente se deslumbrou. O sonho. A Vila Olímpica. O olhar para o lado e ver o seu ídolo ali, comendo um lanche bem perto de você. 

A gente queria ver os jogos, andar pela Vila, ir para a discoteca. 

E não dá para ganhar as Olimpíadas indo para a discoteca. 

A gente aprendeu. Do jeito mais difícil possível, mas aprendeu. E chegamos no Mundial de 94 prontas para fazer a diferença. 

Eu treinei muito pra isso. Muito. 

E teve uma coisa bonita demais. 

Estávamos unidas. Absolutamente. A gente gostava de passar tempo umas com as outras. De ficar junto mesmo. E aí, vem uma sintonia. 

Até pintamos todos os nossos tênis de tinta preta porque o nosso diretor, o Waldir Pagan, entendeu uma informação errada na reunião das equipes. Falaram em inglês, ele não falava, uma confusão. E tudo bem, sabe? Porque a gente fez juntas, a gente fez pelo time. 

Sim, eu fui a única sul-americana no começo da WNBA. E parecia que muita gente achava que eu não merecia estar ali.

Janeth

A gente era zebra, de novo. 

Mas sonho… Sonho é sonho.

E fomos crescendo na competição. Sonhando mais alto. 

E aí, vem um jogo decisivo contra a Espanha. Faltava um minuto e meio, a gente perdendo. 

Eu nem preciso fechar os olhos para lembrar do que aconteceu, parece que foi ontem. Parece que foi hoje. 

Ataque delas. A gente pressionando, no meio, no cantinho, na lateral. Menos de um minuto e meio para acabar. Pressão. Lembra da panela do meu macarrão? Era aquilo ali, pressão. 

Tentaram jogar a bola na minha perna, para sair pela lateral e elas recuperarem. Mas o sonho… 

O sonho, né?

A minha coxa amorteceu a bola. Eu recuperei. A pressão, o sonho. Fui para o ataque, fiz uma cesta e um lance livre. E pronto. A gente levou o jogo. 

E, depois, a gente levou o título. 

E vieram outros, e veio a prata em Atlanta, 1996. 

Mas, de novo, podia ser hoje. Inesquecível, inesquecível, talvez o maior choro da minha vida. 

No jogo contra a Itália, o Brasil ganhava por dois pontos. E elas empataram, faltando segundos para acabar. O Miguel pediu tempo. Daí ele me olhou nos olhos e me disse:

— Esses dois pontos você que vai fazer Janeth.  

Você lembra o que a Maria Helena me disse em 86? Dez anos antes, quando me cortou da seleção? Que eu precisava aprender a aproveitar as oportunidades. 

Aquela era uma delas. E eu não ia deixar passar. Eu não podia. 

Eu não deixei. 

A bola na minha mão e pronto. Dois pontos, a nossa vitória. E depois outras vitórias e o pódio. E o choro correndo solto. 

Sonho, né?

Janeth Basquete Players Tribune
Marcelo Maragni/The Players' Tribune

Quando você realiza um sonho, ele não tem dimensão. Não tem preço. Não tem tamanho. 

E foi isso, também, que me levou para a WNBA. 

E foi isso que me fez ser quatro vezes campeã dessa liga. 

E foi isso que me fez seguir adiante todas as vezes que eu sentia um olhar torto, uma bola não passada, uma fala atravessada. 

Sim, eu fui a única sul-americana no começo da WNBA. E parecia que muita gente achava que eu não merecia estar ali. Que eu estava roubando o lugar de uma norte-americana. 

Que não era pra mim. 

Que eu não devia.

Que eu não podia.

Sabe o que eu fazia?

Eu jogava melhor. Eu marcava. Eu treinava obsessivamente. Eu fiz meu nome, eu mostrei que eu estava exatamente onde eu devia estar. Por mim. Pelo meu sonho. Pelo basquete.

Foi um caminho bonito. E eu aprendi a me cuidar. Me cuido até hoje — desse corpo e dessa cabeça que me levaram tão longe. 

E se você me perguntar o que eu faria diferente hoje, eu te digo. 

Nada. 

Absolutamente nada.

Autografo Janeth Basquete

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