Gratidão
“Tem coisas que só acontecem com o Botafogo.”
Tenho certeza que o torcedor botafoguense já ouviu esse comentário por aí.
Para muita gente, a frase significa que nós, apaixonados pelo Fogão, somos azarados.
Em 2014, nós vínhamos de temporadas bem-sucedidas e aparecíamos entre os primeiros colocados nas edições anteriores do Campeonato Brasileiro. Mas esse ano não foi como a gente imaginava.
Infelizmente, o Botafogo acabou rebaixado. E, naquele mesmo momento, quando o clube precisava de mim, eu recebi sondagens de outras equipes. Havia times da Série A que me ofereciam a chance de disputar a primeira divisão. Eu não precisaria passar pela Série B. A depender da minha escolha, eu poderia permanecer no radar das convocações da Seleção Brasileira.
O que você faria se estivesse em meu lugar?
Eu decidi ficar. Meu objetivo era ajudar o Botafogo a subir para a Série A.
Talvez nem todo mundo tenha entendido a minha decisão. “Disputar a segunda divisão por amor? Tá maluco?”
Se eu te contar a minha história, você vai compreender os meus motivos, ainda mais se for tão botafoguense – e sortudo – como eu.
Eu sempre gostei de praticar esportes.
Quando criança, ainda morando no interior de São Paulo, minha mãe queria que eu seguisse uma carreira de atleta, não importava qual fosse a modalidade. Acho que por isso que eu fiz um pouco de tudo. Basquete. Vôlei. Capoeira. Bolinha de gude... Ah, tudo bem, bolinha de gude não conta, mas é para que você tenha ideia de como o esporte era importante na minha vida.
De todos esses esportes que eu praticava, o futebol era onde eu mais me sentia à vontade. Com as outras modalidades, embora eu gostasse, eu não tinha o dom. Já com o futebol, sim. Era diferente. Mas naquela época, pode acreditar, não passava pela minha cabeça que eu pudesse ser goleiro.
Quem foi adolescente nos anos 90 sabe do que eu estou falando. As grandes referências para quem se esbaldava nos campinhos e nas quadras estavam no ataque.
Ronaldo Fenômeno.
Romário.
Bebeto.
Túlio Maravilha.
Eles eram os ídolos de todos aqueles que jogavam futebol. E eram os meus também. Eu queria fazer gol. O que eu não podia imaginar era que havia alguém que tinha notado algo diferente no meu perfil.
Muita gente não sabe, mas foi o Clério que, na Ferroviária, me incentivou a ir para o gol. Eu já tinha tentado como atacante, mas o Clério fez uma aposta em mim.
“Cara, você vai ser goleiro.”
Eu estranhei um pouco, sim, porque, no começo, eu achava que a posição não combinava comigo. Mesmo assim, eu decidi confiar na intuição do meu mentor e, então, passei a jogar no gol.
Mas, se você quiser saber a verdade, eu só fui virar goleiro mesmo num episódio que aconteceu algum tempo depois.
Tinha um torneio em Santa Catarina e o Clério, sempre ele, me disse que lá estavam olheiros de vários clubes importantes, como Botafogo, Cruzeiro e Grêmio.
Minha história como atleta profissional começa a ser escrita aí, mas não do jeito que eu, a princípio, projetava.
Aconteceu o seguinte… Na última hora, sobrou uma vaga para eu jogar na linha, como atacante. Fui lá e... Pra ser sincero, não joguei bem, não.
No fim da partida, quando já estávamos nos despedindo, fui conversar com o olheiro do Cruzeiro. E eu contei pra ele que eu era goleiro. Ele disse que já sabia.
Então, quando a lista dos escolhidos apareceu, meu nome estava lá. Eu não podia acreditar.
Como faria em tantas outras oportunidades ao longo da minha carreira profissional, agarrei aquela chance com muita vontade. Sempre fui muito determinado. O que eu colocava como objetivo, eu perseguia até conquistar.
Dessa vez, o que mais me motivava não era o sonho de ficar famoso, mas saber que minha família dependia de mim. Não tinha essa de “se der, se não der”. Tinha que dar certo!
Os jovens que estão subindo das categorias de base precisam valorizar o clube e não fazer do Botafogo um mero trampolim.
- Jefferson
Ainda consigo me lembrar de quando cheguei para treinar no Cruzeiro. Eu tinha 14 anos.
Sentei na sarjeta e olhei ao meu redor. Havia mais de 1.000 pessoas.
Abaixei minha cabeça e chorei. Eu era só um guri que não conhecia ninguém ali, que não tinha onde dormir, que não sabia nada. Mas eu tinha que chegar. E graças a Deus, eu consegui.
No Cruzeiro, eu me destaquei rapidamente, a ponto de ter sido chamado para treinar com o time principal. Eu me lembro que, na época, o Oséas foi cobrar uns pênaltis e eu defendi algumas dessas cobranças.
“Pô, quem é esse guri que tá me atrapalhando aqui?”, ele perguntava.
O Felipão, depois disso, me bancou e eu joguei no time principal. E segui no Cruzeiro até 2001, quando teve a decisão da Copa dos Campeões contra o Paysandu. No primeiro jogo, nós vencemos. Na segunda partida, fomos derrotados. E eu fui mal naquela ocasião.
Algum tempo depois, me emprestaram para o América, de São José do Rio Preto. Com apenas 19 anos, eu sabia que precisava de experiência. Mas eu tive de ouvir muita gente, inclusive amigos meus, dizer que eu ia ficar rodando em clube pequeno e não ia dar em nada.
Eu tinha saído do Cruzeiro, um dos principais clubes do país, para o América, no interior de São Paulo.
Foi um momento bastante difícil, sim, mas nem por um instante eu pensei em desistir. Eu sabia o que tinha de fazer: primeiro, me recuperar emocionalmente. Depois, retomar minha carreira.
Foi nessa época que o Botafogo passa a fazer parte da minha história. Dessa minha primeira passagem, eu me recordo de alguns momentos marcantes. Em 2004, houve uma partida decisiva. Pelo Brasileirão, disputávamos a nossa permanência na Série A. E também queríamos que a despedida do Valdo não fosse marcada por essa derrota. Foi um jogo tão difícil que minha mãe não conseguiu acompanhar a partida: a todo momento, o narrador dizia que estávamos sendo rebaixados.
Com muita fé, na base da raça mesmo, arrancamos o empate com o Athletico dentro da Arena da Baixada, mantivemos o time na primeira divisão e garantimos ao Valdo o seu merecido desfecho da carreira.
Essa minha primeira experiência no Botafogo não foi tão marcante porque fiquei pouco tempo no clube. Em 2005, apesar de estar jogando bem, tive uma oportunidade para atuar fora do país. Fui jogar no futebol turco. Para quem tinha saído do interior de São Paulo, o futebol internacional era outro mundo.
Tinha 22 anos quando saí do Brasil. Ainda era muito jovem para poder aproveitar o que a experiência no exterior poderia me proporcionar como atleta.
Não, eu não me arrependo de ter ido, mas sinto, olhando para trás, que o melhor estava por vir. E foi o que aconteceu em seguida: aos 26 anos, eu retornei para o Botafogo.
Só quem conhece o dia a dia da torcida botafoguense sabe o que é ser assombrado por um tabu contra o rival. No caso, eu vivi isso intensamente. Quando voltei, em 2009, pude ajudar o Botafogo e nós ficamos na elite do Brasileiro. No ano seguinte, era a vez de alcançar outros objetivos.
Então, chegamos à final do Campeonato Carioca de 2010. E, mais uma vez, o Botafogo enfrentaria o Flamengo, que, nos anos anteriores, havia derrotado o nosso time. No comando do ataque do nosso rival, ninguém menos que Adriano.
Com todo esse clima, a minha primeira decisão de campeonato jogando pelo Botafogo não poderia ser mais dramática.
Nossos torcedores também sentiam isso. Muitos chegavam até nós e diziam que não poderíamos perder aquela final. Não para o Flamengo. “Se for para ser derrotado de novo, era melhor nem ter chegado à final”, eles falavam.
Quatro vices seguidos diante do mesmo adversário seria impossível de engolir. Nós, jogadores, também tínhamos consciência de que isso era inaceitável.
E lá fomos nós para a decisão. Acho que todo mundo se recorda dessa história, mas vou contar aqui duas passagens importantes para quem viveu aquele dia. O jogo tava empatado no segundo tempo. Aos 27 minutos, pênalti para o Botafogo. Loco Abreu vai para a cobrança. Cavadinha no meio do gol. 2 a 1 pra nós.
Aos 32 minutos, o juiz marca pênalti para o Flamengo. Era a chance do empate. O Maracanã estava lotado e, se eu fechar os olhos agora, consigo reviver a atmosfera daquele momento. Todas as atenções estão voltadas para o Adriano, que pega a bola pra fazer a cobrança. Eu olho para o alto e respiro fundo. Ele parte para bater o pênalti. Eu ainda não me mexi. Ele bate rasteiro, seco, de canhota para o lado esquerdo. Eu acerto o canto e espalmo a bola pra escanteio. Me levanto com os braços erguidos para o céu. Os meus companheiros correm para me abraçar e eu sinto o calor da torcida.
Esse momento ficará para sempre marcado na minha memória. Assim como o carinho do torcedor botafoguense, que até hoje me para na rua, no aeroporto, em qualquer lugar, para me agradecer. Eu ainda consigo ouvir os gritos da arquibancada.
“Jefferson, Jefferson, Jefferson.”
O que o torcedor do Botafogo faz pelos jogadores não tem comparação.
Assim que retornei ao Brasil, eu tracei um objetivo claro: ser goleiro da Seleção Brasileira.
Em 2010, depois da Copa do Mundo disputada na África do Sul, tinha uma reformulação acontecendo. E o Mano Menezes me convocou.
Pouco mais de dez anos depois de ter começado como profissional, eu tinha conseguido. Estava na Seleção Brasileira. Quantos jogadores não dariam os títulos, os gols e as defesas que os consagraram por uma oportunidade como essa?
Na Seleção, eu descobri rapidamente que, mais difícil que chegar ao topo, é se manter lá. Por isso, continuei trabalhando firme. E continuei sendo convocado: amistosos, Copa América, Copa das Confederações e Supercopa das Américas.
Da minha passagem pela Seleção, eu me lembro de todos os momentos. E mesmo que eu quisesse esquecer, meus amigos e a torcida brasileira jamais deixariam de lembrar um lance histórico.
Foi num clássico contra a Argentina. Disputa de bola dentro da área, o Di María cai no gramado e o juiz apita: pênalti. Vários jogadores – Neymar, Miranda, Filipe Luís, Luiz Gustavo e Oscar – foram contestar a marcação com o árbitro. Eu também ia, mas fui impedido pelo David Luiz. Me recordo das palavras que ele disse naquele momento: “Vai lá e se concentra que você vai pegar o pênalti. Deixa que a gente fala com o juiz aqui”.
Então, na hora eu fiquei no gol, me concentrando. E a única coisa que me veio à cabeça foi o último pênalti que o Messi tinha batido, na Copa do Mundo. Eu sabia qual era o canto forte dele e pensei: Vou esperar o máximo possível para ele cobrar nesse canto. E assim foi. Messi bateu no meu lado direito. Eu voei para a bola e tive a felicidade de defender.
Já vi o replay desse lance muitas e muitas vezes. Tenho até um quadro em casa pra poder relembrar para sempre. E, até mesmo no aniversário do Messi, vi algumas postagens dessa cobrança, brincando.
Foi, sem dúvida, um momento muito especial da minha carreira.
Nessa mesma época, vínhamos melhorando nossas colocações ano após ano no Brasileirão. E o grande objetivo era classificar o Botafogo para uma competição continental. Em 2012, nós batemos na trave, mas nós realmente conseguimos no ano seguinte. Para 2014, nossa expectativa era muito boa, mas aquele foi um ano muito difícil. Alguns atletas foram afastados, e o Botafogo terminou a temporada rebaixado.
Pessoalmente, aquele continuou sendo um ano especial. Eu consegui me destacar como o melhor goleiro da competição. Foi então que as propostas vieram.
Posso ouvir a pergunta: “Por que você decidiu ficar para disputar a Série B, Jefferson?”
Confesso que não foi fácil tomar essa decisão, mas eu não me arrependo.
Eu pensei de forma muito prática: “Se eu ficar no Botafogo, vou pegar a Série B em 2015 e não sei se vou continuar sendo convocado para a Seleção”. Só que, mesmo levando isso em consideração, eu escolhi ficar. E digo que faria tudo de novo!
A recompensa viria algum tempo depois.
Foram quase dez anos de clube, 459 partidas, 19 pênaltis defendidos. Até o momento, sou o terceiro jogador que mais teve a honra de vestir a camisa do Botafogo. Tem noção disso, cara? Eu estou na mesma galeria de Nilton Santos e Garrincha. A prateleira mais seleta de um gigante do futebol brasileiro…
Esse é um orgulho que não tem explicação. Cada jogo, cada gota de suor que eu derramava pelo clube tinha muito valor, mas, a certa altura, me toquei que era hora de parar.
A partida de despedida foi emocionante. Minha mãe estava lá, sentada na arquibancada, e eu pude perceber a gratidão que o torcedor do Botafogo sente por mim. Isso não tem preço.
Ainda hoje, apesar de não ser mais atleta profissional, sinto o mesmo carinho da torcida, resumido exatamente nessa palavra: “gratidão”.
Gratidão pelas defesas que fiz pelo Botafogo. Gratidão por não ter abandonado o clube em 2014, na hora mais difícil.
Sim, eu reconheço que tudo isso é muito importante, mas, na verdade, sou eu que tenho de agradecer.
Fui abençoado por ter vestido a camisa do Botafogo.
Fui abençoado porque, graças a Deus e ao Glorioso, cheguei à Seleção Brasileira.
Fui abençoado porque este clube me proporcionou meios para que eu ajudasse a minha família.
É claro que eu não ia abandonar o Botafogo. O amor verdadeiro não tem divisão. Afinal, a torcida sabe bem, “ninguém cala esse nosso amor”…
Hoje eu sou ex-atleta e, apesar de ser mais um torcedor apaixonado, procuro me controlar e não fico falando mal dos jogadores na imprensa.
Sim, eu tenho a cabeça de torcedor, mas, ao mesmo tempo, sei que as coisas não são fáceis ali dentro.
Ainda assim, acredito que os jovens que estão subindo das categorias de base precisam valorizar o clube e não fazer do Botafogo um mero trampolim para as suas carreiras.
Tem que criar história ali dentro. No final, eu posso garantir uma coisa:
Vale a pena! E como vale.
No Botafogo, eu aprendi muito não apenas como atleta profissional, mas como ser humano.
Foi o clube que sempre me respeitou, apesar dos conflitos que tive com algumas pessoas. Ali dentro, eu fui valorizado. Entrei desconhecido e saí realizado.
“Tem coisas que só acontecem com o Botafogo.”
Pensando bem, acho mesmo que essa frase faz todo o sentido para mim. Mas de um jeito diferente. De um jeito que só quem carrega a Estrela Solitária no peito consegue entender.