Esse Mar Que Eu Chamo de Casa
Saquarema significa muito pra mim.
Na real, aqui eu me sinto em casa. É como se esse mar agitado fosse o meu quarto: todo mundo acha bagunçado, mas eu acho organizado, porque é a minha bagunça, é onde eu me divirto, me encontro e me conecto com as coisas que importam.
Esse mar me traz uma lembrança muito boa, talvez a primeira que eu tenho: meu pai me colocando sobre uma boia pra surfar as ondinhas bem pequenas até a areia. Ele é o grande responsável por tudo o que eu tô vivendo. Cara sereno e tranquilo, nunca me impôs nada, nunca me pressionou, nunca cobrou. Me entendeu. Sempre percebeu pelo que meu coração bate mais forte.
O Chumbão também é apaixonado por Saquarema. Surfista dos bons. Surfista de alma mesmo, como a gente diz, de cair na água todo dia. Minha mãe é outra que sempre nos incentivou no esporte, chegou até a praticar bodyboarding e tal.
Surfar era a coisa que eu mais amava fazer. E meu pai comprou a ideia junto comigo, nunca desacreditou desse sonho.
- João Chumbinho
A gente morava no Rio, vida normal de trabalho, escola. Mas aos 10 anos, quando realmente descobri que amava o surfe, que não queria só praticar com hora marcada, dependendo de alguém que me levasse e buscasse na praia, que gostaria de surfar em Saquarema, porque as ondas são melhores, meu pai, com aquela calma dele, disse: “Tá bom, a gente pode tentar isso”. Eu era uma criança. Estudava em escola particular no Rio, rotina de criança, mundo de criança. Não fazia ideia sobre o futuro, sobre o caminho que o surfe poderia ou não me ajudar a trilhar.
Não tinha planos, cobrança, obrigações. Eu só queria… surfar. Era a coisa que eu mais amava fazer. E meu pai comprou a ideia junto comigo, nunca desacreditou desse sonho.
Então eu vim pra Saquarema morar com meus avós. Vim primeiro sozinho. Meu pai, minha mãe e meu irmão permaneceram no Rio. E foi tudo o que eu imaginava. Passei a ter mais autonomia pra poder surfar todos os dias. Ia pra escola de manhã e à tarde era praia. Sempre por minha conta, pra cima e pra baixo de bicicleta. A cidade é menor, mais tranquila, me permitia isso. Fiquei um ano e voltei pro Rio.
Aí eu comecei a competir e o meu irmão Lucas, que é cinco anos mais velho e já competia, virou um grande parceiro, me mostrando um pouco do caminho do surfe profissional. E do surfe amador também.
Teve uma vez, eu tinha 11 anos, a família toda decidiu ir pro Havaí. Mas eu e o Lucas fomos uns quinze dias antes, sem os nossos pais. Meu treinador na época, o Raoni, ficaria responsável por nós lá. Naquela época, o Lucas já tinha vontade de surfar ondas gigantes, com o mar bem storm. Tanto que depois ele acabou seguindo por aí. Ele já tinha surfado Waimea algumas vezes, mas pra mim, um menino de 11 anos, ainda era inviável. Prancha grande, colete, fundo de coral… Inviável.
Meus dias em Waimea eram dias off: o Lucas se divertindo lá dentro e eu brincando na areia. Mas aí teve uma manhã que ele me levou escondido do Raoni. Me botou o colete, me deu a prancha grande, passou umas dicas e caímos. Tomei onda na cabeça pra caramba. E depois todo mundo ficou sabendo que meu irmão me “sequestrou” novinho pra me apresentar Waimea… Hahaha! Mais um momento inesquecível entre tantos que o surfe já me proporcionou.
Se eu ainda tivesse alguma dúvida do que queria fazer pro resto da vida, essa dúvida desapareceu naquela manhã em Waimea.
Lá pelos 13, 14 anos eu voltei de vez para Saquarema. Não dava mais pra ficar longe de “casa”. O surfe tinha deixado de ser uma atividade a mais na minha vida. Ele tinha se tornado a minha razão de viver.
As coisas seguiram naturalmente, então. Fui progredindo, aperfeiçoando a técnica, entendendo melhor o mar, conquistando títulos júnior e gostando cada vez mais de competir. Me dei conta de que eu curtia demais a adrenalina de passar a semana pensando na competição do sábado e domingo.
A montanha-russa de emoções do surfe profissional é tão maluca que às vezes faz quatro anos parecerem quatro décadas.
- João Chumbinho
Depois de uns títulos estaduais, chegou uma hora que meu pai sacou mais uma coisa importante. Se o surfe significava tanto pra mim, não fazia sentido a gente gastar a nossa energia, que era muita, e o nosso orçamento, que era pouco, em competições regionais. Eu tinha que focar no circuito mundial.
Não era arrogância nem ganância, que isso ele nunca teve. Era pra eu aprender mais e assim poder viver de uma maneira mais intensa o que me fazia feliz. No circuito mundial eu aprenderia a lidar com persistência, frustração, dor, euforia, trabalho duro, quedas e voltas por cima. Meu pai falava assim: “João, pode demorar e pode dar em nada. Mas a gente tem que tentar”.
E aí as coisas ficaram mais sérias. O circuito mundial virou o nosso foco. Qualquer coisa que pudesse me desviar a atenção, meu pai já falava: “Esquece isso, João! Esquece mídia, esquece visualização. Não é a hora disso. A hora é de focar em passar bateria, pontuar e construir o ranking pra você entrar no CT”. Ele tava certo.
Nossa, como demorou pra eu passar bateria! Demorou à beça. Eu sempre passava uma bateria, mas não passava a segunda. Me lembro de perder infinitamente mais vezes do que ganhar. Mas eles, meu pai, minha mãe e o Lucas, jamais demostraram um pingo de desânimo. Pelo contrário. A fé deles de que ia dar certo me impulsionava mais e mais.
Às vezes eu lembro que faz só quatro anos que eu comecei essa aventura. Pouco tempo. Mas a montanha-russa de emoções do surfe profissional é tão maluca que às vezes faz parecer quatro décadas.
Você pode estar num momento muito ruim ou num momento muito bom, você pode ter diversos resultados ruins e bem poucos momentos em que você sente que a coisa tá dando certo, e é aí que o amor entra. É aí que você vai lembrar que tu tá ali porque escolheu isso. Então descobre que o principal é você ser feliz, você amar o surfe com todo o seu coração.
Por mais que eu tenha a minha família sempre me amparando, não foi fácil lidar com meu corte no ano passado. Tive que botar a cabeça no lugar e entender que o corte não ia me definir, não ia me tirar o sonho de ser campeão mundial. Um corte é um corte. Ele pode até acabar com o meu ano, como acabou, mas não vai acabar com o meu futuro. Isso eu não ia permitir.
Então eu fiz o que sei fazer: subi na prancha e tentei de novo.
Cheguei a Saquarema como um mero “convidado”. Num primeiro momento, me senti realizado, porque Saquarema sempre foi uma etapa que eu assisti da areia. Então, surfar pela primeira vez com os melhores do mundo no meu quintal e abrir a porta de casa pra eles, foi emocionante.
Só que eu não fazia parte dos melhores do mundo, sabe? Eu não era um deles.
Como tinha sido cortado, eu estava no meio do Challenger Series lutando pela minha reclassificação para o CT. Por isso a sensação não foi de uma volta pra casa plena como todas as outras. Sendo bem honesto, isso causava um certo incômodo em mim.
De qualquer forma, eu consegui me recuperar, terminei o ano reclassificado no circuito, com a sensação de dever cumprido. Veio 2023 e eu me surpreendi descobrindo uma outra casa pra chamar de minha: Portugal. O mar do Peniche lembra muito o de Saquarema. E naqueles dias de março ele estava tubular, difícil, agitado, do jeito que eu gosto.
Lembro de ter uma primeira bateria bem complicada. Sofri uma queda, mas me reergui logo em seguida. No round 3 eu ganhei do Kelly Slater!
Caraca, ganhei do Kelly! O número 1 do esporte…, eu pensava, meio que sem acreditar.
Dá pra imaginar? Surfar ao lado, competir e vencer meu ídolo de infância? Foi justamente nesse momento que eu atingi a pontuação necessária para passar do corte. Depois de um negócio desse não tem como a confiança não aumentar. Aí vieram Ethan Ewing, Connor O’Leary, Callum Robson… e pá! Ganhei a etapa! É um sentimento muito especial perceber que todo esforço valeu a pena.
Estar em Saquarema, desta vez entre os três melhores surfistas do mundo, me faz lembrar de tudo que vivi para chegar até aqui.
- João Chumbinho
Quando eu vesti a lycra amarela pra subir no pódio, fiz um pedido. Desejei manter meu contato com as emoções boas pra poder continuar fazendo o que tenho feito, do jeito que eu faço, tranquilo como na boia sobre as ondinhas de Saquarema vinte anos atrás. Eu nunca surfei tão inteiro como nesta temporada, tão à vontade com meus planos e minhas metas. Então eu pedi pra continuar assim, buscando melhorar a cada dia dentro da água.
É só nisso que eu penso agora.
Um ano depois, eu volto a competir em Saquarema na parte alta da montanha-russa do surfe profissional, desta vez entre os três melhores surfistas do mundo. Estar em casa novamente me faz lembrar de quem eu sou, do que vivi para chegar até aqui e para aonde eu quero ir.
Tudo o que eu quero nessa etapa é correr bateria por bateria, uma de cada vez, com a cabeça calma, o coração quente e… pé na tábua!
Que ainda tem muita água pra rolar.
– João Vitor “Chumbinho” Chianca