Versos do Vôlei
Tive um sonho esquisito esta noite. Sonhei que eu entrava no vestiário depois da final do vôlei masculino e a rapaziada não se mexia. Todo mundo parado como num filme em que a gente dá um pause.
Pulei da cama, abri as cortinas e fiquei aliviado.
Ufa!
Paris está mais linda do que nunca. Faz sol, as ruas estão cheias e a Vila Olímpica, animada, coloridaça. Amanhã vai rolar a cerimônia de abertura. No dia seguinte a gente estreia!
Tentei escrever um poeminha sobre o sonho, mas não rolou. Desde criança os versos só saem quando eu estou calmo, o oposto da ansiedade que sinto agora. Além do mais, percebi que se tratava mais de uma memória que de um sonho. Talvez as duas coisas misturadas. De todo modo, escrever me tranquiliza. Então vou deixar a poesia pra depois e mandar em prosa mesmo.
Acho que meu sonho-memória tem a ver com Londres 2012. Só sete anos antes, o vôlei pra mim era um bate-bola na pracinha perto de casa, em Contagem, Minas Gerais, onde nasci. Um ano antes, aos 19, eu tinha me tornado o jogador mais jovem a defender a seleção adulta. E aos 20 eu estava ali, na minha primeira Olimpíada.
Eu não era um dos 12 que jogavam. Dava suporte nos treinamentos, aprendia, me integrava e assistia às partidas na arquibancada do ginásio. Foi nessa condição, terminada a decisão contra a Rússia, que nós perdemos numa virada inacreditável, eu entrei no vestiário e, vendo a galera abatida, senti dois calafrios que nunca mais me abandonariam: o da tristeza paralisante de ver o ouro tão perto e depois vê-lo escapar e o da gana de participar de uma Olimpíada na quadra, não na arquibancada.
Aqui estamos. Doze anos separam Londres e Paris. Entre uma e outra, um Canal da Mancha inteiro passou por baixo da ponte, diria um poeta mais ou menos. Teve a conquista maravilhosa no Rio 2016, a construção da minha carreira no voleibol italiano, a minha consolidação na seleção brasileira (agora, aos 32, sou um dos mais experientes do grupo) e a partida do meu pai, uma perda tremenda que me dói todos os dias.
Paris 2024 vai ser pra você, pai. Porque eu sei que você continua olhando por mim e é por sua causa que eu vim parar aqui.
Não estou exagerando. Num momento-chave da minha vida, foi o meu pai, que conhecia tão bem a minha insegurança adolescente, a minha timidez, mas também o meu amor pelo vôlei e o meu potencial, foi ele quem deu o empurrão definitivo para alinhar a minha passada no esporte.
Comecei a jogar vôlei quando fui ver um treino da minha irmã, dei um saque só por brincadeira e deixei todo mundo boquiaberto. Não é comum um menino de dez anos fazer aquilo. Um saque exige força e boa coordenação dos movimentos. Acertei na primeira vez que peguei uma bola de vôlei e achei demais. Acertei a segunda vez pra confirmar que não tinha sido sorte. E depois a terceira, a quarta…
Antes, eu já tinha praticado de tudo. Natação, handebol, xadrez, futebol. Lembro que a Copa de 1998 me deixou maluco. Ronaldo, Rivaldo, Taffarel, o país mobilizado… Decidi ser jogador de futebol. Fui fazer escolinha e até que levava jeito. Mas depois daquele primeiro saque, já era. O bichinho do vôlei tinha me picado pra sempre.
Comecei a jogar com uma galera na pracinha perto de casa. Um dia uns professores de uma academia chamada Meritus, que tinha um time de vôlei, apareceram lá e me chamaram pra treinar com eles. De primeira eu não topei, porque na pracinha os times eram mistos e as meninas deixavam as tardes bem mais interessantes. E tinha meu lado meio tímido também. Nós, os introvertidos, custamos um pouco a nos sentir à vontade num lugar, numa atividade, num grupo e, quando acontece, a ideia de mudar, sair da tal zona de conforto, é um troço complicado. Por isso, dois meses depois do convite, eu só enrolando, meu pai me deu um ultimato:
— A coisa que você mais faz na vida é jogar vôlei. Se dedica, joga bem. Qual o problema de partir pra algo mais sério, treinar de verdade, disputar campeonatos? Ou você entra no time que te chamou, ou acho mais negócio você garrar nos estudos do que ficar só brincando de vôlei.
Foi o primeiro de três chacoalhões importantes que meu pai me deu. Fui treinar no Meritus e logo virei titular em duas categorias, a minha e uma acima. Eu era do mirim e do infantil, mas desenrolava bem com os garotos mais velhos do time juvenil também. Estava evoluindo rápido.
Campeonato vai, campeonato vem, o Minas me chama pra fazer um teste, em 2007. Pô, era onde todo mundo queria jogar. O Minas! Gigante do vôlei nacional. Eu estava com 15 anos e adivinha só: recusei. No Meritus eu tinha meus amigos, estava enturmado e achava que devia aprender mais antes de dar um salto desse tamanho. Meu pai sacou tudo e interveio mais uma vez:
— É uma baita oportunidade. Você vai deixar passar?
Com 15 anos eu fui pro Minas, trocado por 35 bolas. Sério!
É que, pra me liberar, meu técnico no Meritus pediu 200 bolas. O pessoal do Minas achou um absurdo e barganhou. As partes acabaram fechando negócio em 35 bolas, 20 novas e 15 usadas. Esse foi o valor do meu “passe” hahah…
A partir daí, tudo aconteceu tão rápido que eu mal me dei conta. Quanto mais eu treinava, mais eu evoluía e mais eu me sentia seguro, solto, confiante. Mais eu me sentia parte de algo muito maior do que eu. Aos poucos, o vôlei ia enterrando a minha minha timidez.
Eu quero ganhar o meu segundo ouro olímpico sendo o Lucarelli de Contagem, filho do Seu Sérgio técnico em eletrônica e da Dona Rosa costureira.
- Lucarelli
Comecei no Minas em 2008 e no mesmo ano fui chamado pra participar de uma seletiva da seleção brasileira infanto. Jogadores do país todo, nível altíssimo e no fim da semana vinham as dispensas. Eu morria de medo de ser cortado. É uma pressão terrível. Mas descobri que esse medo me fazia saltar mais alto, bater mais forte na bola, defender e passar melhor…
Essa era a minha impressão, né?
No último dia de mandar gente embora, sobraram eu e outro ponteiro. O treinador chamou os dois e mandou essa: “Vocês estão treinando tão mal que eu não sei quem eu vou cortar”. Até hoje desconheço o motivo que me fez ficar. Minha mãe tem certeza que foi intervenção divina. Pode ser mesmo. A oportunidade pintou e agora eu agarrei sem hesitar. Metade da minha vida eu já passei na seleção.
Naquele início, eu ainda estudava e a correria era intensa. No Minas, eu também treinava em duas categorias, mas dava tempo — meio apertado, mas dava — de ir pro colégio de manhã e pro clube à tarde. Em 2011, contudo, quando subi pro time adulto, aí o bicho pegou. O dia ficou curto pra tudo o que eu precisava fazer.
Muitas vezes era impossível voltar pra casa depois do treino, então eu dormia num sofazinho que tinha no vestiário do Minas. Dormi por um tempão e escrevi vários poemas ali. Foi um colega do time adulto que viu e pediu pra diretoria dar um jeito na situação. Aí me colocaram pra morar numa república com outros jogadores. No ano seguinte nós alugamos um apartamentinho e nunca mais, desde os 18 anos, eu morei com meus pais.
Ao mesmo tempo, foi uma época em que ficamos ainda mais juntos. Meu pai, minha mãe e minha irmã passaram a ir a todos os jogos. Eles se tornaram até famosos nos ginásios, porque estavam sempre presentes, torcendo por mim, pelo meu time, vestiam camisas com meu nome, e era pra perto deles que eu corria quando as partidas terminavam, pra gente se abraçar. Um ritual familiar que me dava muita força.
Nesses abraços eu entendi por que meus pais me deram o nome de um pintor italiano. Muita gente acha que Lucarelli é sobrenome, mas é meu segundo nome. Ricardo Lucarelli, tipo Roberto Carlos.
Quando eu nasci, foi até difícil pro meu pai conseguir um cartório que me registrasse do jeito que eles queriam. Foram vários “não pode” antes de dar certo. A história é que eles tinham visto um quadro desse pintor italiano, que se chamava Marcello Lucarelli, mas só assinava Lucarelli, e ficaram encantados. Imaginaram que com aquele nome talvez eu pudesse fazer coisas bonitas na vida. O nosso abraço no final dos jogos, pra eles, era uma espécie de confirmação, dava pra sentir. E pra mim, um momento máximo de gratidão.
Em 2011, o mesmo ano em que passei pro time adulto do Minas, o Bernardinho me chamou pra seleção principal. Ainda não era uma convocação oficial. Só um convite, pra ver como eu me saía nos treinos e em alguns amistosos. Já fazia algum tempo que a timidez era algo que não me pertencia mais. Mesmo assim, nos primeiros dias, eu me senti um peixe fora d’água.
Giba, Murilo, Gustavo, Serginho, Bruno, Dante, os caras do time eram consagradíssimos e eu não tinha intimidade com ninguém. Mas a forma de receber um novato é quase uma instituição na seleção brasileira. Algo que hoje é a minha vez de fazer. Os veteranos acolhem o calouro numa medida equilibrada entre não pressionar demais a ponto de colocar o cara pra baixo e arruinar o jogo dele, nem dar tanto mole a ponto de deixá-lo acomodado — e arruinar o jogo dele também.
Foi uma baita experiência. Se eu ainda não estava no nível dos caras, vergonha eu não passava. Treinava bem e sentia que, embora inexperiente, eu podia estar ali. Tanto que acompanhei o grupo em Londres. Não joguei, como eu disse, mas só de sentir o clima, visitar a Vila Olímpica, ver os caras da NBA, o Bolt, o Michael Phelps, o Federer, caramba, foi legal demais!
No ano seguinte, 2013, quando eu me torno titular da seleção, por um breve momento a boa e velha insegurança me faz perguntar se eu estava realmente à altura. Porque o Brasil sempre teve uma tradição de ponteiros excepcionais. Com o Giba se aposentando e o Murilo fora por causa de uma cirurgia no ombro, os donos da posição passamos a ser eu e meu ídolo, o Dante. Ele foi um dos que me acalmaram e me deram confiança pra que eu pudesse jogar o vôlei que tinha me levado até ali.
O outro foi o Bernardinho.
É, eu sei que pra quem vê de fora o cara parece bravo pra cacete. E é mesmo. Mas também é um craque em mesclar experiência com juventude nos times dele. Gosta de ensinar, de ver a galera evoluir. O Bernardo me deu muito espaço pra errar no meu início na seleção. Foi paciente comigo. De modo que eu sempre joguei tranquilo com ele gritando do lado de fora da quadra.
No começo, eu tinha medo de levar esporro. Mas logo entendi: os esporros do Bernardo não são contra você, são em favor do time. Às vezes, são esporros nele mesmo. E, já que eles são inevitáveis, virão de qualquer jeito, o negócio é concentrar pro ponto seguinte.
Meus pontos seguintes, a partir dali, seriam bons desempenhos em ligas e campeonatos mundiais e sul-americanos. Fui eleito o melhor ponteiro em algumas dessas competições, mas acho esquisito chamar esses prêmios de “individuais”. Somos sempre seis na quadra. Se um não recebe o saque adversário direito, se o líbero não faz a bola subir, se o levantador só manda jaca pra mim, como é que eu posso ser o melhor ponteiro? De toda forma, me orgulho de cada um desses prêmios, principalmente o de melhor ponteiro da Olimpíada de 2016, no Rio.
Que campanha, senhoras e senhores. Que campanha!
Já os Jogos de Tóquio foram os mais estranhos que eu participei. Os mais emotivos também. Por causa das restrições da Covid, nem parecia Olimpíada. Parecia um campeonato qualquer. Sem a interação com os atletas de outras modalidades e de outros países, que é uma das partes mais legais dos Jogos, sem passeios, o tempo todo no quarto, ginásios praticamente vazios… de dentro da quadra a gente conseguia ouvir as pessoas conversando. Pra piorar, fomos eliminados na semifinal e ainda perdemos o bronze pra Argentina. Juntando tudo, acho que é uma das piores memórias que eu guardo do vôlei.
No ano anterior eu tinha ido jogar na Itália. Mais uma vez, enquanto eu hesitava, meu pai deu o empurrão pra eu aceitar o convite do Trentino:
— Esses caras não dão ponto sem nó. Se estão te querendo lá, no vôlei mais forte do mundo, é porque já te assistiram bastante e acreditam em você. Faz as malas, Luca, e manda ver. Em breve eu vou lá te assistir.
É assim que eu chego em Paris. Me sinto confiante, amparado e com vontade de honrar a memória do meu pai.
- Lucarelli
Mas não deu tempo. Um mês depois de eu chegar na Itália, o coração do meu pai parou de repente. Era o auge da pandemia e eu não consegui voltar pro Brasil a tempo de me despedir dele. Foi o período mais duro da minha vida.
Nem imaginava que era possível sentir tanta tristeza. Eu tinha me lesionado e não podia nem treinar. Sozinho, machucado, longe da minha mãe, da minha irmã, dos meus amigos, isolado num lugar que eu mal conhecia, vocês podem imaginar como ficou a minha cabeça. Não tinha poesia que desse jeito. Meu pai queria muito me ver jogando na Itália. Tinha virado o novo grande sonho dele. E quanto mais eu pensava que não o abraçaria depois dos jogos, mais eu afundava.
Só não afundei completamente porque um companheiro de time, o sérvio Lisinac, que morava no andar de baixo, foi parceiraço. Ele passava todo dia pra ver como eu estava, se precisava de alguma coisa, me ouvia e dava uma força. Graças ao Lisinac, a outros colegas que me apoiaram e à fé inabalável da minha mãe, eu encontrei uma brecha pra me levantar. Meu pai estaria sim nos ginásios da vida, vestindo uma camiseta com meu nome, torcendo por mim e esperando o nosso abraço, para sempre.
É assim que eu chego em Paris 2024. Me sinto confiante, amparado e com vontade de honrar a memória do meu pai. E a melhor maneira que eu posso fazer isso é sendo eu mesmo, inspirado pelo Serginho, o maior líbero da história do vôlei e agora assistente técnico na seleção.
Como ele em 2016, eu sou um dos mais experientes do grupo. Como ele, eu quero poder ajudar na caminhada do time, ser um ponto de apoio pros mais novos que estão chegando e ser um exemplo pro povo preto do nosso país. O Serginho foi o melhor de todos os tempos, ganhou dois ouros olímpicos e nunca deixou de ser o Serginho de Pirituba. É ele a minha inspiração. Eu quero ganhar o meu segundo ouro olímpico sendo o Lucarelli de Contagem, filho do Seu Sérgio técnico em eletrônica e da Dona Rosa costureira.
E agora que, depois de sonhos intranquilos, eu abri as cortinas e a luz de Paris me esquentou o corpo e alma, vambora! Bora que a história de mais uma Olimpíada está lá fora esperando pra ser escrita.