Monumental
Bah, que saudade do Olímpico.
A gurizada de hoje está acostumada com as arenas do Brasil e sonha em conhecer os estádios da Europa que assistem pela televisão e onde jogam pelo videogame.
Eu entendo perfeitamente. São maiores, mais modernas, imponentes e fazem parte do processo natural de evolução.
Seguir em frente e não se apegar muito ao passado é, na maioria das vezes, o melhor caminho. Na vida e no futebol.
Mas o Olímpico era diferente.
Uma barbaridade.
A atmosfera, espetacular.
E somos da mesma geração, tu sabias?
Não vou dizer que vi o Monumental nascer, porque eu era guri, com cinco anos, e ainda morava em Passo Fundo quando aconteceu a inauguração, em setembro de 1954.
Mas eu acompanhei, de perto e de longe, a maior parte da sua existência. E que história!
Por isso, mesmo que ele tenha deixado de ser o coração da Azenha, ele continuará imortal dentro de mim.
O Olímpico me projetou para o mundo.
Não fosse ele, eu não pisaria no Parque Antártica. Tampouco no Estádio da Luz. Nem no Stamford Bridge. Muito menos no estádio de Yokohama.
E como eu sonhei conhecer o Olímpico!
Só que demorou, viu?
A televisão não fazia parte da realidade do interior gaúcho durante a minha infância. Eu ouvi pelo rádio, com a família e os amigos, as Copas do Mundo de 1958 e 1962.
Era com o ouvido colado no aparelho que eu fazia o mesmo para acompanhar os jogos do Grêmio. Eu torci muito. Vibrei demais. Passava horas seguindo os debates sobre a dupla Gre-Nal. Vivi os anos 60 intensamente como gremista, imaginando se chegaria o dia tão esperado de entrar no templo sagrado.
E sabes de uma coisa?
A primeira vez é, de fato, inesquecível.
Quartas de final da Taça Brasil de 1965.
Grêmio x Palmeiras.
Eu subi as escadas que davam acesso ao ponto mais alto da geral e...
MEU DEUS!!!
Arrepia só de lembrar a minha estreia como torcedor em casa.
Até então eu a conhecia apenas por fotos nos jornais e ouvia o ambiente das partidas pelo rádio. Eu desenhava as jogadas na imaginação fértil de garoto e pintava os gols de azul, preto e branco.
Imaginar o Olímpico era maravilhoso. Sentir o Olímpico foi emocionante.
E a batalha que o Tricolor tinha pela frente estava longe de ser fácil. Muito pelo contrário.
O Palmeiras, com a talentosíssima Academia de Futebol de Dudu e Ademir da Guia, havia vencido o duelo de ida em São Paulo por 4 a 1. Parecia impossível reverter o resultado em Porto Alegre.
Do jeito que só o Grêmio sabe fazer, pelear mesmo quando ninguém acredita, recebi o cartão de boas-vindas no Olímpico:
Prazer, eu sou o Imortal Tricolor.
Eu valorizo cada instante da minha carreira. E naquele dia, em Caxias, o Grêmio finalmente cruzou o meu caminho.
- Felipão
O nosso ponta-esquerda Volmir Massaroca roubou a cena. Ele deu tantos dribles no Djalma Santos – nome de craque que eu tanto escutei pelo rádio em jogos de seleção – que eu sempre vou me lembrar daquele 27 de outubro de 1965. A realização do grande desejo do guri de Passo Fundo.
E o Volmir não parou nas fintas sobre os palmeirenses. Ele fez um dos gols, o Alcindo deixou o dele duas vezes, e o Joãozinho fechou o 5 a 1. O estádio enlouqueceu!
Mesmo que o Palmeiras tenha se classificado depois de vencer o jogo de desempate, o meu encontro com o Olímpico foi amor à primeira vista.
Posso tentar adivinhar o que tu estás pensando?
“Será que o Felipão já queria ser jogador do Grêmio?
E treinador?
De repente comandar o Tricolor ali da casamata, esbravejando com todo mundo...?”
Olha, eu joguei futebol amador na minha adolescência, no São Cristóvão, e eu estaria mentindo se dissesse que vestir as cores do Grêmio não passou pela minha cabeça.
Porém, a minha educação foi muito rígida. Meu pai nunca abraçou a ideia do futebol. A prioridade dele era outra. Os estudos eram a exigência número 1, e ele esperava que no futuro eu assumisse os negócios da família.
Com os irmãos, ele tinha um posto de gasolina, e eu até ajudei a transportar combustível para o interior do estado.
Na época ele permitiu que eu disputasse campeonatos de várzea aos finais de semana. Todo sábado e domingo eu batia a minha bolinha. Nos outros dias eu tinha de trabalhar e me dedicar ao curso de contabilidade.
Eu seguia as ordens do meu pai e, paralelamente, alimentava a ambição de conquistar um espaço no esporte.
Até ser indicado ao Aimoré, de São Leopoldo, ao qual sou grato por ter aberto as portas para eu iniciar o meu sonho profissional. Aos 20 anos, já era capitão.
Pouco se fala sobre isso, mas eu fui um bom zagueiro, viu?
Acabei não jogando pelo Grêmio, mas, mesmo assim, o clube me serviu de inspiração.
Quando o futebol passa a ser a tua carreira, tu consegues deixar o sentimento de lado. Mas enfrentar o teu time do coração te motivas de uma forma diferente, não vou negar.
Vencer o time pelo qual tu chegaste a torcer é ainda melhor, porque a entrega em campo é maior. Tu queres mostrar que tens qualidade para usar a vestimenta que sempre admirou.
Em função disso, a minha principal lembrança contra o Grêmio, ainda como jogador, é com o grená do Caxias.
No entanto, nem sempre as coisas saem como planejado.
Jogo em casa, aquela motivação pelo tamanho do confronto para nós, a equipe da minha infância do outro lado.
Bah, que lambança.
Tentei recuar a bola para o nosso goleiro, o passe deu errado, levamos um gol, e a partida acabou 3 a 0 para o Grêmio. Aquilo me marcou.
Foi em Caxias também que eu recebi, anos depois, o convite profissional que reacendeu a chama dos laços afetivos que aprendi desde o berço no interior.
E te digo que a proposta aconteceu quando eu menos esperava e de uma forma bastante inusitada.
Era 1987.
Já com a carreira de técnico em andamento, eu estava no comando do Juventude no Campeonato Gaúcho. Por alguma razão, não pudemos mandar o jogo no Alfredo Jaconi, então lá fomos nós para o Centenário, campo do Caxias.
O adversário? O Grêmio.
Tu lembras daquilo que eu falei acima? Motivação dobrada, né? Ainda mais porque era o meu segundo clube na trajetória como treinador, depois de iniciar pelo CSA.
E o empenho para chegar àquele momento foi enorme. Não é todo mundo que sabe disso, mas eu me formei em Educação Física ainda enquanto jogava profissionalmente e, depois, fui professor por mais de dez anos.
Às segundas e quintas, geralmente dias seguintes às partidas, nada de pernas para o alto e descanso. Acordava cedo para trabalhar com a gurizada na escola do estado.
Então, eu valorizo cada instante da minha carreira. Eu venho de longe. E naquele dia, em Caxias, o Grêmio finalmente cruzou o meu caminho.
Eles literalmente apareceram no meu percurso.
Vencemos a partida.
Enquanto eu atravessava o campo, um diretor do Grêmio veio até mim. Naquela ocasião, ele poderia me dizer qualquer outra coisa, mas nada me surpreenderia tanto quanto o que ele falou depois de um abraço.
“Queres assumir o Grêmio? Amanhã o cargo é teu.”
Claro que eu queria comandar o meu time de coração, mas alguns fatores tinham de ser resolvidos. Primeiro, eu precisava respeitar o técnico do Grêmio. Segundo, eu havia assinado um contrato com o Juventude.
Essa foi a minha resposta para o dirigente gremista no gramado do Centenário. Em dois dias, os clubes se entenderam. A partir daí, tudo mudou.
Eu não estava mais em Passo Fundo, comemorando o que eu ouvia pelo rádio.
Muito menos na geral, contemplando a imensidão daquele mar azul, preto e branco.
Tampouco era professor em colégios estaduais nas horas vagas de jogador.
LUIZ FELIPE SCOLARI, O NOVO TÉCNICO DO GRÊMIO.
Em pouco tempo, me vi num Gre-Nal do banco de reservas do Olímpico. Melhor ainda: uma vitória no clássico, na última rodada da fase final, levaria o Grêmio ao tricampeonato gaúcho e aquele passo-fundense ao primeiro título no comando técnico.
Com 18 minutos, o Lima já tinha marcado dois gols e o Jorge Veras outro. Explosão gremista em um belo fim de tarde ensolarado na Azenha. Levamos um susto, com dois gols do nosso rival, mas o Rio Grande continuou tricolor pelo terceiro ano seguido.
Um dia monumental, à altura da história do Olímpico.
Com a minha primeira conquista, o Grêmio havia me dado visibilidade nacional. Um pouco mais experiente e cascudo, senti que era hora de alçar novos voos, dentro e fora do Brasil.
Até que as nossas vidas se encontraram novamente, desta vez em um contexto maior, que extrapolava as fronteiras do estado.
Final da Copa do Brasil de 1991.
A grande oportunidade de mostrar para todo o país a minha alma copeira.
Nas voltas que o mundo dá, essa chance apareceu vestindo tricolor de novo, mas contra o Grêmio. No lugar do azul estava o amarelo do Criciúma.
O grupo maravilhoso do Tigre trouxe o 1 a 1 de Porto Alegre e depois garantiu o 0 a 0 em Santa Catarina, combinação suficiente para nos coroar campeões nacionais.
Foi o pontapé inicial para uma década pessoal de ouro, recheada de troféus, graças a Deus. E a maioria deles adivinhas onde? No Grêmio. No Olímpico.
Ao voltar pra casa, em 1993, eu encontrei o clube com o mesmo status que tinha deixado: campeão gaúcho. Além disso, comecei a trabalhar em um ambiente sensacional, liderado por dois grandes profissionais nas figuras do saudoso Fábio Koff e do Luiz Carlos Martins, mais conhecido como Cacalo.
Se por um lado eles não recebiam um tostão, pois ocupavam cargos considerados amadores, ambos seriam capazes de dar a vida pelo Grêmio. Dava gosto de vê-los no dia a dia, tendo o bem do clube como prioridade acima de tudo e de todos.
Por esse motivo, o senhor Fábio foi capaz até de me convencer a ir a Londrina observar um campeonato dos nossos juvenis – não eram nem sequer os juniores – para encontrar soluções para o elenco de 1994. Ele explicou que a situação financeira não era boa, então teríamos de liberar nomes mais experientes e planejar algo com os guris da base.
Nessa viagem que, confesso, eu relutei em ir no início, escolhemos atletas promissores que fizeram uma ou outra coisa com a camisa do Grêmio.
Danrlei.
Roger.
Arilson.
Carlos Miguel.
O que aconteceu na sequência, já com o time reforçado pela contratação de jogadores mais experientes, marcou a história do futebol do Rio Grande do Sul, do Brasil e da América do Sul.
Quando foi a última vez que uma equipe disputou três jogos no mesmo dia? Aquele Grêmio jogou! Às 14h, às 16h e às 18h. Ganhou dois e não perdeu nenhum. Esse é o Grêmio!
Eu poderia relatar aqui inúmeras histórias de bastidores que demonstrariam o ambiente de amizade e companheirismo que existia naquele elenco, mas faltaria espaço.
Para matar a tua curiosidade, vou te contar uma da partida de volta da final do Campeonato Brasileiro de 1996.
Segundo tempo no Olímpico, o Dinho, nosso capitão e principal líder, chega à beira do campo e me pede:
“Professor, me tira, por favor. Pelo amor de Deus! Eu não estou conseguindo fazer mais nada e nós precisamos de alguém mais avançado. Coloca o Ailton no meu lugar”.
Como existia muita confiança entre todos nós, decidi arriscar e atendi o pedido do Dinho.
Nove minutos depois, o Carlos Miguel (obrigado, Londrina!) lançou, a defesa da Portuguesa tentou afastar, no rebote o Ailton fez o 2 a 0 e colocou mais uma taça na história gremista.
Como fomos felizes no Olímpico...
Quase 20 anos depois, mais um reencontro com a torcida, outra vez por iniciativa do doutor Fábio. Os tempos do futebol já eram outros, o clube estava muito bem estruturado e eu não viajei nas férias atrás de reforços.
Mas, se precisasse, eu o faria de novo.
No Grêmio, eu me sinto em casa, não importa a época. E, no nosso lar, cuidamos dos nossos.
Carinho e amor definem essa relação que começou à distância e depois se materializou em anos dourados.
Um sentimento que está no sangue da família Scolari, presente nas novas gerações. De Portugal, um dos meus filhos adora palpitar e conversar sobre o Grêmio. Às vezes até demais. Dos meus netos, manda fotos vestidos com o fardamento tricolor.
É o lema que eu mesmo, guri, já cantei no Olímpico, né?
Com o Grêmio, onde o Grêmio estiver.