Monumental

Lucas Uebel/Getty Images
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Bah, que saudade do Olímpico.

A gurizada de hoje está acostumada com as arenas do Brasil e sonha em conhecer os estádios da Europa que assistem pela televisão e onde jogam pelo videogame.

Eu entendo perfeitamente. São maiores, mais modernas, imponentes e fazem parte do processo natural de evolução.

Seguir em frente e não se apegar muito ao passado é, na maioria das vezes, o melhor caminho. Na vida e no futebol.

Mas o Olímpico era diferente.

Uma barbaridade.

A atmosfera, espetacular.

E somos da mesma geração, tu sabias?

Não vou dizer que vi o Monumental nascer, porque eu era guri, com cinco anos, e ainda morava em Passo Fundo quando aconteceu a inauguração, em setembro de 1954.

Mas eu acompanhei, de perto e de longe, a maior parte da sua existência. E que história!

Por isso, mesmo que ele tenha deixado de ser o coração da Azenha, ele continuará imortal dentro de mim.

O Olímpico me projetou para o mundo.

Felipão The Players Tribune Scolari
Sam Robles

Não fosse ele, eu não pisaria no Parque Antártica. Tampouco no Estádio da Luz. Nem no Stamford Bridge. Muito menos no estádio de Yokohama.

E como eu sonhei conhecer o Olímpico!

Só que demorou, viu?

A televisão não fazia parte da realidade do interior gaúcho durante a minha infância. Eu ouvi pelo rádio, com a família e os amigos, as Copas do Mundo de 1958 e 1962.

Era com o ouvido colado no aparelho que eu fazia o mesmo para acompanhar os jogos do Grêmio. Eu torci muito. Vibrei demais. Passava horas seguindo os debates sobre a dupla Gre-Nal. Vivi os anos 60 intensamente como gremista, imaginando se chegaria o dia tão esperado de entrar no templo sagrado.

E sabes de uma coisa?

A primeira vez é, de fato, inesquecível.

Quartas de final da Taça Brasil de 1965.

Grêmio x Palmeiras.

Eu subi as escadas que davam acesso ao ponto mais alto da geral e...

MEU DEUS!!!

Arrepia só de lembrar a minha estreia como torcedor em casa.

Até então eu a conhecia apenas por fotos nos jornais e ouvia o ambiente das partidas pelo rádio. Eu desenhava as jogadas na imaginação fértil de garoto e pintava os gols de azul, preto e branco.

Imaginar o Olímpico era maravilhoso. Sentir o Olímpico foi emocionante.

E a batalha que o Tricolor tinha pela frente estava longe de ser fácil. Muito pelo contrário.

O Palmeiras, com a talentosíssima Academia de Futebol de Dudu e Ademir da Guia, havia vencido o duelo de ida em São Paulo por 4 a 1. Parecia impossível reverter o resultado em Porto Alegre.

Do jeito que só o Grêmio sabe fazer, pelear mesmo quando ninguém acredita, recebi o cartão de boas-vindas no Olímpico:

Prazer, eu sou o Imortal Tricolor.

Eu valorizo cada instante da minha carreira. E naquele dia, em Caxias, o Grêmio finalmente cruzou o meu caminho.

Felipão

O nosso ponta-esquerda Volmir Massaroca roubou a cena. Ele deu tantos dribles no Djalma Santos – nome de craque que eu tanto escutei pelo rádio em jogos de seleção – que eu sempre vou me lembrar daquele 27 de outubro de 1965. A realização do grande desejo do guri de Passo Fundo.

E o Volmir não parou nas fintas sobre os palmeirenses. Ele fez um dos gols, o Alcindo deixou o dele duas vezes, e o Joãozinho fechou o 5 a 1. O estádio enlouqueceu!

Mesmo que o Palmeiras tenha se classificado depois de vencer o jogo de desempate, o meu encontro com o Olímpico foi amor à primeira vista.

Posso tentar adivinhar o que tu estás pensando?

“Será que o Felipão já queria ser jogador do Grêmio?

E treinador?

De repente comandar o Tricolor ali da casamata, esbravejando com todo mundo...?”

Olha, eu joguei futebol amador na minha adolescência, no São Cristóvão, e eu estaria mentindo se dissesse que vestir as cores do Grêmio não passou pela minha cabeça.

Porém, a minha educação foi muito rígida. Meu pai nunca abraçou a ideia do futebol. A prioridade dele era outra. Os estudos eram a exigência número 1, e ele esperava que no futuro eu assumisse os negócios da família.

Com os irmãos, ele tinha um posto de gasolina, e eu até ajudei a transportar combustível para o interior do estado.

Na época ele permitiu que eu disputasse campeonatos de várzea aos finais de semana. Todo sábado e domingo eu batia a minha bolinha. Nos outros dias eu tinha de trabalhar e me dedicar ao curso de contabilidade.

Eu seguia as ordens do meu pai e, paralelamente, alimentava a ambição de conquistar um espaço no esporte.

Até ser indicado ao Aimoré, de São Leopoldo, ao qual sou grato por ter aberto as portas para eu iniciar o meu sonho profissional. Aos 20 anos, já era capitão.

Pouco se fala sobre isso, mas eu fui um bom zagueiro, viu?

Acabei não jogando pelo Grêmio, mas, mesmo assim, o clube me serviu de inspiração.

Quando o futebol passa a ser a tua carreira, tu consegues deixar o sentimento de lado. Mas enfrentar o teu time do coração te motivas de uma forma diferente, não vou negar.

Vencer o time pelo qual tu chegaste a torcer é ainda melhor, porque a entrega em campo é maior. Tu queres mostrar que tens qualidade para usar a vestimenta que sempre admirou.

Em função disso, a minha principal lembrança contra o Grêmio, ainda como jogador, é com o grená do Caxias.

No entanto, nem sempre as coisas saem como planejado.

Jogo em casa, aquela motivação pelo tamanho do confronto para nós, a equipe da minha infância do outro lado.

Bah, que lambança.

Tentei recuar a bola para o nosso goleiro, o passe deu errado, levamos um gol, e a partida acabou 3 a 0 para o Grêmio. Aquilo me marcou.   

Foi em Caxias também que eu recebi, anos depois, o convite profissional que reacendeu a chama dos laços afetivos que aprendi desde o berço no interior.

E te digo que a proposta aconteceu quando eu menos esperava e de uma forma bastante inusitada.

Era 1987.

Felipão Grêmio 1987
Rubens Borges/Agência RBS

Já com a carreira de técnico em andamento, eu estava no comando do Juventude no Campeonato Gaúcho. Por alguma razão, não pudemos mandar o jogo no Alfredo Jaconi, então lá fomos nós para o Centenário, campo do Caxias.

O adversário? O Grêmio.

Tu lembras daquilo que eu falei acima? Motivação dobrada, né? Ainda mais porque era o meu segundo clube na trajetória como treinador, depois de iniciar pelo CSA.

E o empenho para chegar àquele momento foi enorme. Não é todo mundo que sabe disso, mas eu me formei em Educação Física ainda enquanto jogava profissionalmente e, depois, fui professor por mais de dez anos.

Às segundas e quintas, geralmente dias seguintes às partidas, nada de pernas para o alto e descanso. Acordava cedo para trabalhar com a gurizada na escola do estado.

Então, eu valorizo cada instante da minha carreira. Eu venho de longe. E naquele dia, em Caxias, o Grêmio finalmente cruzou o meu caminho.

Eles literalmente apareceram no meu percurso.

Vencemos a partida.

Enquanto eu atravessava o campo, um diretor do Grêmio veio até mim. Naquela ocasião, ele poderia me dizer qualquer outra coisa, mas nada me surpreenderia tanto quanto o que ele falou depois de um abraço.

“Queres assumir o Grêmio? Amanhã o cargo é teu.”

Claro que eu queria comandar o meu time de coração, mas alguns fatores tinham de ser resolvidos. Primeiro, eu precisava respeitar o técnico do Grêmio. Segundo, eu havia assinado um contrato com o Juventude.

Essa foi a minha resposta para o dirigente gremista no gramado do Centenário. Em dois dias, os clubes se entenderam. A partir daí, tudo mudou.

Eu não estava mais em Passo Fundo, comemorando o que eu ouvia pelo rádio.

Muito menos na geral, contemplando a imensidão daquele mar azul, preto e branco.

Tampouco era professor em colégios estaduais nas horas vagas de jogador.

LUIZ FELIPE SCOLARI, O NOVO TÉCNICO DO GRÊMIO.

Em pouco tempo, me vi num Gre-Nal do banco de reservas do Olímpico. Melhor ainda: uma vitória no clássico, na última rodada da fase final, levaria o Grêmio ao tricampeonato gaúcho e aquele passo-fundense ao primeiro título no comando técnico.

Com 18 minutos, o Lima já tinha marcado dois gols e o Jorge Veras outro. Explosão gremista em um belo fim de tarde ensolarado na Azenha. Levamos um susto, com dois gols do nosso rival, mas o Rio Grande continuou tricolor pelo terceiro ano seguido.

Um dia monumental, à altura da história do Olímpico.

Com a minha primeira conquista, o Grêmio havia me dado visibilidade nacional. Um pouco mais experiente e cascudo, senti que era hora de alçar novos voos, dentro e fora do Brasil.

Até que as nossas vidas se encontraram novamente, desta vez em um contexto maior, que extrapolava as fronteiras do estado.

Final da Copa do Brasil de 1991.

A grande oportunidade de mostrar para todo o país a minha alma copeira.

Nas voltas que o mundo dá, essa chance apareceu vestindo tricolor de novo, mas contra o Grêmio. No lugar do azul estava o amarelo do Criciúma.

O grupo maravilhoso do Tigre trouxe o 1 a 1 de Porto Alegre e depois garantiu o 0 a 0 em Santa Catarina, combinação suficiente para nos coroar campeões nacionais.

Foi o pontapé inicial para uma década pessoal de ouro, recheada de troféus, graças a Deus. E a maioria deles adivinhas onde? No Grêmio. No Olímpico.

Ao voltar pra casa, em 1993, eu encontrei o clube com o mesmo status que tinha deixado: campeão gaúcho. Além disso, comecei a trabalhar em um ambiente sensacional, liderado por dois grandes profissionais nas figuras do saudoso Fábio Koff e do Luiz Carlos Martins, mais conhecido como Cacalo.

Se por um lado eles não recebiam um tostão, pois ocupavam cargos considerados amadores, ambos seriam capazes de dar a vida pelo Grêmio. Dava gosto de vê-los no dia a dia, tendo o bem do clube como prioridade acima de tudo e de todos.

Por esse motivo, o senhor Fábio foi capaz até de me convencer a ir a Londrina observar um campeonato dos nossos juvenis – não eram nem sequer os juniores – para encontrar soluções para o elenco de 1994. Ele explicou que a situação financeira não era boa, então teríamos de liberar nomes mais experientes e planejar algo com os guris da base.

Felipão Grêmio 1996 campeão
Mauro Vieira/Agência RBS

Nessa viagem que, confesso, eu relutei em ir no início, escolhemos atletas promissores que fizeram uma ou outra coisa com a camisa do Grêmio.

Danrlei.

Roger.

Arilson.

Carlos Miguel.

O que aconteceu na sequência, já com o time reforçado pela contratação de jogadores mais experientes, marcou a história do futebol do Rio Grande do Sul, do Brasil e da América do Sul.

Quando foi a última vez que uma equipe disputou três jogos no mesmo dia? Aquele Grêmio jogou! Às 14h, às 16h e às 18h. Ganhou dois e não perdeu nenhum. Esse é o Grêmio!

Eu poderia relatar aqui inúmeras histórias de bastidores que demonstrariam o ambiente de amizade e companheirismo que existia naquele elenco, mas faltaria espaço.

Para matar a tua curiosidade, vou te contar uma da partida de volta da final do Campeonato Brasileiro de 1996.

Segundo tempo no Olímpico, o Dinho, nosso capitão e principal líder, chega à beira do campo e me pede:

“Professor, me tira, por favor. Pelo amor de Deus! Eu não estou conseguindo fazer mais nada e nós precisamos de alguém mais avançado. Coloca o Ailton no meu lugar”.

Como existia muita confiança entre todos nós, decidi arriscar e atendi o pedido do Dinho.

Nove minutos depois, o Carlos Miguel (obrigado, Londrina!) lançou, a defesa da Portuguesa tentou afastar, no rebote o Ailton fez o 2 a 0 e colocou mais uma taça na história gremista.

Felipão Scolari The Players Tribune
Sam Robles

Como fomos felizes no Olímpico...

Quase 20 anos depois, mais um reencontro com a torcida, outra vez por iniciativa do doutor Fábio. Os tempos do futebol já eram outros, o clube estava muito bem estruturado e eu não viajei nas férias atrás de reforços.

Mas, se precisasse, eu o faria de novo.

No Grêmio, eu me sinto em casa, não importa a época. E, no nosso lar, cuidamos dos nossos.

Carinho e amor definem essa relação que começou à distância e depois se materializou em anos dourados.

Um sentimento que está no sangue da família Scolari, presente nas novas gerações. De Portugal, um dos meus filhos adora palpitar e conversar sobre o Grêmio. Às vezes até demais. Dos meus netos, manda fotos vestidos com o fardamento tricolor.

É o lema que eu mesmo, guri, já cantei no Olímpico, né?

Com o Grêmio, onde o Grêmio estiver.

Autografo Felipao

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