Orgulho de Ser Tricolor
Eu guardei esse segredo por muitos anos.
Pouquíssimas pessoas sabem disso. Dá para contar em uma mão.
Há mais de uma década eu levo isso comigo, mas, por respeito e lealdade à torcida do Fluminense, entendo que é o momento de compartilhar com quem sempre me carregou nos braços.
De forma honesta, simples e direta, honrando o amor profundo pelo nosso Tricolor, a verdade é uma só.
Eu recusei uma oportunidade de jogar pelo maior rival depois que saí do Flu. E olha que eu tinha mais cinco anos de lenha para queimar...
Mas, sinceramente, essa possibilidade não me balançou nem por um segundo. Quando surgiu o convite, respondi de primeira:
– Não, obrigado.
Tenho muito respeito pelas demais instituições e até já tinha passado por outro clube grande do Rio de Janeiro durante a minha carreira, mas, naquele instante, no meu peito, não existia espaço para outras cores que não fossem verde, branco e grená.
Sempre fui tricolor, desde criancinha lá em Petrópolis, e o sentimento pelo Fluminense não só se fortaleceu ao longo da jornada como atleta, como também os laços se estreitaram pela realização profissional e pelas memórias inesquecíveis que guardo do melhor clube do mundo.
Por isso, segui a minha intuição e jamais me arrependi. Dizem que nessas horas o coração fala mais alto. O meu, não. Ele gritou pra mim, com a mesma emoção que vivi nas arquibancadas como garoto e depois tive o privilégio de sentir no gramado defendendo o querido pavilhão.
Não há dinheiro capaz de superar a paixão de uma vida. E chegou a hora de eu contar como o Fluminense entrou de vez na minha. Para sempre.
O começo foi assustador.
No meu primeiro dia nas Laranjeiras, eu não via a hora de vestir o uniforme e entrar em campo para começar a trajetória no meu clube de infância e de quase toda a minha família.
Quando eu estava trocado, passei alguns minutos na frente do espelho admirando o escudo que cresci sonhando representar. Aquela imagem refletida me encheu de orgulho. Se fosse com a tecnologia disponível hoje em dia, eu teria enviado uma foto para os meus pais em Santíssimo. Mas os tempos eram outros...
Por ser o treinamento inicial, começamos com algo mais leve, uma corrida pelo gramado. Logo na primeira volta, um torcedor que assistia ao treino gritou o meu nome.
“Opa, já me reconheceram?”, pensei.
Novato no clube e de personalidade mais reservada, optei por seguir concentrado no trabalho e não olhei. Afinal, eu tinha acabado de chegar e só queria conquistar meu espaço, com dedicação e comprometimento do início ao fim. Era uma chance única.
Na segunda volta, ouvi o meu nome de novo. Na terceira, a mesma coisa. Até que um companheiro percebeu a insistência e comentou:
“Poxa, Marcão. O cara está te dando uma moral e você não vai responder?”.
Quando fui chamado mais uma vez, me virei para a arquibancada, sorri e acenei.
“Volta para o Bangu, meu irmão!”, ele berrou, para todo mundo ouvir.
O constrangimento foi enorme, e o choque de realidade, também. Estávamos nos preparando para a Série C. Ali já senti que a pressão era gigante em cima de nós.
Muitas pessoas me perguntam se foi difícil aceitar a proposta de um time para disputar a terceira divisão.
Primeiro, não era um time. Era o time. O emblema da Máquina Tricolor amada pela família Oliveira na região serrana do Rio de Janeiro, em que pese a distância para acompanhar as partidas.
Se estivessem na Série E quando me fizeram a proposta, eu teria aceitado do mesmo jeito. Um amor sem divisão.
A fase do clube não me fez titubear na decisão nem por um minuto sequer. O grande Carlos Alberto Parreira, então técnico do Tricolor, sabe muito bem disso e pode confirmar a história.
Essa virada na carreira me marcou tanto que eu me lembro até da data: 29 de maio de 1999. Esse dia mudou a minha vida.
Penúltima rodada do Campeonato Carioca, Fluminense x Bangu nas Laranjeiras. Fui para o jogo acreditando que, dependendo da minha atuação, esse dia poderia ficar marcado como o ponto de partida de algo muito especial.
Se na época já existisse o departamento de análise de desempenho nos clubes, pode botar fé que eu teria sido o destaque nos relatórios internos dos dois lados. Devo ter feito uns 20 desarmes no jogo. Quando o Fluminense tentava atacar, a bola batia no meu pé e grudava.
Nunca fui craque, mas sempre reconheci os meus pontos fortes. Fazia o simples e entregava a bola para quem sabia resolver o jogo.
Outra coisa que pouca gente sabe é que eu sou faixa marrom de caratê. Foram seis anos de tatame antes de virar jogador de futebol. Eu levava jeito, batia legal… Só que antes de entrar pra luta eu batia nos outros mesmo, briga de rua. O Marcão do bairro não era fácil, não. Hahaha!
Papai me vendo daquele jeito, todo dia metido numa confusão, resolveu me colocar na aula de caratê. Foi lá que realmente aprendi o que é ter foco, disciplina e comprometimento. Nunca mais briguei na rua.
O caratê me ensinou a ser um atleta de verdade.
Me ensinou também que, se eu fosse disciplinado, focado em meu objetivo, nada poderia me segurar. Por isso, eu sempre soube que, técnica e taticamente, como jogador, eu estava atrás de muita gente. Já em garra, vontade e atitude, seria difícil alguém me superar dentro do campo.
Porque ali o Marcão também era um lutador.
Naquela tarde nas Laranjeiras, eu roubei a cena. Seguramos o placar em 0 a 0 e saí de lá confiante de que tinha deixado uma boa impressão. Eu só não imaginava que tudo aconteceria tão rapidamente. Mas a sorte é que sempre tive papai do céu muito presente na minha vida.
No ônibus com o grupo na volta a Bangu, meu celular tocou. Pensei que fosse o meu pai querendo me elogiar pela atuação. Melhor ainda, era a notícia que eu estava esperando havia 26 anos – desde que mais um bebê tricolor veio ao mundo.
Do outro lado da linha, o Mário Português fez a pergunta dos meus melhores sonhos:
“Marcão, estou ao lado do Parreira, e ele quer saber se você gostaria de jogar no Fluminense”.
Não pensei em salário.
Nem em contrato.
Muito menos em divisão.
“Onde eu assino?”, respondi.
Depois de decidir passionalmente, eu cheguei até a desconfiar que fosse trote.
Será mesmo que um dos maiores clubes do Brasil está atrás de alguém que há pouco tempo era torneiro mecânico e começou no futebol só aos 18 anos, em Moça Bonita, após ser reprovado em diversas peneiras?
Eu só confiei na chance quando ouvi a voz do Parreira no telefone. Trocamos poucas palavras, e ele me disse que queria contar comigo para a busca do acesso no Brasileiro.
Era o Parreira, cara. Campeão do mundo não tinha nem cinco anos, comandando o Mauro Silva, a minha maior referência na posição.
Ao terminar a ligação, dei um grito no ônibus do Bangu e ninguém entendeu.
“AHHHHHHHHHH!!!”.
E a nossa caminhada na Série C começou tão barulhenta como a minha reação com a proposta do clube. A torcida não esperava outra coisa que não fosse a vaga na divisão de cima, para colocarmos o Tricolor no seu devido lugar.
Talvez a primeira impressão não poderia ter sido pior. Estreamos em Nova Lima, Minas Gerais: 2 a 0 para o Villa Nova. E os torcedores ficaram furiosos. Teve invasão de campo, agrediram o goleiro Gabriel, e o árbitro encerrou a partida minutos antes do tempo normal.
Só não invadiram o nosso vestiário porque a polícia nos protegeu.
Passado o susto em campo, o recado do Parreira foi marcante para quem estava ali realizando um desejo de infância:
“Isso aqui é Fluminense. Quem não aguentar, pode pedir pra sair.”
Tudo isso aconteceu no primeiro jogo do campeonato. Você consegue imaginar o peso de jogar com toda expectativa em cima de um time só?
Serei sempre contra a violência e a favor do diálogo franco, mas não dá para negar que o episódio ao menos me mostrou qual era o tamanho da responsabilidade.
Enfrentar o Fluminense era, até então, o maior feito de muitos jogadores do campeonato. Era no confronto com um clube do Rio que eles podiam se mostrar para o Brasil.
Viajamos pelos quatro cantos do país e superamos vários obstáculos, como campos com mais terra do que grama, para recolocar o Fluminense de volta ladeira acima.
Por tudo o que significou para o clube e para a minha carreira, considero, com muito orgulho, que o título da Série C é a maior conquista que tive como atleta profissional.
Por um lado, em um dos momentos mais críticos da sua existência, ajudei no resgate do clube que me fez me apaixonar pelo futebol ainda lá em Petrópolis. Por outro, aquela campanha exigiu bastante envolvimento emocional e me garantiu um novo contrato e a possibilidade de continuar atuando com (muito) amor à camisa.
Lembra o torcedor que me mandou de volta para o Bangu no meu primeiro dia nas Laranjeiras? Quis o destino que nos reencontrássemos na festa do título, no salão nobre do clube. Ele pediu desculpas pelas boas-vindas pouco educadas. Ou seja, meu esforço acabou reconhecido.
Não fosse o objetivo alcançado em 1999, eu não me tornaria um dos melhores roubadores de bola do país nos anos seguintes.
Eu também não teria escutado no Maracanã o grito de “Marcão é seleção!” vindo das arquibancadas de onde eu mesmo havia incentivado o Flu nos tempos de torcedor.
Muito menos teria o meu nome na pré-lista do Brasil para a Copa das Confederações de 2001. Ainda penso, sinceramente, que deveria ter ido para o torneio na Coreia do Sul e no Japão, por diferentes motivos.
Um deles, eu vivia grande fase. Outro, um dos jogadores da minha posição foi convocado numa circunstância bem estranha, e os detalhes vieram a público anos depois, mas prefiro não me aprofundar no assunto.
Como recompensa pelo bom desempenho na Série C, também pude desfrutar do centenário tricolor em campo e marcando gol na final do Carioca. Três anos depois, repeti a dose.
Quem diria, hein? Um garoto com limitações táticas no início de carreira por causa da falta da formação de base se transformar em candidato a vestir a Amarelinha e em herói de título pelo clube da vida.
Gol de bicicleta no Maraca?!
Quase 400 jogos.
Levantar taça como capitão, então...
No aniversário de 119 anos desta instituição maravilhosa que é o Fluminense Football Club, tenho o privilégio de trabalhar aqui, no melhor clube do mundo, agora em uma outra função. A transformação e o desenvolvimento da agremiação ao longo dos últimos anos são visíveis.
Por isso, parabenizo a minha segunda casa muito além desta data especial que celebramos no último mês.
Parabéns ao Tricolor por ser um dos pioneiros na história do futebol brasileiro.
Parabéns ao Flu por uma das categorias de base que mais revelam talentos em todo o planeta.
Parabéns ao Time de Guerreiros por ser um espaço de todos. A inclusão e o combate a qualquer forma de preconceito estão no coração do Fluminense.
Fazer parte da comissão técnica com um dos únicos treinadores negros no país – o nosso comandante Roger – é motivo de enorme satisfação, mas, ao mesmo tempo, de entendimento que o caminho ainda é longo. A nossa luta continua.
E o sonho pela conquista da América também.
Eu estava na arquibancada quando batemos na trave e sei o quanto o torcedor deseja essa Copa.
Esse seria o meu presente ideal de aniversário para a torcida. A nossa história prova que o impossível não existe quando você veste o uniforme mais lindo do futebol mundial.
Pode demorar mais alguns meses, mas a espera vai valer a pena.
Palavra de um Marcão que sempre lutou por essa camisa. De um eterno guerreiro tricolor.