Amor de Mãe

Helio Suenaga/Getty Images

“Mãe, quer assistir ao jogo do Palmeiras?”

Como sempre, ela seguiu o coração alviverde apaixonado e topou o meu convite.

A única diferença é que nesse dia não sentamos juntos no sofá e assistimos ao Verdão na TV, como fizemos incontáveis vezes nos meus 47 anos de vida.

O cenário era outro, bem desconfortável, mas nem por isso deixamos de curtir aquele momento de companheirismo entre mãe e filho, torcendo pelo nosso amor em comum.

Nem na UTI a Dona Antônia conseguiu esquecer o Palmeiras, você acredita?

Descendente de italianos, ela sempre me contava histórias sobre o Palestra. O clube entrou na minha vida por causa da minha mãe.

Dessa vez, porém, eu lembrei que tinha jogo, coloquei no pay-per-view do celular e fiquei segurando o aparelho para ela poder assistir à partida, deitada na cama.

Não lembro nem contra quem foi o jogo, que dirá o resultado. A minha intenção foi deixar a minha mãe menos angustiada, porque ela estava internada havia muito tempo.

A saudade aperta demais o meu peito. Os últimos meses não foram fáceis, muito pelo contrário. 

Este ano passei o primeiro Dia das Mães sem ela. Doeu, viu… Mas, como eu prefiro pensar nas memórias felizes, vou contar como compartilhamos esse sentimento puro pelo Palmeiras por quase cinco décadas.     



Talvez não seja a primeira lembrança como palmeirense, mas uma das mais marcantes da infância é a da final do Campeonato Paulista de 1986. Ou melhor, do meu pai, corintiano, me zoando.

O Palmeiras vivia a seca da fila, o Estadual daquela época tinha muito mais peso do que tem hoje em dia, então aquela decisão tinha importância. Quando perdemos para a Inter de Limeira, corri para chorar no banheiro, e o meu pai, Ladislau, veio atrás de mim pra tirar sarro.

Corintiano, né, velho? Chato pra caramba com futebol… Hahaha!

Apesar da frustração em 86, foi nesse ambiente de muita brincadeira e zoeira saudável que eu fui educado. É essa mensagem que tento passar para os meus seguidores nas redes sociais: futebol é diversão, não violência.

Como a fase dos times na época não era das melhores, tirávamos sarro um do outro a cada partida, já que os títulos eram escassos.

Os meus pais eram muito simples, com pouco estudo e sem muitas condições financeiras. Eles tiveram de fazer um grande esforço para criar seis filhos. Por outro lado, outros fatores nunca faltaram na nossa educação: honestidade e respeito.

O meu pai sempre trabalhou na roça, e ele plantava de tudo: café, mandioca, manga. A família se alimentava do que ele cultivava na horta. A minha mãe era dona de casa e, em determinados momentos, teve de lavar roupa para outras famílias para conseguir vestir os filhos.

Nunca passamos necessidade, mas também não esbanjamos conforto.

Como caçula, dormi no quarto dos meus pais até os 11 anos, quando a minha irmã mais velha se casou e vagou uma cama em outro cômodo.

A nossa casa era bem simples, mas a minha mãe fazia questão de ter dois quadros sempre à vista de todos: um da Santa Ceia e um outro. Adivinha qual? Do Palmeiras.

Marcos goleiro mae Palmeiras
Cortesia de Marcos

Em pé: Rosemiro, Leão, Vacaria, Alfredo, Pires e Beto Fuscão. Agachados: Jorge Mendonça, Silvio, Toninho, Toninho Vanuza e Nei.

Olhei tanto para aquele quadro da Dona Antônia que até decorei a ordem dos jogadores perfilados.

Agora me pergunte se eu sei dizer quem estava na Santa Ceia hahaha... Brincadeira :)

A minha mãe era muito religiosa, então eu fui batizado e crismado na Igreja Católica. Tenho fé até hoje que Deus me ajudou a conquistar muitos sonhos, a maioria deles inicialmente inalcançáveis para alguém do interior.

Até surgirem as primeiras oportunidades no futebol, tive de me virar para conseguir uma graninha extra para mim.

Ser o mais novo da casa tem as suas vantagens, como pegar o trabalho mais leve da roça entre quatro irmãos homens, mas, quando eu fazia besteira, levava bronca de sete pessoas. 

Os meus pais tinham um lema para os filhos:

“Olha, casa, comida e roupa lavada nós garantimos. Agora, se quiserem algo a mais, depende de vocês.”

Fosse para comer um lanche na pracinha onde a turma se reunia aos fins de semana ou para comprar um tênis diferente, eu precisava dar o meu jeito.

Por isso, comecei a procurar emprego aos 13 anos. E peguei cada bucha, velho. 

Trabalhei no almoxarifado de uma oficina, entregando peça para mecânico.

Numa serraria, eu passava veneno na madeira e deixava secando no sol. A luva de adulto sambava na minha mão. Então, às vezes, o produto caía dentro da luva.

Lembro perfeitamente a reação da minha mãe quando viu a minha mão cheia de ferida:

“Você tem 14 anos e passa o dia inteiro mexendo com veneno? Pode sair de lá.”

Cabeça dura, eu continuei na serraria. Até ser demitido depois de me pegarem jogando verniz pra cima, em uma daquelas brincadeiras bestas com os moleques.

Se permaneci naquele emprego mais do que a minha mãe gostaria, na fábrica de móveis não deu tempo nem de ela se preocupar.

Deveria estar no Guinness Book como o emprego mais rápido da história — eu durei três horas.

Cheguei na fábrica de móveis, e a primeira instrução do patrão foi:

“Leva aquele pó de serra lá pra fora.”

Velho, fui ver o tal do pó e...

ERA UMA MONTANHA DE PÓ DE SERRA!

“Onde fica o carrinho de mão?”, perguntei.

A resposta não foi muito animadora.

“Não tem carrinho de mão, você tem que colocar no balaio.”

Para quem não sabe, balaio é uma espécie de cesto. Ou seja, eu teria de fazer mil viagens para transportar tudo aquilo que ele pediu.

Eu olhei para o pó de serra.

Depois para o balaio.

E finalmente disse ao chefe, na maior cara de pau:

— Ah, eu tenho alergia.

— Quem tem alergia não pode trabalhar em uma fábrica de móveis.

— É verdade.

Pedi as contas e vazei antes de carregar o pó de serra. Deus me livre!



A minha mãe participou ativamente da minha trajetória profissional desde os primeiros passos em Oriente, me dando bronca por mexer com veneno, até eu me aposentar no Palmeiras.

O Felipão apelidou a Turma do Amendoim, o pessoal das numeradas que reclamava atrás do antigo banco de reservas do Palestra Itália.

Mas a Dona Antônia também não aliviava quando eu cometia alguma falha.

“Beto, você é tonto? Por que você fez aquilo?”

Ela me chamava assim por causa do meu segundo nome, Roberto, e para o meu pai eu era o Marquinho.

Cornetas à parte, ela me deu um suporte emocional muito grande. Nós nos falávamos antes de todos os jogos e orávamos juntos.

Nunca coloquei em Deus a responsabilidade de vencer um jogo ou de me ajudar a fazer uma defesa, mas sempre acreditei que Ele poderia me proteger de lesões sérias.

Marcos goleiro Palmeiras carta
Mauricio Lima/Getty Images

Às vezes eu estava no ônibus, indo para o estádio, e ela perguntava:

“Quem está do seu lado? Posso falar com ele para passar uma palavra de fé?”.

Ela era uma figura haha... Boleirona!

Falando sério, imagino que não deve ter sido fácil para ela e o meu pai verem o caçula sair debaixo da asa rumo à cidade grande.

Eu tenho três filhos: o Lucca, de 22 anos, Anna Julia, 17, e o Marquinhos, 8. Se eu fico preocupado mesmo podendo saber onde eles estão a qualquer hora do dia graças à tecnologia, ela teve de aguentar as saudades do filho mais novo a 500 km de distância e sem internet nem celular para se comunicar. 

Além disso, tem o caipira do interior e tem o caipira da cidade de 5.000 habitantes.

Quando cheguei em São Paulo, eu não sabia comer com garfo e faca, velho. Só usava colher.

Até para avisar que eu tinha sido aprovado no teste do Palmeiras, em 1992, eu sofri.

De um orelhão na Avenida Antártica, liguei a cobrar para a nossa vizinha na época, a Cecília, que tinha sido minha professora. Ela chamou a minha mãe e só aí que eu consegui dar a notícia pra família.

Ufa! Misericórdia!  

Claro que todos ficaram felizes, principalmente a palmeirense lá de casa, né?

Mas o sentimento dos meus pais nada tinha a ver com o dinheiro que eu poderia ganhar, até porque era só o começo do sonho. E, no início dos anos 1990, jogador profissional já era bem remunerado, mas não ficava milionário da noite para o dia como pode acontecer com a molecada de hoje.

Ter jogado só pelo clube que eu amo quase me matou, cara.

Marcos

Eles estavam realizados por ver mais um filho encaminhado profissionalmente, com condições de se sustentar.

Na verdade, quando eu comecei a receber um salário melhor e pude oferecer mais conforto para os meus pais, eu precisava implorar para eles aceitarem alguma coisa. Eles eram muito, muito simples e viviam com o básico.

Outra maneira de me comunicar com a minha família, no início de carreira, era por carta. Eu escrevia para dizer que sentia saudades, mas, principalmente, para acalmar aquele coração de mãe. Eu sabia que os parentes cuidavam um do outro em Oriente, só que eu precisava dizer que estava bem na nova vida, né?

Nesse caso, eu enviava muito mais cartas para o interior do que ela para São Paulo. Ela até escrevia, mas, na maioria das vezes, não me mandava.

Sabe por quê?

Ficava envergonhada por escrever algumas palavras erradas.

Então, nas minhas visitas ela me entregava em mãos para eu não ficar sem resposta. Amor de mãe.



Com a minha evolução dentro do Palmeiras, os corintianos da família foram se extinguindo. Na Libertadores de 1999 não teve jeito, né?

Virei titular após a lesão do meu ídolo Velloso e realizei o sonho de infância de ser campeão vestindo as cores que a minha mãe me ensinou a amar.

Quando o Zapata chutou pra fora o último pênalti do Deportivo Cali, a euforia tomou conta do meu corpo. Corri para me jogar no meio da torcida, mas ainda bem que eu lembrei a tempo que existia um fosso entre a arquibancada e o gramado do Palestra Itália.  

Foi só nessa época que eu comecei a lidar com a fama de verdade.

Depois do título, voltei para Oriente para curtir uns dias de folga com a família, e todo mundo passava lá em casa para tirar uma foto: corintiano, são-paulino, santista.

Para eles, ali eu não estava como goleiro do Palmeiras, mas como filho da cidade.

Marcos goleiro Palmeiras TPT
Helio Suenaga/Getty Images

Bastava alguém tocar a campainha lá de casa e dizer que estava ali para me ver, que a minha mãe respondia, com o sorriso no rosto:

“Entra!”

Ela sempre gostou de bater papo, então oferecia bolo de fubá, cafezinho...

Óbvio que o meu pai torcia por mim, mas ele só deixou de ser corintiano mesmo em 2000.

Naquele ano, chegamos à final da Libertadores pelo segundo ano seguido e perdemos para o Boca Juniors nos pênaltis.

Não sei dizer o motivo, mas torcedores do Corinthians resolveram apedrejar a casa dele.

“Pô, mas eu sou corintiano!”, ele disse para os caras.

Não adiantou.

Quebraram um monte de telhas.

Eu já aproveitei para jogar um xaveco no coroa:

“Tá vendo só, é a torcida que você defendeu a vida inteira...”

Dois anos depois, eu estava representando não só Oriente, mas o Brasil inteiro na Copa do Mundo da Coreia do Sul e do Japão.

Vou te confessar, eu estava muito tenso, cara.

Marcos goleiro Brasil Copa 2002
Ben Radford/Getty Images

Historicamente, a pressão sobre o goleiro da Seleção Brasileira é enorme. Embora eu fosse titular por escolha do Felipão, eu tinha dois concorrentes gigantescos.

Dida.

E Rogério Ceni.

Ou seja, eu não era unanimidade.

E eu pensava muito no Barbosa.

Certa vez, quando eu já era titular da Seleção, fui chamado para participar de uma homenagem a ele.

Primeiro, foi um enorme prazer conhecê-lo. Uma grande honra. Até por isso aceitei o convite imediatamente.

Do outro ponto de vista, no nosso encontro eu o senti muito magoado pela injustiça que teve de suportar até os últimos dias de vida, pelo o que aconteceu na Copa de 1950.

A dor dele me marcou, e eu pensava nisso mesmo do outro lado do mundo, às vésperas da nossa estreia.

Se eu fosse treinar pênalti com o Ronaldo, e ele convertesse mais cobranças do que eu defendesse, eu ficava maluco!

Marcos

Foi bom não poder acompanhar diariamente o que a imprensa comentava sobre nós.

Não dava para ligar todos os dias para a minha mãe, como eu fazia em São Paulo. Eu tinha um celularzinho azul, acho até que era da BCP. Mas se a ligação passasse de dois minutos, eu tinha de vender um rim para pagar a conta. Ainda bem que temos dois, né? Hahaha.

Essa falta de comunicação foi fundamental para eu me isolar da cobrança externa.

Mas quem disse que a minha mãe não insistia?

— Beto, sabe o que falaram?

— Mãe, eu não quero saber de nada.

Sinceramente, eu nunca tive essa preparação psicológica de um atleta profissional. Quando eu errava, eu ficava muito bravo comigo. Quando os outros erravam, eu ficava puto com os outros.

Eu não admitia perder nem em treinamento.

Se eu fosse treinar pênalti com o Ronaldo, e ele convertesse mais cobranças do que eu defendesse, eu ficava maluco!

E era o Fenômeno, hein?

Mas para mim não importava. Eu não conseguia dormir à noite de tanta raiva.

Marcos goleiro final Copa 2002 Brasil Alemanha
Getty Images

Por causa dessa personalidade e da pressão externa, tenho muito clara na memória a frase que eu falei pro Felipão ainda no gramado de Yokohama, depois de conquistarmos o penta contra a Alemanha.

“Professor, muito obrigado pelo senhor ter confiado em mim, inclusive quando eu mesmo não acreditei”, eu disse, enrolado na bandeira do Brasil.

Até o fim da minha carreira, eu bem que tentei mudar esse lado excessivamente competitivo. Só que quando eu diminuía a exigência pessoal e com o time, eu sentia que o meu rendimento não era o mesmo.

Pensando nisso, ter jogado só pelo clube que eu amo quase me matou, cara. A alegria da vitória era muito grande, parecia que o meu coração pararia de bater. Mas a tristeza da derrota…

Marcos goleiro Palmeiras The Players Tribune
Getty Images

Eu nunca aprendi a perder. 

Nos últimos meses, estou tendo que superar a maior perda da minha vida.

Em novembro do ano passado, a minha mãe quebrou o fêmur aos 83 anos, e a família ficou extremamente apreensiva, porque sabíamos que o problema poderia causar outras complicações.

Diante da gravidade do quadro, eu cancelei todos os meus compromissos em São Paulo, larguei tudo e corri para o interior. 

A minha mãe foi, e sempre será, a melhor e maior parceira na vida. Por isso, eu não poderia deixar de acompanhá-la no pré e pós-operatório. Meus irmãos e eu nos revezamos no hospital, e ela sempre teve alguém por perto.

Durante aqueles 15 dias, fizemos de tudo juntos: almoçamos, jantamos, dormimos, rimos, choramos, nos declaramos um para o outro e, claro, torcemos pelo Palmeiras.

Agradeço a Deus por ter me proporcionado esses momentos tão especiais com a minha mãe. Eu só não esperava e não gostaria que aquele jogo no celular tivesse sido o nosso último.

Jamais imaginei que aquele amor passado de mãe para filho mudaria tanto a minha vida e a da minha família.

Eu só beijei o escudo de um clube em toda a minha vida, e tive a sorte de ser o daquele que eu cresci vendo no quadro da minha mãe.



Faz 10 anos que disputei a última partida com a camisa do Verdão. Minha mãe chorou muito quando eu anunciei minha aposentadoria do futebol. Ela até tentou insistir para que eu tentasse continuar, mas não dava mais pro meu joelho. 

Só recentemente senti uma adrenalina tão intensa como na época em que eu jogava. Em janeiro, o Palmeiras voltou à final da Libertadores pela primeira vez em duas décadas.

Marcos goleiro mosaico torcida Palmeiras
Getty Images

Escolhi o meu lugar da sorte no sofá de casa e abri uma cerveja.

Eu já estava me preparando emocionalmente para a prorrogação, quando nos acréscimos o Rony cruzou na área do Santos, e o Breno Lopes fez o gol do título.

Velho, sendo sincero, a emoção da cabeçada do Breno Lopes foi igualzinha à do pênalti perdido pelo Zapata. Igualzinha!

Foi bom demais, velho! 

Uma pena que não havia para onde correr dentro do meu apartamento.

E nem a tão aguardada ligação para Oriente — nem que fosse do orelhão.

Fernando Pilatos/Gazeta Press

Não tem um dia que eu não pense nos meus pais.

Não tem um dia que eu não fale do Palmeiras.

Não tem um dia que eu não sinta falta da minha mãe.

Com muitas saudades, 

Do Beto. 

Autografo Sao Marcos goleiro Palmeiras

VEJA MAIS