Para Todas as Meninas Que Amam o Futebol

Sam Robles/The Players' Tribune

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Tudo o que eu faço, tudo o que realizo, qualquer conquista que alcanço na vida, tudo remete à minha mãe.

Lá no sertão de Alagoas, onde eu cresci, todas as manhãs eu acordava cedo e radiante para jogar futebol. Era tudo o que eu queria fazer. Eu me trocava bem ligeira e já saía logo pra rua, que foi onde eu comecei a jogar. De repente, olhava em volta e... via um mar de meninos. Todo dia.

Nada de meninas. Nem umazinha sequer. Apenas meninos.

E eu.

Tentando trilhar o meu caminho.

Nenhuma outra garota da minha cidade teve essa audácia. Elas jamais se atreveram naquele espaço. Provavelmente não queriam ser xingadas ou as últimas a serem escolhidas. Mas eu? O que posso dizer: eu amava demais o futebol e não estava disposta a desistir. Então, eu ia jogar de qualquer jeito. Eu não me importava se as pessoas me olhariam de cara feia.

Quando os meninos falavam merda comigo, eu simplesmente ignorava e continuava jogando. Quando eu chegava em casa depois dos jogos, era minha mãe quem me dava força.

Ela saía de manhã super, super cedo para o trabalho. Teve que trabalhar muito, muitas vezes até de noite, para sustentar a mim e meus três irmãos. Então, depois de uma longa jornada, quando ela voltava pra casa por volta das 19, 20h, ela ainda tinha que ouvir conversinha da vizinhança.

O que aquela menina tá fazendo andando por aí com os meninos?

Por que você deixa sua filha jogar um jogo de homem?

O que ela tá tentando provar?

Falavam tanta besteira com ela naquela época. Tanta besteira…

E minha mãe, que Deus a abençoe, ela só olhou para aquelas pessoas e... ignorou completamente o que elas tinha a dizer. Ela nunca veio me pedir pra parar.

Ela apenas me deixou jogar.

Para vocês terem uma ideia: minha mãe é muito religiosa. Ela é católica e tem muita fé. Pra ela era tipo… Se o destino da Marta é jogar futebol, Deus vai mostrar o caminho. Deixa ela.

Isso era tudo que ela dizia. E então... ela entrava em casa, fazia a janta para os quatro filhos, checava se a gente tinha o que precisava e se preparava para acordar cedo na manhã seguinte e fazer tudo de novo.

Foi tão inspirador! Ver como ela viveu a vida dela e sentir o apoio que ela me deu ao me deixar jogar futebol para que eu pudesse ser feliz. Isso me trouxe muita autoconfiança. Foi o presente dela para mim. 

Na nossa família, transformamos cada Não em um Sim. Não importa quanto tempo demore.

Minha mãe me permitiu fazer o que eu amava. Não importa o que os outros dissessem. Ela é o motivo de eu ser quem eu sou. E ao entrar em campo em mais uma Copa do Mundo, eu estarei pensando nela.

Mae Marta jogadora Brasil futebol feminino
Cortesia de Marta

Porque a minha vida e esse jogo... mudaram muito desde aquela época lá no sertão.

Esta é a minha sexta Copa. E é realmente incrível quando paro pra pensar em quão longe nós chegamos.

Não faz muito tempo, nós, que amamos o futebol feminino, lutávamos para conseguir uma estrutura melhor. Agora nós temos isso. Pedíamos mais investimento. Agora temos mais investimento. Pedíamos maior exposição. Agora também temos isso. Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas acho que talvez as pessoas não percebam totalmente o quanto a gente progrediu.

Esses dias eu tava me lembrando: quando era pequena, não tinha uma jogadora de futebol famosa que eu pudesse admirar e querer me tornar que nem ela um dia. Meu ídolo era o Rivaldo, porque adorava o jeito que ele jogava, e ele era canhoto como eu, mas também pelo fato de não existirem mulheres em destaque como ele. Não tive opção a não ser escolher alguém do masculino.

Agora as meninas têm suas próprias heroínas. E isso me deixa tão orgulhosa. Só que a questão agora é outra…

O que faremos com todo esse progresso?

Falando em futuro... Posso ser sincera de novo? Estou tão cansada de falar sobre isso! Não quero mais que me perguntem sobre a Marta.

Marta

Estamos prestes a disputar a maior Copa do Mundo feminina de todos os tempos. Fico muito feliz em saber que meninas de todo o mundo poderão nos ver em campo vivendo nossos sonhos. Dou valor demais a essas coisas, de verdade. Também penso muito sobre isso.

Sinto um orgulho imenso ao imaginar que talvez existam meninas por aí me assistindo e que eu possa inspirá-las a alcançar seus sonhos. Isso significa muito para mim. Vale mais do que qualquer título, medalha ou troféu que ganhei. Ser alguém que as meninas podem admirar, alguém que mostre pra elas que seus sonhos podem se tornar realidade? Ter um impacto assim, ter isso como legado? Isso, para mim, é tudo o que eu poderia sonhar.

Portanto, embora eu queira ganhar esta Copa do Mundo mais do que qualquer coisa e esteja ansiosa pra dar cada gota do meu suor para alcançar esse objetivo, sendo bem honesta, antes mesmo de saber se vamos ou não conquistar a primeira estrela, eu já me sinto muito grata por este momento. E por tudo que fizemos até aqui.

Nós chegamos tão longe. E estou muito animada pra ver o que ainda vem pela frente.

Marta cartaz jogadora futebol feminino
Sam Robles/The Players' Tribune

Depois que eu parar de jogar e for uma senhora de idade, quero poder ver os frutos desse progresso todos os dias, em todo o mundo. Na verdade, isso me lembra um sonho que eu tenho de vez em quando. Ou uma “visão”, se quiserem chamar assim. 

Sou eu bem velhinha chegando num parque enorme com vários campos de futebol. Meninas e meninos estão jogando bola por todos os cantos que você olha. E eu estou com uma daquelas cadeiras de praia baratas, uma bebida na mão — talvez seja um café, mas, dependendo do dia, quem sabe… talvez seja outra coisa. Encontro um bom lugar na beira do campo, abro minha cadeira e me jogo que nem os americanos costumam fazer. Tomo um gole da minha bebida e então... só aprecio aquelas crianças jogando o jogo que elas adoram. O jogo que todos nós amamos.

Com um sorriso gigante no rosto.

Esse é o sonho que eu tenho. E acredito que os jogos desta Copa do Mundo vão ajudar a nos levar a isso no futuro.

Falando em futuro... Posso ser sincera de novo? Estou tão cansada de falar sobre isso! Não quero mais que me perguntem sobre a Marta.

Esta Copa não é sobre mim.

Não é só a Marta.

Nunca foi só a Marta.

E nunca será só a Marta.

É sobre todas nós. É sobre o BRASIL. Assim como deve ser.

Autografo Marta

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