Aqui é Meu Lugar
Já me falaram que eu não ia conseguir jogar de chuteira.
Já me dispensaram por engano.
Já desisti de ser jogador e me conformei em bater bola na escola.
Já fui embora do clube que eu amo contando os dias para revê-lo.
Mas, depois de virar ídolo na Europa e jogar Copa do Mundo, finalmente estou de volta ao lugar onde sempre quis estar.
Muita coisa aconteceu no meio do caminho… Então, deixa eu te contar um pouco mais da minha história. E pega a faixa de campeão.
Eu tinha oito anos quando meu irmão morreu. Ele se chama Vicente, mas seu apelido era Pio. Ele que me levava pra várzea desde quatro, cinco anos... Minha felicidade era ver o Pio jogar. Isso foi o que me inspirou a gostar de futebol. Eu queria ser igual a ele.
Cresci querendo ser igual ao meu irmão.
Ele foi campeão amador, era bastante conhecido lá no interior do Paraná. Todo mundo fala: “Pô, você parece com o Pio, você jogando parece com o Pio”.
Outros dizem: “Ah, mas o irmão dele era melhor!”.
Realmente, meu irmão era melhor que eu. Um verdadeiro craque.
O sonho do Pio, que era ajudar nossa família, acabou se tornando o meu. Afinal, ele tomava conta da gente.
Lembro até hoje da minha mãe chorando no velório: “E agora, como é que eu vou fazer para sustentar toda essa família?”. Uma imagem muito triste, principalmente para um garoto que tinha acabado de perder sua principal referência. Mas, ao mesmo tempo, o choro dela me fez entender desde cedo o tamanho da minha responsabilidade.
Eu sou o décimo segundo filho e perdi o pai novo também. Quando vi minha mãe desesperada daquele jeito, dei um abraço nela e fiz uma promessa:
“Mãe, tranquila, eu vou tomar conta da família.”
Minha mãe sempre foi faxineira, trabalhava de segunda a sábado pra dar o que comer para nossa família. Então, meu objetivo era sair de casa para ser uma boca a menos, dar menos trabalho e um futuro melhor para ela. Era isso que me motivava desde que comecei a jogar bola, mesmo sendo o filho caçula.
Todo dia eu acordava e sabia que precisava me dedicar ao máximo.
Tenho uma família para criar, pensava.
No jogo eu tinha que ser o melhor, porque carregava mais onze irmãos comigo.
O sonho maior não era jogar na Seleção. Sempre foi dar uma condição melhor pra minha família. E eu consegui. Dei uma casa para cada irmão, uma casa para minha mãe. Para mim, isso, sim, é a realização da vida.
Tudo bem que quando fui convocado pra Copa, rapaz... Eu liguei pra todo mundo! Meus amigos, minha família, todo mundo que gostava de mim. Pra mostrar como eu estava feliz! E eu via a felicidade do pessoal.
Eles diziam: “Você é o cara, você conseguiu”.
Verdade, eu consegui. Mas sabe onde tudo começou? Nas ruas de Paranavaí.
Eu era sempre o menino que jogava bola na rua. O pessoal falava que eu teria dificuldade de colocar chuteira, porque só brincava descalço. Mas, na primeira vez que eu ganhei uma, fui testar num campinho do bairro. Pisei na grama e logo vi que tava em casa. Mais fácil que andar de bicicleta.
A partir dali eu já saí para fazer teste em tudo quanto é canto. Santos, Guarani, Juventus da Mooca... No Juventus aconteceu uma coisa engraçada: os caras me dispensaram errado. Pode um negócio desses?
Eu estava me destacando no treino, jogando bem e tal, só que tinham dois João Miranda fazendo teste. Acaba a peneira, o treinador vira pra mim e dá o resultado:
João Miranda, dispensado!
Peguei minhas coisas, montei no ônibus e fui embora. No meio do caminho, eles ligam pra eu voltar, dizendo que tinham se enganado. Me confundiram com o outro João Miranda. E o cara nem zagueiro era… Hahaha.
Pediram desculpa pelo erro e disseram que realmente viram talento em mim. Eu tinha treinado muito bem. Mas foi vergonhoso ter sido dispensado daquela forma. Bateu uma tristeza e resolvi seguir viagem.
Foi uma longa estrada até me firmar no Coritiba. O clube abriu mão de mim na época de infantil. Acharam que não valeria a pena investir num jogador tão novo. Eu dei uma desanimada. Passei a brincar só nas peladas da escola e jogos estudantis. Mas aí lembrei da minha família. Da missão que eu tinha herdado do Pio.
Eu não poderia desistir. Por eles!
Então, quando eu percebi que minha única ambição era ser jogador e meus familiares não podiam me acompanhar, eu viajava sozinho mesmo. Montava no ônibus e ia atrás do meu sonho. Às vezes, tinha alguém esperando na rodoviária. Às vezes, eu tinha que pegar táxi ou ir a pé até o alojamento. Era difícil, porque minha mãe chorava toda vez que eu ia embora. Ela não queria que eu fosse jogador, porque a gente fica longe da família, né? Mas eu sempre jurava que voltaria.
“Estou indo pra te dar um futuro melhor.”
Se eu falo que vou voltar...
Mas, calma, ainda não é hora de falar do São Paulo.
A jornada pelo mundo do futebol foi bem mais extensa do que eu imaginava.
Quando saí do São Paulo e fui pro Atlético de Madri, tive a felicidade de ter o Simeone como treinador. Ele foi um cara que me ensinou bastante.
Mas, no começo, era foda.
Primeiro jogo no banco, segundo jogo no banco... Aí já fui conversar com ele.
“Peraí, eu tô aqui para ser titular. Para ser o dono da posição.”
Daí ele falou algo que me pegou de surpresa: “De acordo com o que você está treinando, você não é meu titular, porque eu mal te conheço”.
Ele sabia que eu jogava no São Paulo, que fui campeão, mas explicou que, pelo que via no treino, eu não tinha condição de ser titular do time dele.
“Meu time é guerreiro, que briga por cada bola, que treina bem.”
O cara era muito exigente, mas não me conformei com aquela desculpa: “Eu sou jogador de jogo, não sou jogador de treino. Se me colocar no jogo, eu vou dar a resposta que você quer.”
Ele prometeu que eu teria minha oportunidade. Coincidência ou não, um jogador foi suspenso, e então surgiu a chance de iniciar entre os 11.
Antes da partida, o Simeone me chama: “Você pediu sua oportunidade e ela chegou. Se você for o jogador que tanto fala, vai ter que demonstrar agora, no jogo.”
E aí eu joguei pra caralho!
No outro dia, reunião com o time inteiro, e o Simeone pede a palavra:
“O único jogador que eu admito treinar mais ou menos é o Miranda, que eu sei que ele vai dar a resposta no jogo. O resto tem que treinar bem.”
Mesmo assim, coloquei na minha cabeça que eu tinha que treinar muito, porque sempre fui competitivo. Desde pequeno, eu quero fazer o máximo para ganhar. Não gosto de perder nem par ou ímpar, fico puto. Meu pai me ensinou que, em tudo que você faz, tem que tentar ser o melhor.
Minha carreira sempre foi cheia de desafios: Espanha, Itália, China e na própria Seleção.
Quando eu cheguei no Atlético, eles estavam há 14 anos sem ganhar do Real Madrid. No dia da final da Copa do Rei de 2014, eu vi uma faixa: “Procura-se um clássico de verdade”. E entendi que era o momento de acabar com o tabu.
Fiz aquele gol no início da prorrogação, que deu a taça pra gente. Muitos falam que foi o gol que mudou a história do Atlético de Madri.
Na Inter de Milão, a situação era parecida: quase nove anos sem jogar a Liga dos Campeões. Saí de lá com o clube na Champions dois anos seguidos.
Na China, a gente conquistou o primeiro título do Suning. O objetivo do clube sempre foi jogar a Champions Asiática e, com o título, eles conseguiram a vaga.
Disputei Copa do Mundo, cantei o hino nacional e representei um país de mais de 200 milhões de pessoas. Aquele moleque que jogava bola na rua, descalço, muitas vezes arrancando o tampão do dedo, chutando o meio fio, estava vestindo a camisa da Seleção Brasileira. Para mim, passa um filme todos os dias. Quando eu olho pra trás e vejo que consegui vencer.
Mas o episódio que mudou minha vida e fez tudo isso ser possível aconteceu há 15 anos.
A essa altura, depois de rodar por outros times de base, eu tinha recebido uma nova oportunidade no Coritiba e já estava me destacando pela equipe principal. Saí de lá direto pra França, com 19 anos. O Coxa precisava de grana e me vendeu – 2 milhões de euros. Cheguei a jogar 20 partidas pelo Sochaux. Até o dia em que o presidente do clube colocou uma proposta na mesa: eu seria emprestado ao São Paulo.
Mas ele gostava de mim e disse que eu voltaria assim que terminasse esse um ano de empréstimo.
Não deu pra cumprir o combinado. Graças a Deus, o São Paulo me comprou. E nada mais justo que recordar como essa história começou.
Agora, sim… Como prometido, vamos ao capítulo mais importante da minha trajetória.
Aliás, adivinha quem foi fundamental pra eu ficar de vez no São Paulo? Pouca gente sabe disso: Rogério Ceni. Quando estava acabando meu empréstimo, ele deu uma prensa na diretoria:
“Olha, se o São Paulo não comprar o Miranda, eu compro. Quero ele no time.”
Vocês têm noção?
O Rogério queria comprar 50% para ajudar o São Paulo!
Aí os dirigentes se ligaram: “Opa, se o Rogério quer, é porque o cara é fera mesmo”. E foi assim que eles me compraram.
O Rogério não apoiou minha permanência. Ele exigiu minha permanência.
O São Paulo era o melhor clube do Brasil na época, disparado. Não tinha adversário, em termos de estrutura. Eu via a grandeza do São Paulo e ficava admirado.
Meu primeiro dia no clube foi inesquecível. Dei de cara com o Aloísio Chulapa. Ele jogava antes no Atlético Paranaense. No meu último clássico pelo Coxa, tive uma briga com ele. Pensa! Aí eu chego no São Paulo e encontro logo com quem?
E ele ainda me solta: “Vamos lá fora resolver aquela parada.” Já previ o pior, né? Meu Deus, comecei bem. Vou ter que brigar com o cara de novo. Hahaha.
Nada... Aloísio foi um dos maiores parceiros que eu tive. Ele me ajudou muito, falava direto: “Aqui a gente tá junto, irmão! Aqui é São Paulo! Nossa amizade vai prevalecer.”
Eu também tinha um carinho muito grande pelo Rogério. Não só por ter bancado minha permanência, mas também pela capacidade de liderança.
No almoço, ele sentava sempre no mesmo lugar. Todo mundo já se posicionava ao redor dele pra receber informação. Era para o jantar durar 20 minutos, mas demorava uma hora, uma hora e meia, porque ele ficava conversando com a gente. Era um cara que queria vencer, e me dava muita confiança.
“Miranda, você joga pra caralho. Você é melhor que todos os adversários que vai enfrentar.”
Pô, era o Rogério Ceni, o cara mais respeitado do São Paulo, um cara histórico.
Só que o meu começo não foi fácil. Fiquei os três primeiros jogos no banco, bravo... Conversava com o Milton Cruz, dizia que eu queria jogar, tava louco pra vestir a camisa, e ele mandava eu ter paciência.
O Rogério não apoiou minha permanência. Ele exigiu minha permanência.
- Miranda
Aí teve um jogo que o Edcarlos tomou o terceiro cartão. Foi a brecha que eu precisava para entrar no time e não sair mais.
O São Paulo era o clube da moda, onde todos os jogadores queriam jogar. Uma competitividade enorme. Então, você tinha que continuar melhorando, senão vinha outro e pegava o seu lugar. A gente não podia vacilar. E o Muricy sempre cobrava no dia a dia.
“O que vocês fizeram é passado! Vocês têm que continuar no presente, vocês têm que estar bem!”, ele dizia.
De verdade? Foi isso que fez com que a gente ganhasse os três Brasileiros seguidos.
Vou falar pra vocês: no último, em 2008, a gente estava a 10 ou 12 pontos do Grêmio, que era líder, e perdemos pra eles fora. Primeiro jogo do returno.
No dia seguinte, no café da manhã, o Hernanes chegou e apontou pra cada um:
Bom dia, campeão brasileiro!
Bom dia, campeão brasileiro!
Bom dia, campeão brasileiro!
Nesse instante, a gente começou a acreditar que ainda dava. Botamos o pé no acelerador e fomos em busca de tirar a diferença de pontos. Toda vez que a gente chegava no portão do Morumbi, a torcida nos recebia gritando “o campeão voltou, o campeão voltou”. Os adversários foram ficando com medo, e nós conseguimos ganhar mais um Brasileiro pelo São Paulo.
Eu sempre ficava arrepiado quando gritavam meu nome no Morumbi. Não tem como. Escutava aquilo e pensava que tinha de correr mais por eles, eu tinha de lutar mais por eles! Porque eles merecem… Eles merecem ter esse momento de alegria.
Se você faz o seu time ganhar, você mexe com um milhão de sentimentos. A gente dorme tranquilo sabendo que o são-paulino vai ter uma segunda-feira leve. Primeiro dia da semana, normalmente, o pessoal vai trabalhar meio puto, mas, quando o São Paulo vence, nossos torcedores vão felizes.
Então, você tem que tirar algo mais, do fundo da alma, para dar essa felicidade à sua gente. Quando ouvia o grito de “MI-RAN-DA!” no Morumbi, 70.000 gritando meu nome, eu me sentia um super-herói, cara.
Feche os olhos, imagine essa cena, tente se colocar na minha pele… Posso te garantir: não existe nada comparável a essa sensação!
Quase ninguém sabe, mas, antes de sair, em 2011, meu pensamento era permanecer e fazer história no clube. Eu até fiz uma proposta pedindo um contrato para ficar. Foi muito difícil trocar o São Paulo. Só que eu entendi que era um momento de renovação. Mas, seja no Atlético, na Inter ou na China, eu sempre mantive a mesma certeza: “Um dia eu vou ter que voltar”.
No primeiro contato da diretoria, a emoção pelo retorno tomou conta de mim: Pô, vou voltar pro meu São Paulo.
Assim que fui contratado, perguntei ao Muricy qual São Paulo eu iria encontrar.
“Se eu estou aqui, é porque você vai encontrar um São Paulo batalhador, um São Paulo que vai lutar por título, meu filho.”
“Então é isso que eu quero.”
Se o São Paulo fosse um clube que estivesse sendo campeão de tudo, eu me daria por satisfeito e continuaria torcendo de longe. Mas era um São Paulo que precisava de mim. Não tinha como dizer “não”.
O São Paulo precisa de mim, e eu preciso do São Paulo.
Esse clube tem de estar no lugar onde sempre esteve, entre os melhores. Por isso que eu decidi dormir no centro de treinamento. Eu falei pra minha esposa ter paciência em casa, porque eu precisava focar. Quero voltar a ser o melhor zagueiro do Brasil. Quero retribuir tudo que o São Paulo já me deu.
Foram dois meses dormindo no CT para eu chegar ao meu nível ideal. Na primeira semana, eu terminava o treino acabado, achando que não aguentaria. Mas aí, nessa hora, eu ia pra academia treinar um pouco mais.
Penso o seguinte: eu tenho de ser o cara que vai puxar a fila. Preciso mostrar minha entrega aos garotos que estão subindo. Eu quero que eles enxerguem isso.
Tenho que treinar sempre um pouco mais, porque eu preciso estar à frente dos outros, eu preciso ser melhor que eles. Porque meus companheiros precisam de mim. E, toda vez que precisarem de mim, eu tenho de estar melhor que eles.
Para mim, o pessoal do clube faz parte da minha família. Tenho uma forte amizade não só com os jogadores, mas com todos os funcionários do CT. Chegar de volta e receber o abraço deles foi muito significativo.
Quando você retorna a um clube onde já foi campeão, rola aquela desconfiança. Normal… Que Miranda vai voltar? Passados cinco meses, digo com total convicção, como se estivesse olhando nos olhos de cada torcedor do São Paulo:
Eu sou o mesmo Miranda.
O menino que jogava bola descalço na rua e queria ser igual ao irmão.
O irmão do Pio.
O Miranda que ainda sente a mesma adrenalina ao chegar no portão do Morumbi. Que vestiu a braçadeira para ajudar o clube a ser campeão novamente depois de quase 10 anos.
Não precisa me agradecer. Eu voltei pra isso. E o desafio está só começando. Ainda temos muito que fazer.
Às vezes, parece que eu nunca fui embora. O São Paulo é minha casa. Aqui é meu lugar.
Dessa vez, voltei para ficar. Acima de tudo, para conquistar mais títulos com essa camisa.
A história continua.