As Imigrantes
Às vezes, me parte o coração pensar sobre o que nos tornamos como seremos humanos.
Eu sei que algumas pessoas vão me criticar por tocar nesse assunto. Vão dizer que os atletas devem se limitar aos esportes, porque não somos políticos ou algo assim. Mas isso é besteira. Todos – todos – temos a responsabilidade de tentar melhorar a vida de outras pessoas.
E por causa da minha história – a execução de meu pai, a fuga do Afeganistão – sinto que minha responsabilidade é ainda maior.
No momento, todo mundo está falando sobre os protestos do Black Lives Matter e o assassinato de George Floyd, e isso é muito importante. Adoro ver as pessoas nas ruas, erguendo os punhos, lutando contra a injustiça racial. Espero que isso possa levar a uma mudança. Mas há outra crise humanitária neste mundo que quero ter certeza de que não esqueceremos. Um grande número de refugiados não tem onde morar, para onde ir, nada pra comer. Muitos são impedidos de entrar na Europa. Alguns são admitidos, mas tratados com desconfiança e preconceito. Muitos de nós aqui PODEMOS ajudar... Mas, em vez disso, sentamos e não fazemos nada. E isso me deixa muito triste.
Algumas pessoas perguntam por que todos esses refugiados estão entrando em seu país. Vamos ver se entendi: NINGUÉM deixaria voluntariamente sua terra – suas casas, seus amigos, seus entes queridos – para ir a um lugar onde eles podem nem mesmo ser aceitos. Quem faria isso voluntariamente? NINGUÉM! Eles são forçados a fazer isso. Alguns estão literalmente fugindo da GUERRA. Outras pessoas dirão: “Sim, mas por que eles simplesmente não ficam e lutam?”.
Mas se você diz isso, você não correu nenhum perigo real. Você se lembra de quando o COVID-19 estourou e todo mundo corria para o supermercado pra comprar papel higiênico como se o mundo fosse acabar? Isso é provavelmente 0,0001% do perigo que alguns desses refugiados passaram.
Por causa da minha história – a execução de meu pai, a fuga do Afeganistão – sinto que minha responsabilidade é ainda maior.
- Nadia Nadim
Embora eu esteja empolgada pelo movimento Black Lives Matter, ainda sinto que muitas pessoas se tornaram insensíveis ao que está acontecendo em certas partes do mundo. Um exemplo: as campanhas de ajuda para a África, onde milhões de crianças passam fome. As pessoas veem, no sentido literal, mas, no fundo, elas não veem. Entende? Digamos que você more na Dinamarca, onde cheguei com 12 anos, ou em qualquer outro país privilegiado. Se dois dinamarqueses morrem ou são mortos na África ou Síria ou onde quer que seja, de repente isso é uma grande notícia. Você fica tipo: “Oh, meu Deus. Eles eram dinamarqueses!!”.
Quero ajudar as pessoas na Europa a se relacionarem melhor com essas partes do mundo. É por isso que estou tão envolvida com instituições de caridade e ONGs. A maioria das pessoas na Dinamarca me conhece. Então, se eu for para o Quênia e me virem lá, elas ficarão tipo: “Oh, lá está a Nadia”. Ao veem o que está acontecendo, elas dirão: “Oh, meu Deus, olhe! Esse povo está sofrendo!”.
E é isso que eu pretendo com este artigo. Se você não me viu na televisão, se não conhece minha história, se não sabe como é fugir da guerra (e, por Deus, espero que não), aperte o cinto de segurança .
Esta não é uma jornada agradável, e eu não desejaria isso a ninguém.
Mas acontece em uma parte do mundo onde muitos refugiados estão vivendo agora.
De certa forma, essa história não é realmente representativa sobre a maioria dos refugiados. Eu deveria ser uma das privilegiadas, pois morava em uma área “segura”.
No entanto, passei minha infância basicamente fugindo de coisas que poderiam me matar.
Como você já deve saber, o Afeganistão está em guerra civil há muito tempo. No fim da década de 1990, quando eu era criança, o Talibã tomou a capital Cabul e assumiu o controle do país. Meu pai, Rabani Khan, era um general do Exército Nacional Afegão (ANA) e um cara muito influente. Então, por causa disso, nossa família – eu, minhas quatro irmãs e minha mãe, Hamida – morávamos em um condomínio fechado em Cabul, perto de onde ele trabalhava. Ninguém podia entrar ou sair sem passar por uma inspeção de segurança. Era como uma bolha onde nos sentíamos protegidos.
Sabíamos que, fora dali, tudo poderia acontecer. O Talibã não permitia que mulheres fossem à escola ou saíssem sozinhas. Tinha muita gente na rua que queria nos sequestrar para extorquir dinheiro do meu pai. Por isso, sempre obedecemos às ordens. Sempre. Em casa, sim, claro, todo mundo era rebelde. Mas, assim que saímos, sabíamos que a coisa era séria.
É muito simples, na verdade. Quando você é criança e alguém te diz: “NÃO PASSE DESTA LINHA, SENÃO VOCÊ VAI MORRER”, você fica tipo, ok, legal. Eu vou ficar.
Nossa família foi fortemente influenciada pela cultura afegã. O status social é muito importante lá – você quer mostrar às pessoas que está indo bem. Então, se você tem visitas em casa, mesmo se for muito pobre, você servirá a melhor comida que tiver. Além disso, as crianças não devem falar durante o jantar. Isso é falta de educação. E nossa mãe só nos deixava brincar do lado de fora depois do pôr do sol, pra gente não ficar com a pele escura. É verdade! Basicamente, pele escura significa que você trabalha debaixo do sol o dia todo, e é isso que as crianças pobres fazem. A mesma coisa se for magro! Se você é gordo, está saudável e levando uma boa vida. Mas, se você é magro, é como “oh, não, pobrezinho!”.
É o tipo de pensamento que se tinha na Europa da Idade Média, que o Afeganistão ainda não superou. Então, sim, minha mãe foi muito afetada por essa cultura. E ela ainda é! Mesmo agora, às vezes, quando ela me vê e eu estou bronzeada – e eu pego bronze com muita facilidade, o que eu AMO, diga-se de passagem –, ela toma um susto: “MEU DEUS! O QUE ACONTECEU?! POR QUE VOCÊ NÃO ESTÁ USANDO PROTETOR SOLAR?!?!” Hahaha!
Minha mãe era quem cuidava de nós, porque não víamos nosso pai com muita frequência. Ele estava extremamente ocupado. Era estranho, porque, de um lado, ele era um militar de alta patente, mas, do outro, quando não estava muito cansado, ele brincava com a gente, e a gente podia pular nele e agir como crianças. Ele parecia um agente da CIA ou um espião da KGB, sabe? De verdade!! Porque ele era super inteligente, super alto, super atlético. Às vezes, quando a gente acordava, ele estava fazendo flexões em frente às janelas da sala. Como se isso já não fosse o suficiente, ele pegava uma das minhas irmãs mais novas e colocava nas costas. Lá fora, tínhamos um canteiro de grama enorme onde ele fazia mais exercícios nas barras paralelas. Agente da CIA, estou te dizendo...
Ele também era super esportista. Costumava jogar pela seleção afegã de hóquei na grama e também adorava futebol. Tínhamos essa bola pontilhada em preto e branco, e eu lembro de um dia em que ele descobriu que estávamos jogando queimada com ela. Ele veio e disse: “Não, não, não. Tem que usar os pés, driblar assim, chutar assado...” Parece que foi há 100 anos, mas essa é uma das poucas memórias que ainda tenho daquela época e que vou guardar pra sempre.
Para o mundo, ele era o grande, importante e influente GENERAL Rabani Khan.
Para nós, ele era apenas Padar. Papai.
Um dia, em 2000, ele foi levado para se encontrar com um dos ministros. O Talibã não gostava de pessoas que tinham influência, e muitas dessas pessoas começaram a desaparecer. Depois que meu pai foi àquela reunião... Bem, ele não voltou mais.
Por muito tempo não tive ideia do que estava acontecendo. Eu tinha apenas 12 anos. Eu só sabia que minha mãe estava muito preocupada. O que você precisa entender é que, quando sua vida está em perigo, ninguém se dá ao trabalho de se sentar com as crianças – cinco, no caso da minha mãe – e explicar as coisas. Assim como na mesa de jantar, você não dá pitaco em nada. Você apenas obedece às ordens. Mas eu sabia que algo grande havia acontecido. Normalmente, ouvíamos as conversas dos adultos, como “oh, eu vi a mão de uma mulher sendo cortada na rua”. Foi a mesma coisa agora com meu pai. Minha mãe estava tipo: “Que estranho! Já faz muito tempo que ele saiu”.
Logo comecei a ver o pânico no rosto das pessoas: minha mãe, minhas tias... A vida do meu pai estava em perigo. Esse medo, essa incerteza, ficou comigo por muito tempo. Acho que é a pior sensação que você pode sentir na vida. Eu não me importo com o perigo, porque você geralmente sabe qual é o perigo. Aquilo que é incerto, por outro lado...
O que tornava tudo pior é que meu pai era esse tipo de cara do James Bond que podia fazer qualquer coisa, sabe? E no meu cérebro isso simplesmente não fazia sentido. Como um cara assim pode desaparecer? Mesmo anos depois, quando soubemos que ele havia sido executado, não acreditei que algo tivesse acontecido com ele. Eu costumava acreditar que o via chegar em casa. Às vezes, eu pensava: Ah, ele talvez apenas... Nos deixou por outra pessoa? Sempre achei que ele vai voltar, vai voltar, vai voltar...
Então, um dia, alguém me disse: “Acho que é apenas um mecanismo de defesa. É assim que você supera as perdas. Você acha que as vê em todos os lugares”.
Putz, só aí caiu a ficha, mesmo.
Ainda fico emocionada ao falar sobre isso. Eu não choro com frequência, mas... Sim... Isso ainda me deixa muito mal.
Enfim, sim... Isso foi em 2000. Minha mãe teve que decidir o que fazer. E o único instinto que realmente importava era a sobrevivência. Tudo em seu corpo, a maneira como você é constituído, luta ou foge, tudo gira em torno de uma coisa: como eu faço para sobreviver? E, no final, minha mãe disse: “Não vamos permanecer aqui de jeito nenhum, porque nenhuma de nós vai ficar viva”.
Então ela vende tudo que tem – as duas casas, o apartamento, os carros, as joias, tudo – e nos diz: vamos embora na noite seguinte. “Não vá lá fora. Não conte a ninguém. Se as pessoas descobrirem, estaremos mortas.” Era esse o clima em casa. Pego duas sacolas esportivas e encho de roupas. Naquela noite, entramos em uma minivan e viajamos na escuridão por não sei quantas horas. Chegamos a Karachi, no Paquistão, onde nos acomodamos em um minúsculo apartamento de dois quartos e esperamos por boas notícias. Dia sim, dia não, recebemos a visita de um paquistanês gordo e baixinho com bigode, correntes de ouro e o tipo de roupa branca tradicional que se usa em muitos países islâmicos. Ele vai nos atualizando sobre a situação, porque, naquela época, não tinha telefone, nem Internet, nem nada. Um dia, ele nos informa que tem quatro passaportes falsos que se encaixam em nossos perfis, o que significa que minha mãe e três das cinco filhas podem ir. “De jeito nenhum”, ela diz.
Cerca de um mês depois, ele finalmente chega com passaportes para todas. Na manhã seguinte, nós seis entramos em sua van, vestidas com roupas paquistanesas – no papel, agora somos uma família paquistanesa. Quando saímos, minha mãe avisou: “Ninguém fala porra nenhuma”. Chegamos ao aeroporto e esse cara está andando na nossa frente, tipo... Numa comédia que nem Treze Homens e Um Novo Segredo, onde você tem um grupinho dando na vista, todos andando juntos na mesma direção sem dizer uma palavra, mas todo mundo sabe o que está acontecendo? É bem assim. As pessoas no aeroporto sabem o que está acontecendo, mas ninguém faz nada porque recebeu muito dinheiro por isso. Assim, passamos pela imigração e embarcamos (primeira vez que andei de avião. Eu estava ligeiramente empolgada, não vou mentir!).
Aterrissamos em Milão, Itália. Somos levadas a um casebre de porão sombrio, o tipo de lugar onde a metade inferior da janela fica abaixo do nível do piso. Temos duas camas, um sofá-cama, uma mesa suja, um banheiro fedido – é absolutamente NOJENTO – e uma pequena televisão que exibe saltos de esqui no Eurosport. O lugar inteiro está tão podre que apenas ficamos sentadas em um canto, sem conseguir dormir.
Dois dias depois, dois caras com aparência do Leste Europeu vestindo calças jeans e jaquetas bomber entram em nosso casebre e dizem: “É isso”. Esses são os caras com os quais lidamos agora. Eles nos levam num carro velho e param perto de um estacionamento cheio de caminhões. Um dos rapazes dá a letra: “Quando eu disser, você corre para aquele caminhão”. E é isso que fazemos. Subimos na traseira do caminhão, que começa a andar. Passamos dias sentadas na escuridão, ouvindo o motor e o vento. Temos uma garrafa de água e algumas torradas, mas ninguém bebe ou come muito, porque não temos banheiro. De repente, o caminhão para. Um cara abre a porta dos fundos e grita: “SAIA! SAIA! SAIA!”. Nós saímos. O cara desaparece. Nós, crianças, não temos ideia do que está acontecendo. Tudo o que nossa mãe nos diz é que vamos para Londres porque temos família lá. Tinha imaginado Londres de forma diferente, mas beleza.
Eu estava morrendo de fome.
Depois de algumas horas, minha mãe encontra um senhor que está levando o cachorro pra passear e pergunta: “Ei, onde estamos?”.
Ele diz: “Uhh... em Randers”.
Acontece que não estamos em Londres.
Estamos em uma pequena cidade na Dinamarca.
Na verdade, estamos em choque, mas ninguém realmente se importa. Foda-se, estamos seguras. Estamos juntas. Encontramos uma delegacia, onde um policial se senta com minha mãe, confere seus documentos e faz anotações. Ele entende a situação. Depois de um tempo, ele se aproxima de nós, crianças, e diz: “Ouvi dizer que vocês estão com fome?”. Não falamos uma palavra de dinamarquês ou inglês, mas podemos ver que ele está esfregando a barriga – o símbolo internacional de comida, haha! Apenas acenamos com a cabeça, como se disséssemos SIM, NÓS ESTAMOS! Ele nos leva em sua viatura até um quiosque, onde compra bananas, leite e torradas. Eu devoro a comida. Ainda é, provavelmente, a melhor refeição que já tive.
O policial, então, nos coloca em um trem para o centro de Sandholm, a maior estação de acolhimento para requerentes de asilo na Dinamarca. É como uma prisão: segurança máxima, cercas altas, arame farpado. Eles mostram nossos quartos, que têm beliches em estilo militar e armários azuis de metal. Eles também nos dão cinco pizzas congeladas. Eu nunca tinha visto pizza congelada antes. Não é uma especialidade no Afeganistão!! Nos disseram para colocá-las no forno por algum tempo. Mas elas queimam, não vão mentir. Que porra é essa?, eu penso.
No acampamento, vemos pessoas de todos os lugares: Afeganistão, Somália, Congo, Iraque, Armênia, Rússia. Você escolhe, elas estão lá. Vendo algumas delas, eu fico tipo: Puta merda, esse cara parece um assassino. Como se eles tivessem cicatrizes no rosto ou levado um tiro na cabeça. Um dia ouvimos que alguém no acampamento foi esfaqueado. Não ficamos surpresas.
Enquanto estamos lá, a polícia verifica nossas informações. Sabemos que se eles pensarem que somos criminosas ou algo assim, seremos enviadas de volta. Quase todas as manhãs, escutamos policiais batendo nas portas para deportar pessoas. Alguns vão voluntariamente, outros lutam ou tentam escapar.
Depois de dois meses, somos transferidas para um campo de refugiados bem mais agradável, perto de Aalborg. Nesse amontoado de barracas, temos nossos próprios quartos e uma cozinha compartilhada. Para a maioria dos dinamarqueses, seria, na melhor das hipóteses, básico.
Para nós é o paraíso.
O acampamento é seguro e aberto. Existem famílias lá, crianças da nossa idade. Passamos os dias em uma escola de idiomas, das 9h às 13h, e então nos reunimos em um pequeno gramado esburacado e brincamos de esconde-esconde, ou jogamos futebol com dois gols totalmente destruídos. E eu amo isso. Eu amo CADA parte disso. Passo horas e horas tentando driblar os meninos. Começo a perceber que herdei parte da veia esportista do meu pai. Uma das minhas irmãs mais novas, que nem mesmo se interessa por esportes, também se torna atleta, com músculos bizarros e supervelocidade. (Hoje todas as minhas irmãs se tornaram esportistas. Bem, exceto uma delas, que gosta de fazer compras, se é que isso conta como um esporte).
Conforme as semanas se transformam em meses, noto como todos no acampamento estão se unindo. São tantas nacionalidades, mas todos temos algo em comum: sofremos muito e estamos preocupados com o que vai acontecer com a gente. Minha mãe vira a melhor amiga de uma senhora do Iraque chamada Fátima, que fugiu do regime de Saddam Hussein. Nenhuma delas fala uma palavra de inglês, mas elas têm conversas profundas por meio de algum tipo de linguagem de sinais improvisada. Genial!
Mas também noto que minha mãe está perdendo muito peso. Ela perdeu o marido, deixou sua casa, está cuidando de cinco meninas e não tem ideia do que vai acontecer. Nós vamos ficar aqui? Vamos ser mandadas de volta?
Todas as manhãs, os refugiados checam no escritório se receberam uma carta, que diz se você pode ficar na Dinamarca ou se será deportado. Sempre que uma família tem permissão para ficar, todos, todo o acampamento comemora, e há uma festa na cozinha com lanches, música e dança. Isso mostra o quanto a gente era unido.
A nacionalidade não é tão importante quanto os direitos humanos básicos.
- Nadia Nadim
Um dia, depois de cerca de sete meses no acampamento, faço uma longa caminhada com Diana, uma das minhas irmãs mais novas, até uma reserva natural atrás do campo de futebol. Conversamos sobre a vida enquanto caçamos framboesas, até que a Diana diz:
– O que vai acontecer conosco?
– Não sei.
– Imagine se a gente puder ficar...
– Uau, isso seria tão incrível.
– Será então que conseguiremos jogar mais futebol?
– Acho que sim...
Quando voltamos para o acampamento, todos estão reunidos na cozinha. Parece uma festa. Quando entramos, o pessoal nos dá os parabéns. Mamãe está chorando. A Fátima, também.
Mais cedo, naquele dia, chegou uma carta para nós no escritório. Fomos aceitas.
E foi assim que meu novo capítulo na Dinamarca começou.
Foi assim que ganhei minha vida.
Esta é apenas minha história. Outros refugiados chegam à Europa com seus próprios traumas e perdas. Alguns serão deportados. Muitos outros nem chegarão. Alguns serão mortos antes de chegarem aqui. Mas eu quero ressaltar que, mesmo os refugiados que são bem-vindos em um novo país, podem não ser necessariamente aceitos.
Quando vim para a Dinamarca, nunca me encaixei bem. Nem mesmo no meu time de futebol. Normalmente, as jogadoras dinamarquesas seguem as regras, fazem tudo o que o treinador manda e abaixam a cabeça. Mas agora minhas companheiras tinham que jogar com essa nova garota do Afeganistão que seguia seu instinto e jogava com ousadia. Recebi muitos olhares tortos. Por exemplo, quando estávamos no aquecimento, eu pegava a bola e ficava brincando de driblar enquanto a gente corria. E algumas das minhas companheiras de equipe falavam: “Olha ela, tá se achando”. Até o meu técnico, um cara que eu via como meu mentor, me dizia que eu precisava agir mais como as outras garotas. “Por que você não pode ser como ela?”, ele me questionava. Sempre tive na cabeça que o que eu estava fazendo era errado.
Depois de um tempo, fiquei mais integrada, comecei a jogar pela seleção dinamarquesa e tal – algo que, acredite, me dá muito orgulho. Mas se cavar um pouco mais fundo, ainda não me sinto verdadeiramente aceita.
É difícil de explicar, mas basicamente você sempre será visto como um estranho. Fato. Minhas irmãs e eu ainda somos vistas como as imigrantes. E isso se aplica a muitos refugiados. Se as pessoas puderem escolher entre seus semelhantes e alguém que vem de uma região diferente e que parece diferente ou tem um sobrenome diferente, elas irão com quem conhecem, saca? Eu senti isso na maior parte da minha vida. Minha irmã mais velha, Giti, tinha muito, muito, muito talento – tecnicamente, ela era uma jogadora muito melhor do que eu. Mas quando viemos para a Dinamarca, essa sensação de não nos sentirmos parte do país a destruiu.
Felizmente, não sou realmente afetada por isso. É simples: eu já passei por tanta coisa, estive tão por baixo, que nada do que vá experimentar daqui em diante chega perto disso. Aceitei o que aconteceu com meu pai. Ainda é doloroso, mas eu superei. E agora eu penso: Algo pior do que isso pode me acontecer? Eu não acho que sou invencível, mas é como “puta merda, você precisa de um exército inteiro pra me derrubar”.
Também estou acostumada a ter de me provar mais do que qualquer outra pessoa ao meu redor. Essas são as cartas que distribuíram pra mim e, quanto mais velha fico, mais aprendo sobre como o mundo funciona.
Mas isso não significa que devemos aceitar tudo o que é injusto.
Embora eu jogue pelo Paris Saint-Germain agora, em uma cidade multicultural, ainda fico puta quando vejo injustiças. Portanto, espero que minha história tenha dado algumas lições sobre o que é ser um refugiado e não ter nada. Também espero que você concorde comigo quando digo que a nacionalidade não é tão importante quanto os direitos humanos básicos. Afinal, o mundo é para todos.
Talvez isso pareça otimista demais, mas espero que o período turbulento em que estamos – com a pandemia, o assassinato de George Floyd e os protestos em todo o mundo – nos ensine algo. Quando arrancam tudo de nós, o que nos resta é compaixão e bondade. Depois do COVID-19, mais pessoas terão experimentado uma crise real e, portanto, podem ter mais empatia pelos refugiados de guerra. Talvez a cobertura da mídia sobre os refugiados se torne mais positiva também, de modo que mais pessoas dirão: “Tudo bem, vamos ajudar essas pessoas. Elas podem dar algo de bom em troca ao nosso país”.
Esperançosa que sou, creio que este período pode reacender um senso de compaixão, não apenas nos políticos, mas em todos nós. Mesmo que isso leve somente a pequenos atos de humanidade, como perguntar como seu vizinho está. Essas pequenas coisas – um favor, um sorriso, uma refeição para alguém que está com fome – podem ter um impacto enorme na vida das pessoas. Eu mesma experimentei isso.
Sinceramente, acredito que uma grande mudança seja possível. Os humanos são capazes de muito mais do que você jamais poderia imaginar. Não estou dizendo que as pessoas devam sacrificar seus próprios meios de subsistência para ajudar os outros. De jeito nenhum. Antes, você tem de garantir que está bem, claro.
Mas se você tem recursos e energia para ajudar e está vendo alguém deitado no chão na sua frente, eu espero que estenda a mão.
Porque, no fim das contas, o que nos torna humanos não é o dinheiro. Não é conforto. Não mesmo.
É a nossa capacidade de compreender o sofrimento de outros seres humanos.