Precisamos Falar Sobre o Catar

Joosep Martinson/UEFA via Getty Images

A todos os jogadores, treinadores e federações de futebol.

Para todos os torcedores e jornalistas que se importam com o jogo.

Na verdade, para qualquer pessoa que simplesmente se preocupa com os direitos humanos.

Continue falando sobre a Copa do Mundo do Catar.

Continue questionando. Continue expressando seu apoio aos operários imigrantes.

Escreva, poste ou tuíte sobre eles. Compartilhe notícias. Fale. Coloque mais pressão sobre o Catar e a FIFA.

Por quê? Porque funciona. E os trabalhadores — acredite em mim —, eles precisam disso.

Nos últimos dois anos e meio, tenho empreendido uma jornada pessoal para aprender mais sobre a situação no Catar. Não sou um especialista, mas, como capitão da seleção finlandesa, sei que em breve poderei atuar em estádios que custaram a vida de trabalhadores. Nós, jogadores, seremos a face pública de um torneio sobre o qual não temos controle. Por isso, queria saber mais — até falei diretamente com os operários imigrantes. E eu posso te dizer uma coisa: eles se sentem encorajados pelo fato de que alguém os apoiar.

Eu sei que estou escrevendo este texto tarde demais. Ainda estou pensando: Poxa! Não poderíamos ter abordado o assunto cinco anos atrás? Talvez a gente poderia ter mudado algumas das decisões que foram tomadas e melhorado as condições para os trabalhadores.

Talvez a gente poderia até ter salvado vidas.

F***! Acordamos tarde demais. Eu acordei tarde demais.

Selecao Finlandia Catar trabalho escravo
Anton Vaganov/Pool/Getty Images

Mas ainda podemos melhorar vidas. Ainda podemos ter certeza de que melhores decisões serão tomadas no futuro. Para fazer isso, porém, precisamos manter os holofotes no Catar. Os torcedores precisam falar sobre isso, os jornalistas precisam escrever sobre isso, as organizações precisam destacar isso. E os jogadores realmente precisam falar sobre isso. Não se trata apenas do Catar, mas também de como vemos outros torneios internacionais e os países-sede.

Sei que isso é difícil por muitos motivos. Pessoalmente, comi bola durante muitos anos. O que virou a chave para mim foi quando partimos para um período de treinamentos com a Finlândia no Catar, em janeiro de 2019. Um dos nossos jogadores, Riku Riski, se recusou a viajar por motivos éticos. Foi a primeira vez que ouvi alguém recusar uma convocação por causa disso. Fiquei surpreso, mas também sabia que Riku era um sujeito muito bom — na verdade, ele é meu companheiro de time agora no HJK Helsinki. Então eu comecei a pensar: O que não estou enxergando aqui?

Eu não sabia o que realmente estava acontecendo no Catar. Costumava olhar para grandes entidades como a FIFA e presumir que elas sabem o que estão fazendo. Então, quando o Catar conseguiu, tive certeza de que os dirigentes haviam feito as devidas apurações. Claro, parecia um pouco estranho escolher um pequeno país no meio do deserto para o maior torneio de futebol do mundo. Mas vai que eles têm um plano para melhorar a sociedade de alguma forma, sei lá…

Daí comecei a ler sobre violações dos direitos humanos e a exploração de trabalhadores imigrantes. Eu fiquei assustado. E ainda assim, por um tempo, tudo era muito superficial para mim. Eu estava ciente disso, mas, de alguma forma, não me dei conta do que realmente significava.

Eu desconfio que muitas pessoas podem se identificar com isso. Muitos ainda estão dormindo.

Todos nós sabemos que, se um jogador fala sobre a política de certos países, ele ou ela pode ter problemas.

Tim Sparv

É tão fácil se perder nas preocupações de sua própria vida... Quando fomos para o Catar, eu estava obcecado por muitas outras coisas. Como podemos melhorar nossa equipe? Qual era o melhor lugar para treinar em janeiro? Eu tava naquela bolha, sabe? Parece loucura que, enquanto operários de outros países estavam sofrendo e até morrendo no Catar, eu me preocupava com o espaço entre o meio-campo e a defesa. Mas todos nós tendemos a colocar nossas próprias vidas em primeiro lugar, né? É um instinto natural.

Felizmente, Riku viu o cenário mais profundo. Como a imprensa nórdica já tinha escrito muitas coisas sobre o Catar, eles começaram a nos fazer perguntas.

“Por quê você está aqui?”

“Por que você não faz o mesmo que Riku?”

Essas eram perguntas difíceis de responder. Esperam que você aborde todos esses tópicos delicados diante das câmeras como um diplomata ou um político. Alguns dos jogadores estavam ali pela primeira vez — tão empolgados como crianças por vestir a camisa da seleção e, de repente, foram forçados a responder perguntas sobre um país estrangeiro, suas formas de lidar com os trabalhadores imigrantes e seus respectivos direitos.

“Você está ciente de quantos trabalhadores imigrantes morreram no Qatar?”

Foi desconfortável para todos nós. E eu percebi que não tinha boas respostas. Na verdade, novas perguntas começaram a surgir na minha cabeça.

É realmente isso que devemos fazer?

Por estar aqui, não apoiamos indiretamente um regime que não deveríamos apoiar?

Por isso, nós, jogadores, e a nossa federação de futebol demos uma boa olhada no espelho e decidimos não fazer mais excursões ao Catar. Mas eu ainda me sentia desconfortável.

Claramente havia algo importante acontecendo. E eu decidi me aprofundar.

Trabalho escravo Copa do Mundo Catar
Hassan Ammar/AP Photo

Para saber mais, entrei em contato com a FIFPRO, organização que representa mais de 65.000 jogadores de futebol profissionais em todo o mundo. Eles têm sido fantásticos. Me deram muitas informações sobre as leis do Catar, as reformas recentes e como é a vida dos trabalhadores no país. Eles também me ajudaram a entender o que realmente se esconde por trás das manchetes globais. Você ouve falar de salários não pagos, relações de trabalho escravo e um desrespeito de muitos empregadores pelas reformas que foram aprovadas.

Há cerca de duas semanas, a Anistia Internacional concluiu que o Catar não investigou devidamente as mortes de milhares de trabalhadores imigrantes na última década e que a sua omissão impediu que as famílias das vítimas fossem indenizadas. Em fevereiro, o The Guardian informou que mais de 6.500 trabalhadores morreram no Catar desde que o país recebeu o direito de sediar a Copa do Mundo, em dezembro de 2010 — e eram trabalhadores de apenas cinco países: Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka.

Aparentemente, um número significativo deles estava lá por causa da Copa do Mundo. Como você pode ler isso e ainda ficar indiferente?

Em agosto, a FIFPRO me colocou em contato direto com alguns trabalhadores do Catar por meio de uma conferência online. Essa conversa realmente abriu meus olhos. O Catar disse que melhorou suas leis trabalhistas. Você lê isso e pensa: Oh, maravilha! Mas, naquela reunião, ficou claro que essas leis não estão sendo bem implementadas. O que os trabalhadores querem agora é que a nova legislação seja devidamente cumprida, com a garantia de que esses direitos permanecerão além de 2022.

Tive uma conversa com uma mulher que realmente tocou meu coração. Ela adorava ajudar seus colegas de trabalho, mas também estava revoltada e com raiva. Ela me contou sobre ter de trabalhar 16 horas por dia sem folga. Ela também disse que, se uma trabalhadora tivesse uma queixa, a polícia sempre ficaria do lado do empregador. Estamos falando aqui sobre coisas como denúncias de estupro. São acusações graves. No entanto, essas mulheres não estão sendo levadas a sério.

Isso foi brutal de escutar. Mesmo após a última reforma trabalhista, não vamos pensar por um minuto que as coisas vão bem no Qatar. Ainda há um longo caminho a percorrer.

Mais de 6.500 trabalhadores morreram no Catar desde que o país recebeu o direito de sediar a Copa do Mundo.

Depois que conversamos, fiquei feliz por ter pelo menos me envolvido nessa discussão. Mas também me senti impotente, porque gostaria de fazer muito mais.

Por que estou nesta posição privilegiada e esses trabalhadores não?

Eu realmente acredito que a vida é uma loteria, sabe? Tive a sorte de crescer na Finlândia. Os trabalhadores no Catar estão dedicando muito mais horas ao trabalho do que nós nos países nórdicos, mas é muito mais fácil para nós levar uma vida digna. Nós recebemos o bilhete premiado.

É uma tragédia ouvir falar de mortes e lutas ligadas ao futebol, esse jogo que todos amamos e que deveria melhorar vidas. Ainda tenho tantas dúvidas sobre por que a FIFA concedeu ao Catar a Copa do Mundo. Como um grupo tão pequeno de pessoas poderia tomar uma decisão que afeta a vida de milhões?

Onde estavam os torcedores? Os atletas? As ONGs?

Onde estavam os especialistas em direitos humanos?

Por que todas essas questões sociais foram ignoradas?

Agradeço que algumas coisas tenham mudado na FIFA desde então. Muitas das pessoas que votaram no Catar, aquelas que subornaram e aceitaram subornos, foram banidas. Antes de definir a sede da Copa do Mundo de 2026, a FIFA disse que levaria os direitos humanos e a proteção ambiental em consideração durante o processo de escolha. Tornou públicos documentos como o relatório de avaliação de candidaturas. Então, parece que eles estão tentando arrumar a casa. Eu espero que isso aconteça, de fato.

Tim Sparv carta The Players Tribune Finlandia
TF-Images/Getty Images

Mas eles ainda podem dar a nós, jogadores, um papel maior. Somos essencialmente o produto pelo qual os países estão concorrendo e rende uma fortuna a FIFA em direitos de transmissão. Mas não temos nenhuma palavra a dizer sobre onde a Copa do Mundo será disputada. Ninguém se preocupa em nos consultar. Descobrimos no noticiário da TV. Oh, que coisa, nós vamos jogar no Catar.

É como se estivéssemos do lado de fora gritando para esses caras: “Ei! Por favor, deixe a gente entrar! Por favor, deixe a gente saber o que está rolando!”. É muito frustrante.

Eu só queria que mais atletas falassem sobre isso.

Nós, jogadores de futebol, não precisamos ficar em silêncio como no passado. Temos redes sociais, temos plataformas como o The Players’ Tribune, temos a FIFPRO e nossos sindicatos locais que nos apoiam. Podemos publicar nossas ideias sempre que desejarmos e, quando o fizermos, a imprensa vai nos repercutir. Os torcedores e o público em geral vão ler. Temos mais influência do que nunca — só precisamos utilizá-la.

Não espero que muitos jogadores jovens deem um passo à frente. É difícil para um garoto de 17 anos sair direto da base para jogar diante de 50.000 pessoas. Nós os jogamos na jaula do leão e esperamos que sobrevivam. É uma loucura. 

Também respeito o fato de nem todo jogador querer falar sobre esses assuntos. Parte dos atletas e protagonistas do espetáculo sempre vai querer se ater ao futebol.

Por fim, existem consequências. Todos nós sabemos que, se um jogador fala sobre a política de certos países, ele ou ela pode ter problemas. Pode nem ser com os donos ou dirigentes de clubes. Pode ser com um grande patrocinador cujos interesses foram prejudicados.

Pessoalmente, nunca tive problema desse tipo, porque sempre joguei em clubes muito sensatos, mas conheço jogadores que sabem que estarão em apuros se falarem sobre questões como o Catar. Eles têm medo.

Sempre haverá uma reação, não importa o que você faça. Quando a seleção finlandesa se ajoelhou no gramado, eu recebi mais ofensas do que nunca no Twitter. Mas isso realmente não me incomodou, porque nos ajoelhamos como parte de uma campanha antirracista e era importante que participássemos. Eu sei que a maioria dos finlandeses apoia a causa. Se uma parte menor da sociedade discorda, faremos do mesmo jeito.

Portanto, eu incentivo outros jogadores a serem corajosos. O Catar não é um tema político, mas humanitário. No mínimo, fale sobre isso. Atraia a atenção das pessoas. Dizer qualquer coisa é muito melhor do que não dizer nada.

Temos mais influência do que nunca — só precisamos utilizá-la.

Tim Sparv

Eu sinto que nós, na Europa, estamos ficando pra trás em relação aos Estados Unidos no que diz respeito ao ativismo dos atletas. O que LeBron James e Megan Rapinoe têm feito é incrível. Eu gostaria de ver mais disso aqui, especialmente entre os grandes nomes do esporte. Eu sou apenas um zé-ninguém da Finlândia. Imagine se todos nós começássemos a falar sobre assuntos como o Catar e muito mais?

Entendemos quanto poder nós temos como jogadores de futebol? Seria uma grande virada de mesa, com certeza.

Eu tenho que aplaudir Marcus Rashford. Ele é tão jovem — eu era apenas um moleque alienado quando tinha a idade dele —, mas já ajudou a mudar o seu país. Antes ele era uma estrela do Manchester United. Agora ele se tornou um ícone. Espero que os jogadores olhem pra ele e digam: Não devo fazer mais também?

Ainda temos o goleiro da Hungria, Péter Gulácsi, que se manifestou contra a lei húngara que efetivamente proíbe casais LGBTs de adotar crianças. Ele sabia que seria criticado por um monte de gente — e ele foi —, mas se posicionou mesmo assim. Para mim, isso, sim, é ter personalidade e coragem.

Estamos discutindo o que podemos fazer na Finlândia. Pessoalmente, não acho que o boicote seja a solução agora. Não traria nenhuma mudança positiva para os trabalhadores do país — muito pelo contrário. Algumas pessoas dirão que não estamos fazendo o suficiente, e essa é uma opinião justa. 

Mas o que podemos fazer é manter o debate. Em março, a federação finlandesa de futebol divulgou uma carta aberta a cinco outras federações nórdicas pedindo à FIFA que abordasse a situação dos direitos humanos no Catar em seu congresso. Cinco dias atrás, as seis federações enviaram outra carta exigindo da FIFA que cobre o Catar sobre as investigações das milhares de mortes relatadas pela Anistia. A Noruega usou camisas exigindo respeito pelos direitos humanos. Alemanha, Dinamarca e Holanda fizeram o mesmo. São atletas poderosos que se manifestam ao vivo no horário nobre da TV. É o tipo de coisa que precisamos.

Alemanha protesto direitos humanos Catar
TOBIAS SCHWARZ/Getty Images

Acho que, neste momento, mais equipes estão pensando: O que podemos fazer? Podemos fazer mais do que apenas vencer jogos de futebol? Podemos ajudar pessoas que não são tão privilegiadas quanto nós?

Não vamos esquecer o que vai acontecer após o torneio. A FIFA está cobrando mudanças tangíveis. Então, o sistema de kafala será abolido para sempre? As reformas serão implementadas em todo o país? E depois de 2022, como fica? Os trabalhadores terão seus direitos básicos garantidos? Normalmente as pessoas esquecem do país anfitrião quando a Copa termina. Isso não pode acontecer aqui.

Também precisamos ter certeza de que todos saibam sobre o que está acontecendo agora. Vamos despertar as pessoas. Tenho certeza de que há muita gente na Finlândia e várias outras partes do mundo que não tem ideia do que acontece no Catar.

O governo catari lê essas reportagens? Eles são afetados por isso? Eu creio que sim. Eles já mudaram suas leis, e isso não teria acontecido sem a pressão política internacional. Se mais jogadores e seleções participarem, fortaleceremos o legado e o impacto social que a Copa pode ter no Catar. Estou certo disso.

Quando falei com os trabalhadores, eles ficaram muito felizes com o nosso envolvimento. Eles reiteraram que devemos continuar fazendo barulho sobre isso, continuar apoiando e defendendo seus direitos como trabalhadores e como seres humanos.

Sendo assim, eu encorajo cada jogador que participa dessas Eliminatórias a pelo menos pensar sobre como os trabalhadores imigrantes estão sendo tratados e como suas famílias estão sendo afetadas. Pense no privilégio que temos como jogadores e no poder de nossas plataformas. Esses trabalhadores não têm a mesma sorte, mas podemos apoiá-los contando suas histórias e levantando nossas vozes juntos.

Se você tiver coragem, se informe, se envolva, fale. Fale com um jornalista, escreva um tuíte, poste algo no Instagram. Entre em contato com representantes dos trabalhadores, organizações de direitos humanos ou o sindicato do seu país e pergunte como você pode ajudar a gerar um impacto para os trabalhadores do Catar.

Talvez algumas pessoas abusem da boa vontade por levantar sua voz — elas provavelmente fariam isso de qualquer maneira. Talvez você tenha algumas mensagens para responder.

Mas, quando a história desta Copa do Mundo for escrita, você estará do lado certo.

Autografo Tim Sparv Finlandia

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