Levantar e Reagir

Lucas Seixas/The Players' Tribune
Em parceria com
Netshoes

“Lugar de macaco é na jaula, não nas Olimpíadas.” 

Essa foi uma das primeiras coisas que eu li logo após ser eliminada das Olimpíadas de Londres-2012.

Assim, um crime de racismo cometido em plena luz do dia, bem na minha cara, sem pudor, sem constrangimento, simplesmente porque eu não tinha vencido. 

Isso porque eu não tinha ganhado a tão esperada medalha para o Brasil. 

E não foi um caso só. 

Saí do tatame meio que arrastada pela minha treinadora. Eu não conseguia respirar direito, pensar direito, coloquei a minha vida inteira naquele momento e tudo tinha dado errado. 

Eu só queria um abraço, um carinho. Queria falar com a minha mãe. Chorar em silêncio. Mas quando eu peguei o meu telefone, havia milhares de notificações. 

Milhares. 

E eu nem conhecia tanta gente assim. 

Não eram meus amigos. Não era minha família. Era gente me atacando, me humilhando, ofendendo a mim e à minha família. 

Dizendo que a cor da minha pele determinava que eu nunca seria melhor do que ninguém. Que eu nunca seria nada. Nada.

Me chamando de vergonha para o meu país. 

Eu não conseguia respirar. 

Rafaela Silva Players Tribune
Lucas Seixas/The Players' Tribune

Até aquele momento, o que eu mais gostava de fazer na vida era colocar o meu kimono e representar o Brasil. Lutar por mim e por vocês. Lutar para dar alegria e orgulho para o meu povo. E agora tudo ruía, bem ali na minha frente. 

Nos meus primeiros Jogos Olímpicos... na segunda luta. 

Eu sabia que alguma coisa ia mudar em mim para sempre. Mudou. 

Eu saí daquela derrota, daquela eliminação, direto para um buraco. 

Eu disse ao Geraldo Bernardes, meu primeiro treinador, que se aquilo era o judô, eu não queria mais. Eu não podia. Aquilo tinha acabado comigo. 

Eu vim da Cidade de Deus, meus pais me colocaram para fazer judô porque eu era uma encrenca. Eu passava o dia metida em brigas de rua. Eu dava trabalho. Eu era aquela criança que os pais das outras crianças não queriam por perto. 

Nunca foi fácil. Mas até aquele dia, até aquele horrível 30 de julho de 2012, eu tinha superado tudo. Eu tinha tirado forças não sei de onde para seguir. 

Só que ali o chão se abriu. 

Eu me enfiei em casa, parei de treinar... Eu desisti. 

Justo eu, que até então não conhecia essa palavra. 

De novo: nasci na Cidade de Deus. Sabe aquelas famosas cenas do filme, que a galera não pode sair de casa, porque tá tendo operação policial? Sabe o que é perder o horário da escola por causa de um tiroteio? É isso. Nascer em um lugar assim te prepara para quase qualquer coisa. 

Mas eu não estava preparada para aquilo. 

Nada na minha vida tinha me preparado para aquilo, para um momento assim. 

E eu desisti. Eu desisti do judô e de tudo o que ele representava pra mim. 

Me joguei no sofá e o que eu fazia o dia inteiro era reviver na minha cabeça os instantes daquela luta, o momento em que eu fui desclassificada. As ofensas, a humilhação. Eu, acostumada a apanhar, não podia saber que um sentimento doía tanto. 

Rafa Silva judo Players Tribune
Lucas Seixas/The Players' Tribune

Mas eu sou a Rafaela Silva, e não foi por acaso que eu comecei a minha carreira no Instituto Reação. 

“Reação”. Olha a força dessa palavra. Olha o que ela significa. 

Resistência. Luta. 

E foi lá dentro mesmo do Instituto Reação que eu conheci a Nell Salgado, que é minha coach até hoje. E ela me disse: 

— Fecha os olhos. Imagina esse cenário. Olimpíadas aqui no Brasil e você assim, jogada no sofá. Sem preparo. Sem treino. Sem poder competir. Você assim, longe do tatame, porque largou tudo. É isso que você quer? É isso que você quer, Rafa?

Essa frase me bastou. E eu, que estava toda quebrada, fui colando os pedaços. E me lembrei de tudo.

Da menina que era tão competitiva, na pipa, no futebol, na amarelinha, que não parava de brigar na rua. Da menina que ali na Associação de Moradores da Cidade de Deus teve que escolher: dança ou judô. 

Eu queria futebol, mas esse era só para meninos. Se eu ficasse, era para treinar sem competir. 

Mas eu precisava competir. 

E eu não sabia dançar (ainda não sei, veja bem). 

Então aquela menina foi para o judô, junto com a irmã mais velha. Primeiro, na Cidade de Deus. Depois, com oito anos, no Instituto Reação. Foi ali que, depois do primeiro treino, o Geraldo Bernardes disse para o meu pai que nós duas éramos talentos brutos, que a gente ia treinar e chegar na Seleção Brasileira. 

Eu pensei: é um velho doido mesmo. Mas eu queria continuar brincando. 

Anota aí: eu sempre volto. E ninguém vai me derrubar.

Rafaela Silva

E a brincadeira ficou séria quando eu vi o Flávio Canto lutando o Mundial e os Jogos Pan-Americanos aqui no Brasil, em 2007. O Instituto colocou a gente dentro de um ônibus e pronto: assistir aquilo encheu meus olhos. 

Eu era uma menina. Me custou um pouco até que eu pudesse entrar nas competições. Com 12 anos eu disputei o Brasileiro no Rio Grande de Norte. Perdi. Com 13, eu ganhei, lá no Maranhão. Eu estava pronta para ir pro Pan-Americano na Venezuela, mas um menino quebrou meu braço no treino.

Entende quando eu digo que nada foi fácil? Uma sequência de quases e isso desgasta, isso consome a confiança. A coragem. Mas eu não parei. Até Londres 2012, nada tinha sido suficiente para me parar. Eu fui campeã mundial sub-20 com 16 anos. Em 2011 eu levei a prata no Pan-Americano de Guadalajara e no Mundial de Paris. Eu já tinha ajudado a treinar uma atleta para as Olimpíadas. 

Você vê? Todo o meu esforço, toda a minha história, me levavam até onde eu estava.

Eu pensava que tudo era para me preparar para Londres. Para me ajudar a carregar a minha medalha. 

Rafaela Silva Olimpiadas judo
Lucas Seixas/The Players' Tribune

Mas foi ali, numa sessão que eu nem acreditava que ia dar certo, com a Nell, uma coach, que eu entendi que eu estava me preparando era para o pós-Londres. 

Reação. 

Luta. Resistência. 

Um ano depois de Londres, sabe o quê?

Eu virava campeã mundial dentro da minha casa. A primeira brasileira a ser campeã mundial. Minha família na arquibancada, meus pais, que nunca tinham dinheiro para viajar e me assistir, gritando meu nome, vibrando por mim.

Eu podia sonhar de novo com as Olimpíadas, não podia?

E eu sonhei. E eu treinei. E, de novo, não foi fácil. 

Se fosse, não seria para mim. 

Olimpíadas no Rio de Janeiro, a minha casa. O meu chão. A minha história. 

A minha galera. 

Eu estava focada, confiante, muito feliz. 

Mas não vou mentir: uma parte de mim ainda tinha medo de viver o que aconteceu em Londres outra vez. 

De novo eu não aguentaria. 

Mas eu tinha que lutar. 

Quando eu olhei para a lista de classificação meu nome tava lá, com outras 17 atletas. 

Eu já tinha vencido 16 delas. Só uma que não, uma atleta sul-coreana. Eu resolvi: se eu ganhasse dela, ninguém me tirava aquela medalha. 

A luta com a Kim Jan-di era a minha segunda luta. Esse não foi exatamente o meu número da sorte em Londres, né? Mas eu, que não sei dançar, precisei entrar no ritmo. 

E sabe quem foi comigo? O Brasil inteiro. Eu juro, a torcida estava enlouquecida, não parava de gritar, de vibrar, de sacudir aquele lugar. Eles me levaram nas costas. 

Já viu como reação combina com redenção?

A minha última luta naquele dia foi com uma atleta da Mongólia que já tinha me vencido quatro vezes. Eu, só uma. Vi, pelo canto do olho, que ela sorria antes de entrarmos no tatame. Assim, posso estar errada, mas eu acho que ela estava tranquila. Confiante. Era só me vencer mais uma vez. A quinta, para entrar pra história. 

Mas não teve quinta vez. 

Todo mundo junto cantando o hino do meu país e eu desabei. Um choro que ficou guardado quatro anos, entalado na garganta.

Rafaela Silva

Eu entrei pra ganhar. Ela não era melhor que eu. Todo mundo aprende o judô do mesmo jeito. São as mesmas regras, os mesmos movimentos, até os treinos são parecidos. O que faz a diferença é o que você faz ali, naqueles quatro minutos. Eu tinha me preparado, conhecia bem a minha adversária. Eu não ia perder de novo. 

E eu sabia exatamente o que fazer quando ela começasse com aqueles irritantes chutes na minha perna. E eu fiz. Eu segurei a perna dela com o meu cotovelo. E pontuei. E segurei o placar até o fim. 

“Olê olê olê olá, Rafa, Rafa...” 

De novo: “olê olê olê olá, Rafa, Rafa...”

Acabou. O ouro. As pessoas gritando o meu nome. Redenção. 

O pódio, uma sensação de que não era verdade. Sabe quando você está vivendo uma coisa, mas parece que está assistindo de fora... Fora do seu corpo? Difícil acreditar que aquilo estava acontecendo. 

Mas aí passou uma mulher com a bandeja de medalhas. E colocaram a medalha de ouro no meu peito. 

E o hino começou e o hino parou, mas as pessoas não. Todo mundo junto cantando o hino do meu país e eu desabei. Um choro que ficou guardado quatro anos, entalado na garganta. 

O peso que saía das minhas costas e ia ali pro meu peito, em forma da medalha dourada que eu tanto sonhei. 

É até engraçado, porque depois que você realiza um sonho, fica um vazio, sabe?

Eu já era campeã olímpica, eu já tinha o Mundial. Eu já tinha provado pra todo mundo que lugar de Rafaela Silva era no tatame, sim. Então, de vez em quando, me faltava um impulso. Vinha aquela vontade de voltar pro sofá, sabe?

Mas aí eu voltava para aquele lugar que você já conhece: o meu passado. A Rafa menina se inspirando no Flávio Canto e em outros atletas. A diferença que tudo isso fez na minha vida. E eu segui porque eu sabia que podia fazer a diferença para outras pessoas. 

Rafaela Silva Brasil Olimpiada
Lucas Seixas/The Players' Tribune

Eu, que tinha sido inspirada, também queria inspirar. Eu não podia saber, mas ainda tinha muito para me acontecer. Eu estava feliz. Confiante. Talvez na minha melhor forma. E foi assim que eu venci os Jogos Pan-Americanos de 2019. Mas foi ali que meu chão se abriu outra vez. 

O resultado positivo no exame antidoping. A incerteza enquanto o processo corria, a dor de saber que eu não era culpada daquilo. 

Mas estava decidido: me tiraram a medalha e me tiraram o direito de lutar judô por dois anos. Vinte e quatro meses em que eu não podia ter contato com nenhum atleta, que eu não podia fazer nada. 

Do céu ao inferno outra vez. Mais uma vez.

Eu estava fora das Olimpíadas de Tóquio. No sofá outra vez. 

Eu ganhei peso, perdi o rumo. 

Outra vez, eu precisava levantar e reagir. Outra vez, eu voltei. Voltei pra buscar a medalha que me tiraram em 2019. 

Tá aqui, ó! Fui ouro no Pan de 2023. 

E sabe o que tá chegando? Paris, Olimpíadas. E eu tô no jogo. 

Sabe por quê? Porque eu sempre volto. 

Anota aí: eu sempre volto. 

É isso que me faz bem. É assim que eu consigo colocar a cabeça no travesseiro e dormir tranquila todas as noites. É assim que eu cuido de mim. 

O que vem depois? Impossível saber.

A única certeza é que ninguém vai me derrubar.

Eu sou a Rafaela Silva e meu maior talento é dar a volta por cima.

Autografo Rafaela Silva

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