Salve a Democracia
Seja lá qual for sua orientação política, tenho pra mim, e sei que não estou sozinho nesta reflexão: o momento que vive o Brasil é um dos mais graves da nossa história e representa um dos maiores retrocessos da nossa vida republicana.
Nem estou me referindo diretamente às centenas de milhares de mortes durante a pandemia, ao crescente desmatamento da Amazônia ou ao aumento da fome e desigualdade social nos últimos anos. Além destas terríveis consequências de um governo desastroso, defendo aqui um valor que deve ser caro a toda sociedade, independentemente de preferências ideológicas e partidárias, e que foi ameaçado descaradamente nos últimos quatro anos.
Falo de uma imensa conquista da sociedade brasileira, à custa de muitas vidas, muito sangue derramado, muita coragem e resistência. Falo da nossa DEMOCRACIA.
Um sistema fundamental, onde a vontade da maioria, a liberdade e o bem estar de todos devem ser soberanos, o caminho para um país melhor e mais justo. Esta reafirmação se faz mais que necessária diante da situação que vivemos.
Pode parecer alarmista da minha parte, mas eu não estou exagerando. Vimos, por diversas vezes, abusos, declarações, crimes contra o Estado Democrático de Direito que ultrapassaram o limite do aceitável. Sim, a democracia no Brasil corre sérios riscos. Por minhas origens e por minha história de vida, não posso observar tudo isso em silêncio, à distância, sem me manifestar, me posicionar, lutar para preservar o que foi duramente conquistado.
Sócrates, meu irmão mais velho, lutou incansavelmente contra a censura e a ditadura militar. Desde cedo aprendemos em casa, com os nossos pais, o valor inquestionável da liberdade. Nada deve calar o livre arbítrio, a sabedoria e o direito de expressão do ser humano, e sobretudo, que vivemos em um país injusto, que temos de lutar para que todos possam usufruir destes direitos de forma igualitária. Essas foram as primeiras lições do Seu Raimundo e Dona Guiomar.
Meu pai nasceu no Ceará, foi do Pará e de lá para interior de São Paulo, Ribeirão Preto, em busca de uma vida mais próspera para a família. Como autodidata, se apaixonou pelas mais variadas áreas do conhecimento. Quando teve seus primeiros filhos, ainda no Pará, ele estava na fase de ler os filósofos gregos, a Grécia antiga. Não é à toa que os três mais velhos se chamam Sócrates, Sóstenes e Sófocles.
Uma das minhas memórias de infância era acordar de madrugada e ver a luz do escritório do meu pai acesa. Ele passava horas lá dentro, virava noites lendo e estudando. No auge da ditadura, ele chegou a queimar uma coleção de livros que poderiam ser considerados subversivos pelo regime, já que trabalhava como funcionário público e precisava sustentar a família, mas nunca deixou de nos incentivar nos estudos nem de nos provocar com sua inquietude intelectual.
Seu Raimundo nasceu muito pobre, como a maior parcela da nossa população, cresceu e construiu uma família que muito nos orgulha. Um sábio popular e um intelectual na eterna busca do saber. Soube transmitir valores humanistas e seu gosto pelo conhecimento.
Sócrates puxou muito do meu pai. Questionador, inteligente, firme em suas posições. Era um gênio dentro e fora de campo. Como caçula dos seis irmãos, 11 anos mais novo que o Magrão, eu naturalmente desenvolvi uma admiração fascinante por ele. Eu o via mais que um irmão, principalmente como ídolo, além de craque da bola e do jogo. Admirava sua capacidade de desenvolver ideias, sua inteligência, seus discursos sobre política, e ficava orgulhoso por pertencer à mesma família daquele homem tão respeitado.
Uau, esse é meu irmão!!, eu pensava.
Ao mesmo tempo que me inspirava nele, eu também sentia a pressão por ser o “irmão do Sócrates”. Mas, por incrível que pareça, apesar das dificuldades, isso acabou me ajudando a me tornar atleta profissional. Chegou um momento em que aquilo se transformou num grande desafio, que eu queria e tinha que superar. Provar para mim e para os outros que eu podia jogar, que tinha meu valor, independentemente das comparações. Este desafio interno me fez crescer! Se motivar e crescer na pressão e nas dificuldades é uma qualidade indispensável para quem quer ser um competidor de alto nível.
Ser o irmão do Sócrates adiantou o processo de me reconhecer como atleta e como cidadão. Quando cheguei ao São Paulo FC, com 22 anos, o pessoal da imprensa já perguntava sobre meus posicionamentos políticos, sobre o que eu achava de outras questões que transcendem o futebol. Era tipo, “o irmão do Sócrates não tem o direito de não ter uma opinião”.
Então, eu comecei a devorar os cadernos de economia e política dos jornais, a me aprofundar em assuntos que até então não me interessavam tanto. Tinha que fazer jus e estar à altura de ser irmão do Sócrates. ;-))
Sou grato ao Magrão também por isso. Essa pressão, no bom sentido, me transformou no atleta que eu fui e moldou o cidadão que eu sou.
Agora você já sabe mais um motivo pelo qual eu não posso me omitir na defesa da democracia neste momento crucial para o país, às vésperas da eleição que vai redefinir os rumos da nossa história.
Porque eu acredito na liberdade.
Porque eu acredito no Brasil.
Porque era o que o meu pai e o Magrão também fariam se ainda estivessem aqui.
Fui um dos primeiros a assinar a Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito, um manifesto em favor das nossas instituições e da democracia. Creio que esta é uma causa que deveria ser abraçada por toda sociedade, inclusive pela comunidade esportiva e por todos os atletas.
O esporte tem um poder gigante de comunicação e mobilização.
Confesso que, apesar do meu interesse por questões políticas desde o início da minha carreira como jogador, essa noção do papel social do esporte demorou a amadurecer em mim.
Hoje tenho claro que a melhor decisão que tomei em toda minha vida profissional foi ter aceitado a proposta para jogar no Paris Saint-Germain, naquela época ainda sem grandes pretensões no futebol europeu, bem diferente da potência esportiva e financeira que viria a se tornar. Sim, eu ganhei muitos títulos pelo clube, sucesso e reconhecimento, mas uma das principais coisas que a França me deu foi a descoberta de um mundo que eu não conhecia.
Viver em Paris te enriquece em inúmeros aspectos. Para mim, então, que cheguei a cursar a faculdade de História em Ribeirão Preto e tinha uma verdadeira obsessão pela Revolução Francesa, era um ensinamento diário. Queria aprender tudo o que pudesse sobre aqueles ideais que influenciaram tanto a sociedade contemporânea.
A melhor decisão que tomei em toda minha vida profissional foi ter aceitado a proposta para jogar no PSG.
- Raí
É evidente que, como em qualquer país, a França tem seus problemas, mas só a riqueza cultural de uma cidade como Paris já te enche de novas perspectivas. Pela primeira vez, eu tive a oportunidade de olhar para o Brasil de fora e experimentar choques de realidade que dificilmente vivenciaria se não tivesse saído do país.
Na época, por exemplo, mudou-se conosco uma colaboradora brasileira para trabalhar na minha casa. A filha dela estudava na mesma escola e tinha o mesmo médico da minha filha. Viver esta experiência fez com que eu passasse a acreditar que esta utopia, aos olhos do Brasil, seja possível de ser conquistada. Pra mim, isso é sinónimo de justiça social, oportunidades iguais independentemente da classe social ou da origem.
Rapidamente, aquelas primeiras experiências na França foram instigando minha consciência política. Tanto que, em setembro de 1995, eu cheguei a cogitar não entrar em campo pelo PSG como ato de protesto. Eu li num jornal que o então presidente Jacques Chirac tinha autorizado testes nucleares na região do Pacifico. Lembro como se fosse hoje da minha reação ao ler aquilo:
Como assim??? Bomba atômica?! Qual a necessidade disso? E as consequências?
O Muro de Berlim já tinha sido derrubado. Não havia mais Guerra Fria. E pra que raios ainda precisavam fazer testes nucleares, colocando em risco as pessoas e o meio ambiente?
Fiquei tão revoltado que minha vontade, como capitão do time, era dizer que eu não iria jogar em protesto contra aqueles testes atômicos. Pensei muito sobre isso. Se fosse um cara mais impulsivo, eu teria feito. Porém, pela falta de domínio sobre toda situação que envolvia esta ação, e o desconhecimento, na época, sobre assuntos ambientais, não me permiti seguir em frente. Foi por pouco.
Me arrependo de não ter procurado uma instituição como Greenpeace, por exemplo, e ter marcado minha posição. Me arrependo de não ter feito o que minha consciência mandava.
Por isso também, 25 anos depois, na época como diretor-executivo do São Paulo, eu não pensei duas vezes quando bateu novamente esse impulso de me posicionar. Um posicionamento pessoal. Não como dirigente, mas como cidadão.
Ainda estávamos no início da pandemia, e o presidente da República insistia em falas e atitudes irresponsáveis, na contramão das recomendações científicas, colocando em risco a vida de milhões de pessoas. Cogitou-se, inclusive, a volta do futebol em meio ao período mais crítico da crise sanitária, o que seria um completo absurdo. Como qualquer pessoa, mas também como uma pessoa pública, eu não poderia me calar, de jeito nenhum. Sabia que o meu posicionamento teria repercussão.
O futebol, em geral, é um meio conservador. Houve algumas críticas, assim como muita gente me apoiou também. No meio esportivo e no clube que eu representava na época. As críticas de conselheiros e torcedores do São Paulo não chegaram diretamente até mim nem atrapalharam meu trabalho no clube. Apenas reforçaram o quão resistentes muitas pessoas ainda são em reconhecer o papel importante que o esporte tem na sociedade.
Na minha opinião, respeitados alguns limites, nao é porque você representa um clube que deve evitar opiniões e posicionamentos, por receio de não agradar a todos. O atleta, o ídolo ou o craque é um cidadão como outro qualquer. É nesses momentos, como o que vivemos agora, que devemos nos posicionar ainda mais em prol das causas que acreditamos.
Sobretudo de uma causa tão nobre como a democracia, por exemplo.
Quando ganhamos o tetracampeonato mundial, nos Estados Unidos, nós, jogadores, entrávamos em campo com uma fitinha verde no braço direito. Era o símbolo de nossa adesão à Ação da Cidadania, campanha lançada pelo Betinho para combater a fome no Brasil.
Antes do Mundial, o orgulho do país estava bastante ferido. O impeachment do Collor agravou a crise econômica. Mais de 30 milhões de brasileiros viviam abaixo da linha da pobreza. No esporte, tínhamos acabado de perder o Ayrton Senna, e a seleção brasileira amargava um jejum de 24 anos sem ganhar uma Copa.
O tetra, mais do que promover a campanha contra a fome, trouxe um pouco de autoestima ao povo brasileiro numa complicada fase de reconstrução política. Afinal, o futebol nunca é só futebol.
Também por acreditar nessa máxima, eu criei, quatro anos depois, a Fundação Gol de Letra, em parceria com o Leonardo. Conduzir uma instituição que tem por objetivo oferecer acesso à educação para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social tem me ensinado muita coisa. Aprendo muito com as pessoas envolvidas, principalmente com aquelas que estão na ponta da ação.
Ser um ativista social me mostrou a importância de realmente vestir a camisa e entrar em campo. Desde o início da Fundação, adoro conversar com os jovens, professores, líderes comunitários, lideranças regionais… Só assim conseguimos medir se as ideias que sempre acreditei podem funcionar na prática.
Enfim, num sentido mais amplo, isso é meu jeito preferido de fazer política.
Sempre achei que como um ator político ativo, eu poderia contribuir em áreas que vão muito além do esporte. Depois da Gol de Letra (que tem como base a educação integral), também faço parte do grupo de membros fundadores do “Todos Pela Educação” e da “Atletas Pelo Brasil”, entre outros movimentos.
Atualmente estou morando na França, onde sou mestrando em Políticas Publicas, na SciencesPo. Quero aprofundar meus conhecimentos e, sobretudo, estruturar minha experiencia adquirida pra tentar me atualizar, conhecer outras experiências, inovar e tentar um impacto de maior escala.
A Gol de Letra tem entre um de seus principais objetivos mobilizar a comunidade esportiva. E eu, como indivíduo, sempre tento estimular uma participação mais ampla.
Jamais vamos ditar como cada um deve se posicionar — até porque entendo que cada um tem suas razões para preferir este ou aquele comportamento. Mas, ressaltando novamente a gravidade do momento que vivemos, inclusive com relação ao racismo e à fome, eu faço um apelo aos atletas: não deixe pra depois.
Existe somente uma maneira de superar os absurdos, muitas vezes cruéis, que abateram o Brasil nos últimos anos. Pelo voto.
- Raí
Comprometa-se com uma causa em que você realmente acredita.
Se manifeste.
Tenha consciência da responsabilidade que é ser um pessoa pública, muitas vezes um ídolo, em uma atividade com uma visibilidade absurda.
Não sabe por onde começar? Então comece pelos valores mais básicos da sociedade… Defenda a democracia! O Estado Democrático de Direito. Se informe.
Não sabe por que começar? Então se inspire em exemplos como o da Anitta, uma superestrela da música que antes não se interessava por política, mas que compreendeu a importância de escolher um lado e se posicionar diante de um governo desumano, sem compromisso com a preservação da natureza, da vida, e que faz ameaças de golpe e de medidas antidemocráticas.
Existe somente uma maneira de superar estes absurdos, muitas vezes cruéis que abateram o Brasil nos últimos anos. Pelo voto. Pela garantia de que a vontade popular será respeitada. Pela via democrática.
Não é porque estou na França que estou alheio aos problemas do meu país. Ou que deixei de acreditar que merecemos um futuro melhor. Estou aqui para aprender mais e me preparar para outras ações no Brasil. Tentar encontrar novos meios eficientes para contribuir com este movimento em busca de um país mais justo.
Aproveito este final para dizer que nós, atletas, fiquemos atentos aos desafios do momento, que possamos nos informar, com fontes seguras (em tempos de tantas fake news), o que é ou nao é realmente democrático. Consequentemente, o que é ou nao é melhor para o bem estar da população e para o futuro do país.
Aprendi que toda sociedade que deseja evoluir como nação exige participação dos cidadãos, exige se organizar em coletivos, exige dar voz a todos, exige respeitar o direito de todos, exige democracia.
Salve a luta de Dr. Sócrates, que continua viva e ainda nos inspira.
Salve a memória de Seu Raimundo, um grande personagem brasileiro.
Salve o Estado Democrático de Direito.
Salve a democracia.
Salve a liberdade e o respeito à vida.
Salve o Brasil.