07-12-20

Maga Jr./Gazeta Press

Sempre ouvi dizer que os números não mentem. São o que são. A gente pode gostar deles ou não, mas, mentir, não mentem. 

Por isso eu tatuei esses seis números na cara, abaixo do meu olho esquerdo: 07-12-20

É uma data. Sete de dezembro de dois mil e vinte. 

O dia da verdade. 

O dia em que eu parei de beber. 

O dia em que eu decidi que não queria mais esconder quem eu sou e o que eu vivi. 

Quem me olhar de frente agora vai saber de tudo, de todas as minhas verdades. E vou te falar: elas são duras, afiadas como os corais do meu Recife. Nadar ali corta, fere a gente, deixa cicatriz. Mas é o que eu tenho e é daí que eu quero renascer. O meu sentimento a respeito de tudo o que passei? Vergonha, medo, solidão. E muita força também. Força pra levantar mais uma vez (já foram tantas…), pegar a camisa 9 do Vasco e dizer: “É minha”. A 9 do Vasco é minha este ano, essa é outra verdade. 

Raniel Vasco The Players Tribune
Rafael Ribeiro/CRVG

Claro que esse clube maravilhoso é muito maior do que eu. Sempre vai ser. Mas as nossas histórias se cruzaram num momento em que nós dois precisamos e queremos nos reerguer. A luta vai ser grande. 

O Vasco já travou muitas lutas grandes antes. Eu também. A novidade, da minha parte, é que eu nunca me senti tão preparado como agora. Vou contar a minha história e você vai entender por quê.



Luta, aliás, é o que eu enxergo quando fecho os olhos e tento recuperar a minha primeira memória de infância. Não vejo pai, mãe, irmãos, nem sequer uma bola de futebol. Eu só vejo um moleque desesperado. 

Eu tinha uns três ou quatro anos quando meu pai morreu e a minha mãe, sem condições de me criar, achou melhor me dar pra vizinha, a Dione. Ela me acolheu mesmo já tendo três filhos pra alimentar e muitas dificuldades financeiras. E aqui eu queria falar de um sentimento que ficou marcado em mim desde então: existe gente sacana e insensível em toda parte e em todas as classes sociais, mas a solidariedade do povo pobre do Brasil não tem igual. A Dione se tornou a minha mãe adotiva sem questionar, sem pensar se daria conta, sem temer. Ela agiu do único jeito que as pessoas boas agem em horas de aflição e necessidade: com o coração. 

Não gosto de julgar os pais que abandonam seus filhos, porque não sei o que se passava naquele momento. Eu sou pai também e, por mais que eu tente, nunca vou sentir a gravidade da situação como a minha mãe sentiu ao perder meu pai, o tamanho das dificuldades que ela enfrentava, as incertezas todas, pra ter chegado ao ponto de me abandonar.

Só sei que, ainda bem pequeno, eu virei o quarto filho da Dione. E na nossa casa simples no bairro do Arruda faltava tudo: roupa, material escolar, mantimentos. 

Lembro que eu não tinha toalha pra me enxugar depois do banho. Me secava com roupa suja. Eu saía pra bater bola na rua e quando dava três da tarde, no máximo, corria de volta pra casa. Os meninos não entendiam: “Pô, Raniel, tá metendo um monte de gol e vai sair no meio do jogo?”. Mas eu tinha que voltar, me lavar, me enxugar com aquela roupa suada e depois dar um trato nela no tanque. Até hoje sinto o cheiro do sabão… Um sabão quadrado, amarelinho. Aí eu torcia e pendurava a roupa na frente de um ventilador pra ela estar seca na hora de eu ir pra escola. 

Cara, eu fui muito zoado por causa disso, por estar sempre com a mesma camiseta e o mesmo shorts. Mas eu não tinha outros. Para os amigos da comunidade, eu era o menino que só tinha um par de roupa. Isso marcou a minha infância.

Quando eu estava com sete anos, a Dione morreu e eu fiquei por conta dos três filhos biológicos dela, que eram mais velhos. Um deles já trabalhava e dava um jeito de as coisas não desmoronarem. Eu jogava futsal no Santa Cruz desde os cinco, porque o clube, que ficava perto lá de casa, tinha visto a nossa situação e quis ajudar. Eles me davam uma cesta básica todo mês e isso garantia a nossa comida. 

O meu treinador no futsal do Santa, o professor Chico, me conseguiu também uma bolsa de estudos no colégio onde ele trabalhava. Foi dando mais ou menos tudo certo até que me chamaram pra treinar no campo. Era muito longe do nosso bairro e, sem dinheiro para o ônibus, eu dependia de carona pra ir e pra voltar. De dia tudo bem, mas à noitinha, depois do treino, era difícil um motorista parar o carro pra um moleque sacudindo o braço. Chegava em casa nove, dez horas da noite. Eu me esforçava muito pra não faltar nos treinos. Sentia que era a minha chance de mudar o meu destino. O pessoal no clube dizia que eu tinha talento, precisava só manter a cabeça no lugar. 

Mas eu não consegui. 

Raniel crianca Santa Cruz Recife
Cortesia de Raniel

Com 14 anos eu comecei a beber. Depois, a me drogar. E até vender drogas eu vendi. É doído demais lembrar disso, parece que estou jogando sal numa queimadura de água-viva. Eu era só uma criança e acabei cedendo àquele mundo perigoso que me cercava. 

Uma hora ficou tão ruim, mas tão ruim, que o Santa Cruz me levou pra morar na concentração. Eles queriam me afastar da beirada do precipício. Funcionou por um tempo… Só que quando eu completei 17 anos, já tinha subido pro profissional, fui pego no antidoping por uso de cocaína. Passei quase um ano sem poder jogar. De novo aquele medo, aquela vergonha, o desespero. 

Eu estava com a minha avó Marinalva quando a TV deu a notícia da minha suspensão. Ela ficou tão mal, tão arrasada. Achei que eu fosse perder ela também, que o coração dela não ia aguentar tanto sofrimento. Isso me machucou mais do que a própria punição, porque a vó Marinalva me ama demais, sempre quis o meu bem e foi o colo onde eu me socorri a vida inteira. 

Ver ela ali chorando na frente da televisão acabou comigo. Eu me senti caindo de vez no abismo e que ele não tinha fundo, que eu desceria pra sempre até morrer. Mas o Santa Cruz, que sempre me tratou com respeito, com dignidade, outra vez estendeu a mão e me resgatou. O clube me manteve no elenco mesmo eu não podendo jogar. Eu só treinava. E aguentava calado as ofensas na rua: 

“Lá vai o drogado!” 

“Olha aí o jogador viciado, o problemático!!”

Era verdade, o que eu podia fazer? Eu me sentia um lixo. Não me orgulho disso, mas ainda bem que paguei cedo pelos meus erros, a tempo de ter uma nova oportunidade.

Com 14 anos eu comecei a beber. Depois, a me drogar. E até vender drogas eu vendi.

Raniel

Um dia, um diretor do Santa, o Sandro Cocão, me chamou e conversou comigo como se eu fosse um filho dele. Eu senti amor em cada palavra, o mesmo tipo de amor que eu sinto até hoje pela Dione, meus irmãos e a vó Marinalva. 

Primeiro, o Cocão me pediu pra levantar a cabeça e olhar pra ele. E então disse assim: 

“Raniel, um talento desses que tu tem não é toda hora que aparece. Olha a tua avó, teus irmãos, o que vai ser deles? Tu é a pessoa que Deus escolheu pra tirar todo mundo dessa vida difícil.” 

Você vê: ainda tem gente que não acredita em anjo da guarda…

Antes do doping eu tinha recebido sondagens do Athletico-PR e do São Paulo. A minha vida, porém, mudaria dois anos depois, com a proposta do Cruzeiro. 

Joguei quatro anos lá e ganhei duas Copas do Brasil e dois Campeonatos Mineiros. Foi o período mais feliz que eu tive no futebol, por enquanto. Apareci pra todo o país e mostrei meu potencial. Por isso, além do Santa, também sou muito grato ao Cruzeiro. Quantos clubes acreditariam num jogador com histórico de alcoolismo, drogas, pego no antidoping e tudo? 

Eu sei como é. 

Precisa ter coragem e amor pra ficar ao lado de uma pessoa assim. E mais uma vez alguém teve coragem e amor pra ficar comigo, cuidar de mim, salvar a minha vida. Tinha sido assim com a Dione, com meus irmãos, a vó Marinalva, com o Santa, estava sendo com o Cruzeiro e viria a ser de novo com o Zé Ricardo, que me quis no Vasco.

Àquela altura, mudar para Belo Horizonte e deixar o Recife, de onde eu nunca tinha saído, me fez bem. Eu pude respirar outros ares e pôr a cabeça no lugar. 

Raniel Cruzeiro
Pedro Vilela/Getty Images

Foi triste quando deixei o Cruzeiro. Uns caras ali foram sensacionais pra mim. Léo, Thiago Neves, Dedé, Edilson… Eles viam que eu estava a fim de superar o meu passado, que eu me dedicava nos treinos e contribuía fazendo gols, e me tratavam com carinho. No dia em que fui à Toca me despedir da rapaziada, porque estava de partida pro São Paulo, o Léo não quis nem conversar comigo. Só falou: “Vai, moleque, vai logo! Senão eu não me aguento de tanto chorar”. Foi de partir o coração, principalmente porque fiquei devendo um abraço ao Léo.

Não consegui mostrar meu futebol no São Paulo e, em 2020, cheguei no Santos. Eu não imaginava que, depois de ter passado por tanta coisa pesada, a vida ainda me reservava duas grandes porradas. Grandes, não. ENORMES. 

Nem gosto de ficar lembrando disso, porque me faz viver tudo de novo e me joga num lugar de tristeza de onde eu demoro pra sair. Mas eu me propus a falar a verdade. Tá aqui a tatuagem me lembrando disso toda hora que eu olho no espelho ou tiro uma selfie. 

Então vamos lá…

Era de tarde. Eu e minha mulher tínhamos ido tirar um cochilo no quarto. O nosso bebê Felipe, de nove meses, ficou com a babá. Quando ele adormeceu, ela o deixou num colchão no chão da sala e foi pra área de serviço, cuidar da roupa, essas coisas. Mas esqueceu a porta de acesso pra piscina entreaberta. Provavelmente o Felipe acordou e engatinhou até lá. Eu dei um pulo da cama com os gritos da babá. Desci as escadas correndo e vi meu filho nos braços dela, desacordado, todo molinho, e com a boca espumando. 

Ai, meu Deus, não desejo algo parecido nem ao meu pior inimigo. 

Peguei o Felipe e saí correndo do jeito que eu estava, sem camisa e sem chinelo, na direção do hospital que, por sorte, ficava na esquina da nossa rua. Entreguei meu bebê pros médicos e, depois de um tempo, um deles veio falar comigo e minha esposa:

— A gente não tá conseguindo reanimar ele.

Foram quase 40 minutos dele em parada cardíaca, sem responder, sem vida. Eu conheço bem a dor, de vários tipos e intensidades, por isso posso falar: nenhuma dor que eu tenha sentido até então ou ainda venha a sentir será igual à daquele dia. Nenhuma. Mas aí o Felipe voltou. E a única explicação que eu tenho é que Deus nos deu uma prova de que Ele existe. 

Meu filho ainda ficou 23 dias na UTI, e cada um deles eu vivi com angústia e esperança. Eu e minha esposa nos revezamos no hospital, não deixamos o Felipe sozinho nem um dia sequer. 

No meu dia de ir pra casa, eu dormia no quarto do Daniel, o nosso mais velho. A gente rezava junto pelo Felipe todas as noites. Tinha um quadro na parede em frente à cama. E eu via a imagem do Felipe nele, vivo, sorrindo pra mim como se me dissesse: “Calma, papai, eu vou ficar bem”.

Bebendo cada vez mais, eu percebi que podia perder não só a minha carreira, mas também meus filhos e a minha família.

Raniel

Apesar desse pedido dele, eu não consegui manter a calma. Voltei a beber e não foi pouco. Era o auge da pandemia e os jogos estavam suspensos, os estádios fechados. 

Huuuhh, como é difícil admitir isso…

Eu tive uma recaída.

Eu me afundei. 

Bebia, bebia, bebia até cair e bebia mais um pouco deitado. Só parava depois de desmaiar. Eu queria me destruir. Eu via que a qualquer momento algo grave ia acontecer comigo. E eu desejava que acontecesse, porque aquele abismo em que eu caí depois do antidoping no Santa Cruz ficou rasinho perto desse. 

Mas o Felipe deixou a UTI e a gente pôde trazer ele pra casa, sem nenhuma sequela cerebral. Hoje ele já se comunica, tem a visão perfeita, faz fisioterapia e vai poder andar, graças a Deus. Eu não quis ficar pensando em como isso foi possível. Apenas agradeci, continuo agradecendo todos os dias.

Quando o futebol voltou, eu peguei Covid. Perdi o olfato, o paladar, fiquei uns dias afastado e retornei às atividades normalmente. Mas aí, menos de um mês depois, tive uma provável complicação da doença. 

Raniel Santos perna trombose
Guilherme Dionizio/Getty Images

Nós fomos jogar uma partida da Libertadores fora de casa. Joguei, não senti nada e voltamos. Tudo bem no avião. Na chegada em Goiânia, onde a gente enfrenaria o Goiás, tudo normal. Quando acordei no dia seguinte, eu não aguentava pôr o pé no chão. Minha perna estava inchada, e eu sentia uma dor horrível. O médico do Santos veio ver, arregalou uns olhos que me lembraram os da babá com meu filho desfalecido nos braços, e mandou me levarem rápido pro hospital. Trombose aguda em estágio avançado. Eu só entendi a gravidade quando me transferiram às pressas para São Paulo e o doutor entrou no quarto pra falar comigo:

— Raniel, vamos operar. Não sei se você foi salvo por um segundo, um minuto ou uma hora, mas, se a gente não fizer a cirurgia agora, tem risco de você perder a perna.

Velho, nessa hora eu cheguei até a questionar Deus… Ele que me perdoe. “Pô, Deus, de novo?! Só comigo??? Por quê?! O que o Senhor quer de mim?!”

Fizeram a cirurgia. Me recuperei e tentei voltar a treinar, mas não dava. A trombose tinha criado uma fibrose enorme na minha perna, encurtado um tendão, e eu mal conseguia colocar o calcanhar no chão. 

De longe, 2020 foi o pior ano da minha vida. Era um baque atrás do outro. Notícia ruim atrás de notícia ruim. Sem poder fazer o que eu amo, que é jogar bola, e bebendo cada vez mais, eu percebi que podia perder não só a minha carreira, mas também meus filhos e a minha família.

É nesse momento que, em vez de desacreditar, eu decido me apegar a Deus e digo para mim mesmo: “Vou parar de beber”.

Eu estava decidido a nunca mais me entregar à bebida. Antes de terminar o pior ano da minha vida, eu faço a tatuagem no rosto. Para deixar marcado na pele. Para eu jamais esquecer do meu propósito.

Raniel tatuagem rosto alcoolismo
Gazeta Press

No começo foi bem difícil, não vou mentir, principalmente nos primeiros meses, quando eu soube que precisaria operar a perna de novo. Dessa vez o doutor foi mais direto:

— Vamos abrir no mesmo lugar. Isso vai arrebentar o músculo e eu não sei se você vai conseguir voltar a jogar.

Tudo isso em menos de um ano. Eu não tinha forças nem pra pensar. Me sentia esgotado. Eu só queria deixar nas mãos de Deus. Então, me agarrei a uma esperança meio capenga: “Bom, já voltei tantas vezes do precipício, por que não mais uma?”. Era verdade. Eu tinha voltado do abandono, das drogas, do tráfico, do doping, do acidente do meu filho, do alcoolismo, da Covid, da trombose, do risco de perder a perna… 

Até que eu me lembrei da maior esperança, a maior inspiração que eu poderia ter, e pensei: Se meu filho voltou, eu posso voltar também.

“Tá bom, doutor, vamos ver no que dá”, eu falei pro médico. 

E o que deu foi que, depois da segunda cirurgia e a força que tirei da superação do Felipe, minha perna direita ficou mais forte do que antes. Vai entender… 

Raniel gol Vasco
Maga Jr./Gazeta Press

Por causa de todos esses problemas, eu não consegui render no Santos como eu gostaria. Mesmo assim, tive a felicidade de voltar a jogar depois de nove meses parado e pude me despedir do clube em campo. O que, para mim, já era uma vitória.

Aí veio o chamado do Vasco e a pergunta que eu tinha feito a Deus naquela hora de amargura — “O que o Senhor quer de mim?” — foi respondida quando o Zé Ricardo me ligou. Eu entendi que passei por tudo o que passei para estar vivo neste dia, nesta hora, neste ano, em São Januário. É aqui que vai acontecer mais uma volta pra mim. E com ela eu espero contribuir com a volta do Vasco também. Eu passei pelo que passei para ser quem eu sou hoje. E agora o Vasco faz parte de mim.

Estou pronto para viver o melhor ano da minha vida. Mas, não importa o que aconteça nem quantos gols eu marque na temporada, eu finalmente me sinto em paz.

Raniel filhos Vasco
Cortesia de Raniel

Então, com essa tatuagem perto do olho, que a vó Marinalva diz ser a janela da alma, todo mundo pode me ver por inteiro, por dentro e por fora. Os números não mentem: essa é a minha história, cheia de dores, quedas e cicatrizes, mas verdadeira pela primeira vez. 

Você não precisa sentir pena de mim. Apenas me conhecer.

Eu sou Raniel, camisa 9 do Vasco, tenho 25 anos, três filhos e uma esposa incrível. E desde 07-12-20, não boto uma gota de álcool na minha boca. 

Muito prazer.

Autografo Raniel

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