A História dos Pretos Que os Brancos Não Contaram
No começo do século passado, o melhor futebol de Porto Alegre não era praticado por Grêmio ou Internacional. Esses clubes, que se tornaram os maiores do estado, já existiam nessa época, é verdade. Mas a nata do esporte porto-alegrense estava mesmo na Liga da Canela Preta.
Fique tranquilo se você nunca ouviu falar. Me permita te contar um pouco mais...
Eu cresci escutando várias histórias sobre os craques da Liga. Meus bisavós possivelmente contribuíram para a fundação da Canela Preta, que, apesar de ter sido apelidada assim pelos brancos, em tom pejorativo, nada mais era que a união de movimentos que abriam as portas de torneios não-oficiais aos jogadores excluídos.
Pode parecer meio esquisito, eu sei, mas o futebol naquele tempo estava apenas começando no Brasil. Era um esporte da elite, dos aristocratas, dos ricos… Dos brancos.
É o que a história oficial nos conta.
Nesse esporte, os negros não eram aceitos — ou só foram admitidos bem depois, quando os clubes descobriram que não podiam transformar aquilo num negócio rentável sem o nosso talento.
O que muita gente se esquece é que os pretos também já jogavam bola no período do amadorismo. Por mais que não estivessem nos clubes dos ricos, eles davam um jeito de jogar nos bairros onde moravam. E, sim, existiam dezenas de campeonatos em Porto Alegre com os times de cada região.
A diferença é que, ao contrário dos torneios que só reuniam jogadores brancos e das classes abastadas, eles não são considerados “oficialmente” como parte da história do futebol na cidade.
Mas acredite quando digo pra ti que não existia nada igual à Canela Preta em termos de fartura de craques. Eu sei disso porque escutei todas as histórias direto da fonte, dos mais velhos da minha família e do meu bairro.
Não, eu não li nos livros sobre a história oficial do futebol. Até porque, se dependesse deles, as pessoas nunca saberiam que a Liga da Canela Preta um dia existiu.
Eu ouvi e vivi a história. E só por isso consigo contá-la pra ti agora.
Como já deu pra notar, eu venho de uma família de atletas. Além dos meus antepassados que participaram da Canela Preta, tenho um tio que foi jogador na década de 1950. Meu irmão jogou profissionalmente até os 30 anos. Enfim, o futebol está no meu sangue.
Comecei a jogar nos campinhos de várzea, provavelmente os mesmos onde jogaram os meus tios e avós. Todo mundo via que eu levava jeito. Porém, sempre tinha certa dúvida, pela comparação com meus irmãos.
“Ah, seus irmãos jogam mais que tu, mas tu tem potencial para se desenvolver.”
Eu era magrinho, franzino. Então, nem confiava muito que daria jogador. Um amigo do bairro, o Christian, que jogava no juvenil do Grêmio, insistia comigo para ir fazer um teste no clube. Me recordo até hoje da nossa conversa no dia em que finalmente topei a ideia.
— Cara, se todo mundo tem o teu corpo, eu não vou jogar. Vocês, que jogam em clube, são muito fortes.
— Ok, tu não tem o meu corpo, mas tu tem jogo. Tu vai jogar, tu vai jogar…
— Chris, eu vou, só pra tu parar de me encher, mas tu vai ver que eu não vou ficar.
Olha como são as coisas… Marcaram meu teste no Grêmio para uma quinta-feira. Mas aí, por intermédio do meu tio, conseguiram outro teste pra mim dois dias antes… No Inter! Só que na terça choveu, e o teste acabou desmarcado.
Se dependesse dos livros sobre a história oficial do futebol, as pessoas nunca saberiam que a Liga da Canela Preta um dia existiu.
- Roger Machado
Na quinta, 17 de julho de 1992, eu fui no Grêmio com o Chris. Fiquei uma semana. Me mandaram voltar na seguinte, quando pediram meus documentos. Um mês depois, eu já estava jogando na categoria de base do clube.
Outra lembrança marcante para mim é a previsão do meu primeiro treinador, Álvaro Laitano, o Português. Um dia ele me chamou e disse:
— Eu vou te dizer uma coisa que tu talvez não acredite.
— Pode falar…
— Tu vai jogar e, daqui a dois anos, tu vai estar no profissional. O Grêmio está construindo um lateral para 10 anos.
Esse cara tá louco, eu pensei.
Ele errou por pouco. Com um ano e meio, eu já estava no profissional — mas ele tinha razão quando disse que eu ficaria 10 anos no Grêmio.
Cheguei às categorias de base do clube aos 17, no segundo grau do colégio. A tendência para um garoto nessa situação é focar totalmente no futebol. No entanto, duas pessoas foram fundamentais para que o estudo não saísse dos meus planos. E isso me ajudou bastante ao longo da minha carreira.
Uma das minhas irmãs mais velhas, a Lena, é formada em Letras, professora de francês. A pessoa mais insistente que conheço. Sempre que eu ia viajar com a delegação para algum campeonato, ela colocava um livro no meio dos uniformes que eu levava para a concentração.
Toda vez era isso. Eu cheguei a perder a paciência com ela.
— Ô, Lena, tu colocou um livro na minha bolsa de novo?
— Bah, vai que dá vontade de ler…
— Poxa, tu sabe que eu não tenho o hábito da leitura. Não vou ler.
— Quem sabe um dia atrasa o voo, atrasa o ônibus, a viagem é longa, tu pega e sente vontade de ler…
Te disse que ela era insistente, né?
Mas não é que um dia o ônibus atrasou, o avião não saiu no horário e… Eu peguei o livro… E comecei a ler…
E não parei mais.
Virei o cara que os guris do time olhavam e diziam: “Lá vem o Roger, com o livro na mão”. Eu sempre estava lendo alguma coisa no tempo livre. No aeroporto ou na concentração, na fase boa ou na fase ruim, eu mergulhava nos livros como se fosse a coisa mais importante do mundo. Eles eram meu ponto de fuga do ambiente de pressão que envolve o esporte de alto rendimento.
A insistência da Lena valeu a pena. O hábito da leitura, esse gosto pelo acúmulo de conhecimento, me transformou em um jogador mais consciente da minha profissão, do aspecto social do futebol e das oportunidades que eu havia conquistado através dele. Também me tornou mais crítico do que acontecia à minha volta.
Esse conhecimento tu quer dividir com mais gente. Hoje, como treinador, outro hábito que eu tenho é o de presentear meus atletas com livros. Digo a eles que, quando tu abre um livro, tu abre uma janela para o mundo. E a cada janela que tu abre, tu enxerga o mundo de um jeito diferente.
O futebol também me abriu muitas janelas. Talvez a mais representativa delas, contribuindo para que eu me enxergasse de forma completamente diferente, é a do Bahia. Ou melhor, da Bahia.
Ter morado por 18 meses em Salvador foi uma experiência memorável. Não só por ter trabalhado num clube onde eu me senti encorajado e empoderado para falar sobre valores sociais que compartilhamos, mas por ter sido o lugar onde resgatei minha ancestralidade.
Já tinha visitado e passado férias em Salvador, mas nada se compara ao aprendizado diário de morar numa cidade onde eu me sentia representado nas ruas.
Deveria parecer normal sair de casa e enxergar no outdoor ou na propaganda de televisão uma pessoa de pele escura com cabelo black solto, mas a gente sabe que não é. A sociedade tem outros padrões.
Mas em Salvador isso é normal. Tu olha pro lado, vê um homem negro num carro importado e passa a imaginar que ele pode ser um advogado, um engenheiro ou um empresário, e não um motorista, um jogador de futebol ou um pagodeiro. Tu desconstrói teus preconceitos, porque tu começa a te enxergar no rosto dos outros. Automaticamente, tu revigora tua autoestima.
De alguma maneira, eu me senti como parte do normal na Bahia. Eu descobri a minha existência ancestral. A tal ponto de tomar a iniciativa de fazer o teste de DNA para tentar me descobrir mais a fundo, descobrir a minha identidade. E aí eu tive uma revelação surpreendente.
25% mesoamericano e andino.
22% queniano.
19% nigeriano.
18% italiano!
O restante é uma mistura de seis grupos étnicos distintos.
Para mim, o mais incrível do teste foi constatar que, ao mesmo tempo em que tenho um pé no Quênia e na Nigéria, tenho outro na Itália. E na América Latina.
Eu sentia falta de conhecer a minha origem. Algo natural para muitas pessoas brancas, que costumam dizer “a minha família veio do norte da Itália, o meu sobrenome é do sul da Alemanha”, enquanto que, para as pessoas negras, o normal é não ter visibilidade nem conhecimento de sua própria história.
A partir do momento que tu conhece tuas origens e se vê representado na televisão, nos jornais e nos livros, teu entendimento sobre a vida ganha outra dimensão.
Desde criança, eu fui ensinado a pensar que a história negra começou nos navios que traziam indivíduos escravizados. A escola não mostrava meu povo como protagonista da formação do Brasil. Pelos ensinamentos que aprendi, eu hoje deveria achar normal que no shopping perguntem à minha parceira Camile, que é branca, se uma das nossas filhas, que puxou a minha cor e o meu cabelo, é adotada.
As janelas que o futebol — e os livros — me abriram mostram que não, isso não deve ser aceito como parte do normal. Nossa história não se resume à escravidão nem ao racismo.
Lembra o que eu disse sobre dividir conhecimento? Então, por acreditar na educação como o melhor caminho de transformação social, assim como a minha irmã acreditou na época em que comecei no Grêmio, eu cheguei à conclusão de que posso ajudar a reescrever essa história.
Em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, me comprometi a financiar anualmente a publicação de 10 livros de pesquisadores negros e indígenas, vendidos por um preço acessível. No ano passado, publicamos a primeira leva da coleção, batizada de Diálogos da Diáspora.
As janelas que o futebol e os livros me abriram mostram que a história do nosso povo não se resume à escravidão nem ao racismo.
- Roger Machado
Ver esse projeto se tornar realidade me emociona por dois motivos. Primeiro, pela importância de dar visibilidade ao conhecimento produzido por aqueles que sempre foram invisibilizados. Segundo, por uma feliz coincidência, que me remeteu aos tempos de guri em Porto Alegre.
Lembra que eu também disse que duas pessoas foram fundamentais para que eu não largasse os estudos quando iniciei minha trajetória no futebol? Já contei sobre a minha irmã Lena, mas agora preciso falar da Augusta, mais conhecida como Dona Duca. Minha mãe de criação.
Na segunda leva da Diálogos, que vamos publicar ainda este mês, um dos livros em especial chamou a minha atenção. Ele foi escrito por uma pesquisadora gaúcha e fala sobre territórios negros de Porto Alegre. Quando recebi o original, corri na página que retratava o meu bairro, Auxiliadora/Mont’Serrat.
Rapidamente, a história que ela contava me pareceu familiar. Era o depoimento de uma pessoa relatando que sua mãe, uma lavadeira de roupas, passava o dia inteiro no tanque porque fazia questão que os filhos estudassem e tivessem oportunidades que ela não teve.
Ao chegar no segundo parágrafo, tomei um susto ao ler o nome da pessoa. Era minha irmã de criação. Ela tinha sido entrevistada pela pesquisadora alguns anos atrás, e falou sobre como nossa mãe, a Dona Duca, foi determinante para dar uma nova perspectiva à família.
Lá no Mont’Serrat, eu carreguei muita trouxa de roupa na cabeça para os clientes da minha mãe. Nossa casa ficava na convergência de duas ruas altas, que desciam e se encontravam. A gente morava no fundo da bacia. No topo, as águas formavam nascentes e, na parte de baixo, as mulheres lavadeiras lavavam suas roupas em bicas naturais.
Dona Duca era uma delas. Eu a chamava de “minha rainha”. Ela não criou só a mim e meus seis irmãos. Essa mulher maravilhosa deve ter conduzido a vida de pelo menos 20 pessoas, mais os filhos biológicos dela. A casa onde a gente vivia era praticamente uma residência de passagem. E ela sustentou todo mundo do mesmo jeito: com o dinheiro que ganhava lavando roupas.
Ela se preocupava muito com cada um de nós, mas também não dava moleza. Só permitia que eu jogasse bola na rua depois que almoçasse, fizesse o que tinha de fazer em relação aos estudos e desse uma força entregando roupa.
Depois, a única coisa que ela me pedia era para que não voltasse tão tarde pra casa. “Vai, joga tua bola, mas não chega de noite, não.”
Para auxiliá-la na tarefa de cuidar de tantos filhos, ela tinha seus informantes espalhados pelo bairro. Quando algum adulto me via nos campinhos, já gritava de longe:
“Dona Duca sabe que tu tá aí?”
“Oh, se andar com gente estranha, vou te correr pra casa, hein?”
Tudo isso porque ela nos cobrava boa conduta e dedicação à escola. Pegava no nosso pé porque não queria passar o ofício dela adiante.
Cara, imagina a minha emoção ao deparar com a história da minha mãe de criação num projeto que, de certa forma, só saiu do papel por causa da persistência daquela mulher que não me deixou abandonar os estudos…
É, Dona Augusta, o conhecimento realmente nos liberta. “É a única coisa que nunca vão conseguir tirar de ti”, ela me dizia.
Foi esse ensinamento que me fez buscar novamente as salas de aula no fim da minha carreira como jogador. Aos 30 anos, após uma passagem próspera pelo Japão, eu estava decidido a parar de jogar.
Tinha muita vontade de voltar a estudar. Prestei vestibular e me matriculei no curso de Educação Física. Mas aí o Fluminense apareceu na minha vida, felizmente. Tive que trancar a faculdade.
Quando parei de vez, aos 34, senti que não dava mais para adiar os planos, até mesmo por ordem de gestão familiar. Como é que eu ia educar as minhas filhas, dizendo da importância do acúmulo de conhecimento, se o pai delas, financeiramente resolvido, decidisse não estudar mais? Eu tinha de colocar meu discurso em prática.
Hoje elas são uma das razões para eu ter adotado o princípio de só pegar um clube por ano como técnico. Não existe estabilidade para treinadores no Brasil. É comum não durarmos quatro, cinco meses no cargo.
A única vez que levei minha família para morar comigo foi durante o período no Atlético Mineiro, mas percebi que isso não faria bem às gurias. Tiveram dificuldades para se adaptar a Belo Horizonte e à nova escola, sem contar o quanto acabavam afetadas pelos momentos de turbulência e a instabilidade do meio. Por vários dias, elas chegavam tristes em casa.
— Ô, gurias, está tudo bem?
— Bah, pai, nós vamos voltar pra Porto Alegre?
— Quem disse isso?
— Os colegas no colégio estão dizendo que tu vai ser demitido.
É pesado, sabe…
Depois dessa experiência, entendi que o melhor para elas era ficar em Porto Alegre com minha mulher. Se estou empregado, a gente tenta se encontrar ao menos duas vezes por mês. Se me mandam embora, aproveito o resto do ano para equilibrar a ausência dos últimos meses.
O que me conforta é ter a certeza que faço de tudo para proporcionar a elas aquilo que ninguém jamais vai tirar… Conhecimento. Como a Lena e a Dona Duca me proporcionaram lá atrás.
E que o pai delas estará sempre presente.
Eu perdi meu pai com nove anos. Minha mãe biológica, ausente por necessidade, me deixou acolhido numa rede de solidariedade de pessoas pretas, que me conduziram para chegar são e salvo a este momento.
Para mim, apoiar projetos dos meus semelhantes significa mais do que me portar como cidadão. É ser cidadão para essas pessoas.
É contar a história dos pretos que os brancos não contaram.
Atualmente, o Mont’Serrat se tornou um bairro de classe média alta em Porto Alegre. Assim que comecei a ganhar dinheiro no futebol, comprei o antigo terreno onde nós morávamos e construí um prédio no local, que hoje se chama residencial Dona Augusta. Uma singela homenagem por tudo que ela fez por mim e pelos outros tantos que criou.
Dona Duca foi protagonista da minha história. E a história dela agora está eternizada nas páginas de um livro. “A única coisa que nunca vão conseguir tirar de ti.”
Diálogos da Diáspora é sobre isso.
Ah, faltou dizer o nome do projeto que financia a coleção…
Canela Preta.
Uma singela homenagem à maior organização de todos os tempos do esporte porto-alegrense. Ao melhor futebol da cidade no começo do século passado.
Ainda que esta seja uma página em branco na história oficial, a gente jamais vai esquecer.