Nos Vemos em Paris
Onde você estava em 22 de julho de 2013? Eu estava na pista, na final do Campeonato Mundial de Atletismo de Lyon.
Eu tinha acabado de decidir que eu queimaria a largada.
Minha lógica era simples. Muita gente tinha vindo me dizer que era impossível eu estar ali.
Que era impossível eu vencer. Que não ia dar.
E eu não queria que essas pessoas estivessem certas. Se eu competisse e perdesse, elas estariam.
O impossível ia tomar conta. Ia ser maior do que tudo.
Mas se eu queimasse, eu seria desclassificada. Eu não ia ganhar. Mas, também, não ia perder.
E eu tinha muito medo de perder. Muito.
Até hoje, mais de 10 anos depois, eu não sei exatamente o que aconteceu naqueles últimos instantes. Eu não tenho certeza se eu desisti de queimar ou se nem deu tempo, porque o meu corpo começou a se mexer.
Eu sei que eu saí correndo, eram os 200 metros, e eu vi que eu ia passando outras atletas.
Passei uma, passei duas, passei três.
Bem, não seria a última, nem a penúltima, lá vou eu. Não vai ser tão fracasso assim.
E, de repente, em primeiro.
Primeiro lugar.
Medalha de ouro.
Eu não sei o que aconteceu, mas eu venci. Medalha de ouro no Mundial.
E o mais importante: eu me diverti demais naquela pista, que é como tem que ser.
Mas só por essa única história, você já consegue ver que as coisas não são simples dentro da minha cabeça, não consegue? E a confusão foi crescendo, a cobrança que eu me impunha foi crescendo, a ansiedade tomando conta…
Não tenho problema em falar disso. Na verdade, eu acho que todo mundo deveria falar. Porque quando a gente fala, a gente dá a chance para o outro ver que não está sozinho. E isso pode fazer toda a diferença.
Foi isso: eu comecei a pensar, a ter certeza, que eu só podia ganhar.
Porque quem não ganha, perde.
E quem perde é um perdedor.
Essa palavra me assombrava. Me atormentava. Entrava dentro da minha cabeça e me tirava do prumo.
Eu não queria, eu não podia ser uma perdedora.
E, aí, quando eu não ia bem, quando eu errava, eu me batia. Eu me arranhava. Eu apertava os cravos da sapatilha na minha coxa.
Hoje eu sei que isso é automutilação. E que eu não fui a primeira e nem serei a última a fazer isso. Infelizmente.
Precisei de uma crise de ansiedade, das grandes, para entender que saúde mental não é só uma expressão bonita, um discurso. Para entender que eu precisava me cuidar, e que tinha que ser rápido.
Hoje as coisas estão tranquilas. Mas eu já vivi o suficiente para saber que tudo pode mudar a qualquer momento. E, por isso, eu não posso me descuidar do meu psicológico. Ninguém pode.
Isso devia fazer parte do treinamento de cada atleta.
Como a musculação. Como o aeróbico. Como a alimentação regrada.
Todo mundo diz que esporte faz bem para a mente. Faz mesmo. Mas é preciso entender os seus limites.
Acho que hoje eu já conheço os meus. Mas não é sempre que eu estou no controle.
E tá tudo bem.
O esporte está na minha vida desde sempre.
Precisei de uma crise de ansiedade, das grandes, para entender que saúde mental não é só uma expressão bonita, um discurso.
- Verônica Hipólito
Desde pequena, quando aprendi a falar porque precisava pedir aos meus pais para ficar mais um pouco na rua. Brincar mais. Jogar bola só mais cinco minutinhos.
Eu gostava de pedalar. De correr no parque. De lutar. Veja, eu não estou dizendo que era boa em todas essas coisas. Mas eu adorava. Eu não conseguia ficar parada.
Meus pais me matricularam em tudo: natação, futebol, futsal, vôlei, tênis de mesa, tênis de campo, squash, atletismo, lutas e danças. Eu fiz muita coisa até me encontrar no judô.
Mas aí, aos 12 anos, um tumor me encontrou. Um tumor na cabeça. Uma das primeiras coisas que o médico me disse foi que eu não poderia mais fazer qualquer modalidade que tivesse impacto do quadril pra cima.
O que me sobrou: natação, tênis de mesa, tênis de quadra e atletismo.
Na natação, a minha melhor história envolvia os meus pais pedindo para interromper uma prova porque acharam que eu estava me afogando. Não era pra mim.
Tênis de quadra eu nem tenho história, de tão ruim que eu era.
No tênis de mesa, meu ponto forte era pegar as bolinhas do chão.
Sobrava o atletismo.
Daí você pensa: no atletismo ela vai ser boa. Eu também pensei.
Meu pai me inscreveu num Festival de Atletismo, tentando me animar, porque eu ainda estava digerindo a história toda do tumor, de deixar o judô para trás, de me acostumar com a minha nova condição.
Eu fui, um pouco mal-humorada por acordar tão cedo, mas fui. E aí, eu digo: eu fiquei em último lugar. Mas não foi nem um último lugar acirrado, não. Eu cheguei muito depois da menina que ficou em penúltimo. E eu odiei aquela sensação. E ali, eu resolvi que eu seria a menina mais rápida de Santo André.
Sabe o que aconteceu, né? Eu treinei muito. Eu treinava no clube e eu via o pessoal mais velho treinar mais pesado. E eu queria aquilo. Fui pedir para o treinador. E ele disse que, quando eu completasse 15 anos, eu mudaria de equipe.
Mas eu tive um AVC isquêmico três meses antes. E foi quando tudo começou a mudar. De novo.
E nisso, eu devo muito aos meus pais.
Quer dizer, em tudo, em todos os meus passos, todas as minhas conquistas, em cada escolha, eu devo muito a eles.
Ainda estava no hospital, aprendendo a lidar com aqueles olhares de pena, com as frases capacitistas e o julgamento de tanta gente, quando a minha mãe me disse que em todos os dias da minha vida eu devia dar o meu melhor.
Ela estava dizendo sobre correr atrás do prejuízo na escola, e deixou claro que, muitas vezes, o meu melhor não seria grande coisa. Mas o importante era que fosse sempre o meu melhor. Que era isso que me impediria de virar uma pessoa medíocre. Ela falava da escola, mas eu levei aquilo para a vida.
Depois, no dia da minha alta, o meu pai me disse que, a partir daquele momento, todo mundo ia querer me dizer o que eu podia e o que eu não podia fazer. E me avisou que eu ouviria muito mais não do que sim. Mas que era eu, e só eu, que decidiria o que era possível e o que não era. O que eu podia e o que não.
Fisio. Fono. Paciência. Foco. Fisio. Paciência. Treino. Corpo. Mente.
Um ano e meio depois, eu já estava na minha primeira competição. No ano seguinte, o Mundial, aquele, o meu ouro.
As coisas acontecendo. Nos Jogos Paralímpicos de 2016, uma prata e um bronze. E eu achando pouco, achando que era só o ouro é que valia.
Você percebe que o caminho nem sempre é tranquilo, nem sempre é coerente?
Afinal, atletas são pessoas e pessoas têm suas contradições, suas bagunças, seus momentos ruins.
Claro que sim!
O meu tumor voltou mais três vezes: em 2017, 2018 e 2020. Foram cirurgias complexas, recuperações lentas e momentos difíceis.
Um dos piores, sem dúvida, foi ficar fora dos Jogos Paralímpicos de Tóquio, em 2021. Eu não alcancei o índice para me classificar, eu fiquei transtornada. Eu achava que aquela seria a minha última chance.
Eu ficava remoendo as coisas. Reclamando da vida. Rosnando.
Por que é que tudo isso está acontecendo comigo?
E não com alguém que fosse ruim, que fosse mau?
Eu estava muito brava. Eu queria explodir o Centro de Treinamento, me explodir, desaparecer. Sei lá.
Eu só fazia pensar que não estaria nos Jogos.
Que o sonho já não existia mais.
Eu estava realmente muito brava. Pistola que fala, né?
Sabe como eu passei por isso?
Fui para Tóquio, mas do outro lado. Comentando os Jogos. E eu nem podia imaginar que seria algo tão maravilhoso.
Fui a primeira pessoa a ter um olhar gordofóbico para mim mesma. Eu demorei a entender o que era isso. Porque eu achava que o corpo magro é que era o corpo para mim.
- Verônica Hipólito
Mas acontece que eu sempre gostei de falar. De me comunicar. Compartilhar as coisas. Então, estar ali comentando, foi uma forma de cura.
Foi uma força nova.
Foi um jeito diferente e muito bonito de viver os Jogos Paralímpicos.
E foi importante demais para mim.
Tudo é processo, não é?
Entender e aceitar.
É um pouco do que eu tô vivendo agora, também.
Eu faço um tratamento contínuo com corticoide. Eu preciso dele para seguir vivendo, para seguir fazendo o que eu amo. Eu preciso dele.
Não é o ideal, mas é o que tenho hoje. É o que me salva.
Mas também, é o que muda o meu corpo. Incha. Aumenta. O que me deu sei lá quantos quilos a mais.
E isso, para uma pessoa que sempre vestiu tamanho PP, pode ser uma loucura.
O curioso é que, antes de ver o meu corpo mudar, eu achava que ter problema com o corpo era frescura. Eu repetia que as pessoas deviam ser felizes com o corpo que tinham. Que deviam agradecer por ter um corpo. E não se deixar abalar por nada que o outro dissesse.
Me parecia óbvio. Mas era óbvio para os meus 40 e poucos quilos.
Quando esse número aumentou, eu me vi uma pessoa diferente. Eu sofri com o meu corpo e sofri com as pessoas julgando o meu corpo.
Eu ainda sofro. Mas estou caminhando. Processo.
Fui a primeira pessoa a ter um olhar gordofóbico para mim mesma. Eu demorei a entender o que era isso. Eu fazia textão na internet dizendo para as pessoas não julgarem o corpo das outras, mas não tinha coragem de me desfazer das minhas roupas, pensando que um dia elas voltariam a me servir.
Porque eu achava que o corpo magro é que era o corpo para mim.
Eu preciso confessar: eu ainda tenho algumas peças de roupa guardadas.
Nem todo dia é fácil.
Mas eu sigo caminhando. Me lembrando dos meus motivos para estar aqui.
Me lembrando que o esporte é para todos os corpos.
Inclusive para o meu.
Principalmente para o meu, que precisa tanto dele.
Aliás, foi justamente por acreditar nisso que eu criei o Time Naurú..
Eu queria entregar para o mundo, para o Brasil, um espaço onde o esporte fosse tudo. E para todos.
Para todos os corpos, para todas as cabeças.
Nós somos uma equipe de competição de atletismo em alto rendimento. Começou com foco no Paralímpico, mas hoje a gente tem atletas do Olímpico também. Por que não?
Nós existimos para dar estrutura e apoio profissional, dentro e fora das pistas, para os nossos atletas.
E eles são muitos, viu? E eu, que sou uma só, quase não caibo em mim de tanto orgulho quando vejo o esporte ocupando todos os espaços.
Iniciação, competição, recuperação, integração.
Eu posso falar mais um monte de coisas e eu já avisei que eu gosto de falar.
Ou eu posso só dizer para você que é a Naurú que me ensina, todos os dias, a ser um pouquinho melhor.
E o mais bonito disso é que nunca acaba.
Nunca.
Assim como o meu sonho não tinha acabado lá em 2021.
É 2024 e eu tô indo para Paris. Eu juro!