Alma
É meio estranho o que eu vou contar… Porque eu não sabia de onde vinha nem como tinha começado, e demorei pra entender o significado. Mas em determinada altura da vida eu percebi que o amor, a paixão, a gratidão, a felicidade, tudo o que eu sinto pelo Flamengo não são coisas diferentes, ou que se possa separar. Está tudo junto, amarrado, concentrado numa forte sensação que agora me acompanha diariamente: a de que estou flutuando.
Pois é, eu avisei que era meio estranho.
Não é imaginação, alucinação, nada disso. É uma sensação física mesmo. Como se o meu corpo, sem a minha permissão, respondesse de um jeito poderoso às lembranças rubro-negras que me arrebatam — e elas são muitas e me arrebatam o tempo todo, vocês podem imaginar.
É confuso, eu sei. Mas vou tentar explicar melhor.
Sabe quando a gente passa um tempão no mar e depois, já em casa, vem aquela sensação de que continua na água, chacoalhando devagarinho nas marolas? É assim. Às vezes eu estou no carro, ou lendo alguma coisa, ou só indo até a cozinha buscar um copo de água e me recordo de uma partida, um gol, um lance qualquer, uma festa da nossa torcida… E pronto: começo a flutuar. É uma sensação boa, de tranquilidade.
Mas eu não compreendia essa coisa muito bem. Até que semana passada, pensando no aniversário do Flamengo, a bagunça na minha cabeça fez sentido. Foi quando eu lembrei de como era a nossa chegada ao Maracanã em dia de jogo. O nosso ônibus descia o viaduto que saía do Túnel Rebouças e, quando ele se aproximava da Praça da Bandeira, eu colava a cara na janela. Queria ver os torcedores, as camisas do Flamengo, as bandeiras, queria enxergar a expressão no rosto da galera lá fora que caminhava pro estádio.
“Legal, hoje vai ter casa cheia e o pessoal está animado!”, eu dizia baixinho pra mim mesmo. E então eu me sentia bem, muito confiante, agradecido, porque a partir dali não era mais o ônibus que me conduzia pro Maraca. Era aquele mar de torcedores. Eu flutuava. E flutuando iria aonde eles quisessem me levar.
Eu costumo dizer que futebol é dom e paixão. O dom pra jogar. A paixão pra torcer. Se as duas coisas acontecem na mesma pessoa, aí é sorte grande.
Mas eu não tirei a sorte grande. Eu tirei a maior de todas. Porque o cara lá de cima me mandou pra Terra com o dom pra jogar. E meu pai, um português que desembarcou no Rio e se apaixonou pelas cores do Flamengo antes de saber onde ficava o Corcovado, passou essa paixão pros seis filhos. Pra cada um que nascia ele comprava o uniforme completo: camisa, short e meião. Aí, um dos meninos, o caçula, acabou se tornando o maior ídolo da história do seu time do coração. O que mais eu posso querer?
Eu nasci, cresci e vou morrer rubro-negro.
Só lamento que, chegada a hora, vou partir levando uma frustraçãozinha: a de não estar na arquibancada do Maracanã no período em que eu jogava. Eu estava no campo, era ótimo, mas queria era estar com a torcida. É por isso que eu comemorava os meus gols indo na direção dela. Eu não corria pro banco, pro treinador, pros fotógrafos ou pra provocar a torcida adversária. Eu corria pro lugar onde queria estar.
Caramba, como eu queria ir lá com a galera e ficar pra sempre!
Vamos dizer que de alma eu estava lá, porque sempre fui um daqueles caras. Mas eu queria estar de corpo também. Quantas e quantas vezes marquei um gol, saí correndo, pulando e pensando: “Hoje eu vou mergulhar na geral! Hoje eu vou mergulhar naquele marzão rubro-negro!”. Mas o fosso do Maracanã, que tinha uns três metros de profundidade, me impedia. Então, essa frustração eu vou levar, infelizmente. Não dá pra ter tudo, né?
O Flamengo era uma negócio sério lá na nossa casa, em Quintino. Nossos cachorros chamavam Mengo, Mengão, Menguinho… Sempre. A gente tinha passarinho cardeal, uma coisa linda, maravilhosa, porque as penas dessa espécie são pretas, vermelhas e brancas. Tá vendo? Eu disse que era sério. E tirando os estudos, pois meu pai fazia questão de ter os seis filhos com diploma em faculdade, era Flamengo acima de tudo.
Uma vez ele hasteou no telhado a bandeira preta e vermelha mais alta que a bandeira do Brasil. Aí passou na rua um professor de sociologia que tocou a campainha pra reclamar. Disse que não podia, que era a pátria primeiro, essas coisas. Meu pai botou ele pra correr: “Na minha casa mando eu, sai daqui!”. Esse era o Seu Antunes.
Na mocidade, meu pai trabalhava numa padaria e era goleiro de um time amador. Chegou a ser chamado pra treinar no Flamengo, imagina só!, mas o patrão dele, que era vascaíno, não permitiu. Disse que se ele fosse seria demitido. Como o velho precisava do emprego, não foi. Depois ele abriu uma alfaiataria. Às vezes eu saía da escola, ia lá passar o dia com ele e era bonito de ver: a dedicação com que ele cortava os tecidos, costurava, passava… Ele dizia que a roupa era importante pro cliente conseguir um emprego, ou pra visitar a família da noiva pela primeira vez, então tinha que dar tudo o que ele podia em cada ponto, cada bainha. O capricho no trabalho era o orgulho e a dignidade do meu pai.
Por isso, eu sempre soube de onde vieram a minha dedicação e meu entusiasmo pra jogar bola, jogar pelo Flamengo. Vieram do flamenguista mais apaixonado que eu conheci.
Desde muito cedo, depois dos treinamentos coletivos, eu ia pro Carecão, um campo de terra batida e esburacado que existia na Gávea, e continuava treinando passe e finalização, que são as ferramentas básicas do jogador de futebol, a agulha e a linha do alfaiate. Também batia umas 80 faltas todo santo dia, até anoitecer.
Como meu pai, eu queria dar tudo o que eu podia por aquele monte de gente que contava comigo e que eu via da janela do ônibus a caminho do Maracanã.
Meu capricho no trabalho era importante pra eles. E entender isso foi determinante na minha carreira. Eu queria conquistar o mundo, sim. Mas trabalhando com dedicação pelo meu time e com a magnética me carregando.
O Maracanã virou o lugar onde eu me sentiria mais confortável na vida.
- Zico
São mais ou menos da época da alfaiataria do velho as minhas primeiras memórias do Maracanã. Fui a três decisões seguidas. A primeira, pouco depois do meu aniversário de oito anos, um Flamengo x Corinthians pelo Torneio Rio-São Paulo de 1961. Ganhamos de 2 a 0 e fomos campeões. Comecei bem.
Na terceira, em 1963, veio o meu primeiro título carioca torcendo pelo Flamengo no Maraca: 0 a 0 num Fla-Flu em que a gente jogava pelo empate. Esse jogo é recorde de público pagante no Maracanã até hoje: 177 mil pessoas — mas devia ter umas duzentas mil no total.
Tem um fato curioso sobre essa partida que eu soube quase 20 anos depois. Em 1981, quando a gente foi campeão mundial no Japão, contra o Liverpool, eu senti uma falta imensa da nossa torcida. Muita mesmo. Naquela época, não era comum viajar pro outro lado do mundo pra ver futebol, acompanhar o time e tal. E o Japão nem tinha futebol profissional ainda. Os caras viam chutão pro alto e aplaudiam achando que era beisebol.
Então, a coisa toda foi meio fria. Eu cheguei a comentar com o Júnior: “Poxa, já pensou conquistar um título desse tamanho no Maracanã abarrotado como naquele Fla-Flu histórico de 1963?”.
Foi aí que eu fiquei sabendo que o Júnior, meu amigo, companheiro de tantas alegrias e algumas tristezas, também estava na arquibancada aquele dia. Era mais um pirralho espremido, extasiado, flutuando no mar rubro-negro.
Não sei se o Júnior garotinho curtia, mas naquela idade eu adorava jogar botão. Passava a tarde organizando campeonatos imaginários. Eu brincava sozinho mesmo, controlando os dois times. Tinha botões de vários clubes do Rio, de São Paulo, Minas, mas só o Flamengo acabava campeão. E o artilheiro era só um: o Dida, meu ídolo. Minha mãe, dona Mathilde, contava que, depois de “papá” e “mamã”, a primeira palavra que eu falei foi Dida, porque, quando eu nasci, em 1953, o Flamengo foi campeão e, em 1955, quando comecei a balbuciar alguma coisa com sentido, foi tri, com quatro gols do Dida.
Durante um bom tempo, o meu Maracanã foi a mesa de casa onde eu jogava botão, lá na rua Lucinda Barbosa, número 7. E o Flamengo, uma parte fundamental da família Antunes Coimbra, do cachorro ao passarinho. Eu só passei a ir ao estádio com frequência tempos depois. Os meus irmãos mais velhos, o Edu e o Zeca, eram jogadores e, por isso, sempre estavam lá, trabalhando. Mas eu, o caçula, protegido, não podia ir sozinho. Meus pais trabalhavam, não conseguiam me levar.
Mas, aos 14 anos, eu fui jogar no Flamengo e comecei a ficar muito tempo no Maracanã. Porque o Celso Garcia, jornalista da Rádio Globo, que tinha me levado pra treinar na Gávea, passava em casa e me carregava com ele pro estádio. Só que o Celso chegava bem antes das partidas começarem. Ele abria a transmissão ao meio-dia. Foi aí que o Maracanã, de mesa dos meus botões, virou o lugar onde eu me sentiria mais confortável na vida, onde ainda hoje, apesar das reformas, sou capaz de correr de olhos fechados, pois conheço cada cantinho.
Ah, Maraca, que saudade eu tenho de você! É a minha casa mais do que a minha casa.
A minha primeira partida lá foi em 1970, quando Carlinhos se despediu do Flamengo e eu, ainda na escolinha, representando a nova geração de jogadores do clube, recebi as chuteiras dele. São tantas memórias… Guardo duas em especial, uma com carinho, outra com pesar. A com carinho foi quando vesti pela primeira vez a camisa 10 que me acompanharia por tantos anos, que marcaria a minha existência, definiria o meu destino, a 10 preta e vermelha que seria a minha tatuagem. Era um Flamengo x Botafogo pelos juniores. Eles abriram o marcador e ficou 1 a 0 até mais ou menos a metade do segundo tempo, quando lancei o Fidélis e ele foi derrubado dentro da área. Peguei a bola pra bater o pênalti.
Flamengo campeão! — essa, pra mim, é a combinação de palavras mais bonita que pode existir.
- Zico
Era dia 14 de março de 1971, e eu tinha acabado de fazer 18 anos. Minha família toda na arquibancada. O Edu ficou tão nervoso que quis ir embora antes da cobrança. Minha mãe e meu pai rezavam. E o Zeca tinha certeza que eu faria o gol. Dei uma olhada em volta: o Maraca lotado, lotadinho, porque era uma preliminar do time profissional, mas me assustei com o silêncio. Dava pra ouvir os carros passando na avenida, de tão quieto que o estádio ficou. Corri pra bola. E, de repente, eu percebi meu corpo leve, uma coisa muito boa. Era a galera me carregando como a marola do mar. Gol! Gol! Gol!
Olha, não sei se foi a emoção, mas eu acho que senti até o gramado tremer, tamanha a festa, a gritaria, uma algazarra inesquecível. Eu conhecia bem aquela festa. Eu sabia o que significava estar na geral e quase morrer de felicidade com um gol do Flamengo. Então eu corri pra torcida, pra gente poder compartilhar aquela alegria. Tem rostos que vi naquele dia que eu nunca mais esqueci. Olhei em olhos que me emocionam até hoje. A partida terminou empatada, mas o resultado foi o de menos pra mim.
Porque nesse dia do meu primeiro gol no Maracanã, o dia em que vesti a 10 do Flamengo pela primeira vez, eu tive uma das maiores certezas da minha vida: a nossa torcida ganha jogo, sim. Nossa energia é uma coisa absurda.
A outra data marcante no Maracanã foi o 29 de agosto de 1985. Vocês conhecem a história: foi o dia em que me arrebentaram o joelho esquerdo.
Precisei de quatro cirurgias e uma recuperação longa, dolorosa, cheia de altos e baixos: num dia eu tinha certeza de que voltaria a jogar, no outro achava que nem conseguiria andar.
Foi um período muito duro.
O que mais me doía, porém, era pensar em encerrar a carreira daquele jeito, sem me despedir dos torcedores do Flamengo. Eu não queria ser como aquele pai ou marido que sai pra comprar cigarro e não volta nunca mais. De jeito nenhum. Eu não ia deixar uma lesão me aposentar. Daria tudo o que podia pra voltar e, quando fosse pra parar, a decisão tinha que ser minha, do jeito que eu quisesse, quando eu quisesse e com a Nação rubro-negra comigo.
Então eu voltei, joguei, fiz mais gols. Mas, se eu pudesse viajar pro passado e visitar aquele moleque franzino que jogava botão em Quintino, eu ia dar um toque pra ele:
“Olha, Arthurzico, vai ter um jogo no Maracanã contra o Bangu que você não precisa fazer igual seu pai na alfaiataria. Não precisa caprichar tanto. Na bola dividida, você não vai nela, não. Você pula! Deixa a bola, que é pra não se machucar. E fica tranquilo que a torcida vai te entender.”
Não sei se o conselho surtiria efeito, se me faria tirar o pé da dividida. Mas, se isso acontecesse, tenho certeza que a torcida entenderia, sim. Ela sempre foi muito generosa comigo — na verdade, com qualquer jogador do Flamengo que, na bola e no suor, lhe retribua tanto amor.
Eu tive a chance de constatar isso no campo e na arquibancada, várias e várias vezes, como jogador, torcedor, comentarista, dirigente… Em 2017, por exemplo, depois de bastante tempo indo ao Maracanã só para analisar jogos, eu voltei como torcedor.
Só torcedor.
Decisão do Campeonato Carioca, um Fla-Flu daqueles. Fomos todos: meus filhos, meus netos, todo mundo lá pra ver o Mengo campeão. Tem vídeo meu por aí abraçado com um torcedor e cantando aquela música “Favela-aa! Favela-aa! Festa na Favela!”. Eu estava em êxtase, maravilhado de poder experimentar tudo aquilo de novo.
Mas aí, como se fosse pouca coisa pro meu coração, depois de um escanteio batido pelo Fluminense, a bola cai no pé do Rodinei, na nossa intermediária. E ele dispara. A cada passo dele em direção ao gol, eu me sinto um pouco mais leve. A cada toque na bola, eu saio um pouco de mim. Gol! É gol! Gol! É campeão! Flamengo campeão! — essa, pra mim, é a combinação de palavras mais bonita que pode existir, em qualquer idioma.
E então, mais uma vez, eu estava inteiro, completo, emocionado, abraçado. Eu estava onde eu sempre quis estar: flutuando no nosso marzão rubro-negro.