Vitória Chegou
“Luta.”
Essa palavra, cara…
Se tiver de escolher uma pra resumir minha história, não tem outra.
É luta, mano!
Tá certo que hoje eu sou campeão do UFC. Estou aqui, com o cinturão do lado, vivendo o ápice da minha carreira. Mas não tô falando de luta nesse sentido, não.
É luta de verdade. Luta real.
Quem vem da favela, luta o tempo todo. Luta por sobrevivência, por dignidade, por reconhecimento… Para contrariar as estatísticas.
Já sei, você deve estar se perguntando: “Por que sua luta é diferente de tantas outras por aí?”.
A minha não é uma qualquer, muito menos só minha. É uma luta de cinco rounds. Para chegar ao final, por mais que você bata, também precisa aguentar muita porrada.
Ladies and gentlemen, muito prazer! Se você ainda não me conhece, sou Charles “do Bronx” Oliveira, e esse é o combate que eu – já vou logo avisando – jamais desistirei de lutar.
Round 1: A internação
Todo mundo que me vê assim, com esse cabelo descolorido, pensa que eu sou surfista.
Sei nem nadar, irmão. Male, male vou à praia.
Eu venho do Guarujá, lá da Vicente de Carvalho, minha comunidade. Cresci como uma criança normal da favela. Jogando futebol, bolinha de gude, soltando pipa e esses bagulhos de vila. Também tinha a turminha vida loka, mas sempre procurei não me envolver com coisa errada, tá ligado?
Foi nessa fase que eu tomei um golpe baixo. Um golpe do destino, que quase me leva a nocaute. Tinha uns 10, 11 anos quando recebi o diagnóstico das mãos do médico:
Reumatismo nos ossos. Sopro no coração.
Que parada é essa, doutor?, já desesperei.
Mal sabia eu que o primeiro round seria logo o mais duro de toda minha vida, porque não dependia do meu esforço nem da minha determinação. Não dependia de mim, mas somente da minha saúde e da vontade de Deus.
Foi pesado, cara. Dois anos internado no hospital. Só ia pra casa nos fins de semana e, na segunda-feira, já voltava pra maca. Eu ficava sozinho lá a maioria dos dias, comendo comida sem sal nenhum.
Fazia exame o dia inteiro. O médico que me acompanhava tinha acabado de se formar. Ele me virou do avesso tentando descobrir a verdadeira causa do problema no coração e da fraqueza nos ossos. Raio-x pra cá, ressonância pra lá e… Nada! Até o dia em que ele vira pra minha mãe e fala um negócio que praticamente matou minhas esperanças.
“Daqui pra frente, seu filho não será uma criança normal. Vai precisar de tratamento pelo resto da vida.”
Correr, jogar futebol? Nunca mais! O médico me proibiu.
Porra, imagina uma criança de favela que não pode brincar na rua? Cê é loko!
O pior ainda estava por vir. Além de ficar só deitado em casa, eu tinha que tomar injeção de Benzetacil de 15 em 15 dias. Essa rotina foi me consumindo aos poucos. Então, eu virei para o meu pai e desabafei.
“É o seguinte: se for pra ficar nessa vida parada, eu prefiro morrer. Chega!”
Mesmo preocupado, ele me apoiou. Um vizinho lá do bairro tinha chamado eu e meu irmão para conhecer um projeto social. É aí que o jiu-jitsu muda tudo pra mim. O médico tinha sido bem claro. Eu não poderia nem pensar em praticar esporte, muito menos de impacto. Vou lá e escolho começar pela luta. Suave… Hahhaha!
Na verdade, eu escolhi lutar. Não me conformava com a ideia de ficar prostrado numa cama. Mas sofri bastante no início. Chegava do treino com o corpo dolorido e ia direto tomar um banho quente. Não contava pra ninguém. Só dizia que tava cansado, precisava dormir mais cedo e já me enrolava debaixo das cobertas. Em época de frio… Mano! Parecia que meu corpo ia entortar de tanta dor nos ossos. Eu me contorcia todo entre o colchão e o cobertor, mas não conseguia me aquecer.
Com o tempo, comecei a engatar nos treinos e as dores sumiram, acredita? Muita fé em Deus. Hoje, não tenho mais sopro nem reumatismo. Os tempos de Benzetacil ficaram para trás. Porém, nada disso seria possível sem o sacrifício dos meus pais.
Round 2: A família
Sabe quando você espera o ano inteiro pra ir numa festa? Você se arruma todo, bota sua melhor roupa, quer aproveitar ao máximo esse momento. Foi numa dessas que eu realmente entendi qual era a minha condição, a condição dos meus pais.
No meio da festa, vejo minha mãe tirando um daqueles sacos pretos da bolsa. Um saco de lixo enorme.
“Que é isso, mãe?”, eu dou um pulo da cadeira, assustado.
Visivelmente, ela não tá confortável com a situação, mas só diz pra eu continuar curtindo a festa. Então, ela sai com meu pai e pergunta pro dono do lugar se eles podem catar as latinhas de refrigerante e cerveja que o pessoal larga em cima das mesas. Ali acaba a festa pra eles. Sabe o que eu quero dizer, né?
– Moço, essa latinha é de alguém?
– Não, não é de ninguém, minha senhora. Pode pegar.
Todo mundo vai embora e eles continuam lá, recolhendo latinha, garrafa, pedaço de plástico e tudo mais que conseguem enfiar no saco. Somos os últimos a sair da festa. Mas eles mal aproveitaram.
Meus pais são meus heróis. Para eu poder lutar, eles tiveram que lutar por mim.
- Charles Oliveira
Na hora que você descobre a realidade da sua família, é complicado, mas depois se acostuma. Não só em festas. A gente tá na praia, numa boa. De repente, meus pais somem. E aí eles aparecem lá longe catando latinha na areia. Isso virou a nossa rotina.
Nos fundos da casa da minha avó, tinha um corredor entupido de garrafa, papelão, sacola e latinha, que eles juntavam pra vender na sucata. Esse era o trampo das “horas vagas”. Durante a semana, eles saiam de madrugada pra feira. Na parte da tarde, meu pai ia trabalhar no matadouro, e minha mãe dava faxina numa escola.
Várias vezes eles ficavam sem conversar um com o outro. Minha mãe descobria que meu pai tinha deixado de pagar conta de água, conta de luz… Adivinha por quê? Ele usava o dinheiro pra bancar nossas viagens, as minhas e as do meu irmão, para os campeonatos. Fazia de tudo para que a gente não abandonasse o esporte. Mas minha mãe, que sempre foi muito certinha com as paradas, ficava louca com isso.
Só que meu pai sabia o quanto aquilo era importante pra gente, especialmente pra mim.
Eu já tinha feito caratê e capoeira, mas nada me deixou tão apaixonado como o jiu-jitsu. Lembro da minha primeira luta. O tatame amarelo, de lona ainda. Um dia especial, tirando a parte da minha adversária. Tomei um pau da menina. Foi bom pra ficar esperto! Hahaha.
Quando entrei na academia, tinha uma mesinha no cantinho cheia de revista. Ronaldo Jacaré, Roger Gracie, Demian Maia, só os feras... Daí eu falei: “Um dia vou tá na capa dessa revista aí, vocês vão ver”. Os moleques caíram na risada. “Nunca treinou jiu-jitsu na vida e já quer aparecer em revista.”
Eu sempre fui sonhador.
Tá aí um troço que puxei da minha mãe. Ela sempre disse pra gente sonhar alto, nunca pensar pequeno. Mas até ela entender que o meu sonho era a luta, custou, viu? Ô, mulher invocada! Quando falei que ia largar os estudos pra correr atrás do meu objetivo, a gente tretou feio. Clima ruim em casa.
Agora eu entendo o lado dela. No fundo, ela, que não sabe ler nem escrever, tinha medo da gente passar o que ela passou. Sem contar o medo de que alguém me machucasse. Ela ficou uns três meses sem falar comigo e com meu pai na hora que soube que eu, magrelinho de tudo, tinha entrado para o MMA.
Mas prometi que eu seria o melhor do mundo. Depois de muita discussão, ela finalmente compreendeu que não ia mudar meu pensamento. E me deu um conselho que sigo até hoje:
“Se for pra fazer, que faça bem feito.”
Então, foi isso que eu fiz. Via meus coroas chegando em casa mortos de tanto trabalhar, e saía pra lutar com uma pressão da porra nas costas. “Eu não posso perder. Não posso perder!” Por isso eu digo que meus pais são meus heróis. Porque, para eu poder lutar, eles tiveram que lutar por mim.
Round 3: A espera
No Guarujá, o pessoal se reunia num lugar chamado Açaí Bar para assistir às lutas do UFC. Eu ainda tava me firmando no MMA, mas já falava pra galera: “Qualquer dia vocês estarão sentados aqui para me assistir”. Um monte de gente riu de mim, que nem no meu primeiro dia na academia.
Não deu dois meses, mais ou menos, e eu assinei contrato com o UFC. O Fábio, dono do bar, me mandou um vídeo na noite da minha estreia. Todo mundo jogando cadeira pro alto, aquela loucura, quando eu finalizei o Darren Elkins com 40 segundos de luta. Quebraram o Açaí do cara inteiro. Hahaha!
Até outro dia, eu tava no bar com a galera. Só me dou conta de que eu realmente tinha pisado no octógono quando o Bruce Buffer anuncia meu nome e solta aquele grito:
“IIIIIIIIIIIIT’SSSSS TIIIIIIIIIIMEEEE!!!”. Que daora, mano!
Mas nem tudo acontece como a gente projeta nos sonhos. Depois da estreia, os resultados não vieram em sequência. Ganhava uma, perdia outra. Ganhava duas de novo, agora vai… E perdia mais duas. Cheguei a ficar mais de um ano sem ganhar. Nessas horas, a gente percebe que alguns amigos vão sumindo. Os tapinhas nas costas desaparecem.
Numa luta no México, talvez por causa da altitude, sei lá, eu não consegui bater o peso. Me trancava na sauna, suando pra caraca, e não descia de jeito nenhum. Merda, 30% do meu dinheiro pro adversário. É foda reconhecer, cara... Se olhar no espelho e dizer: “Pô, mano, eu falhei!”. Na luta é assim. Quando você falha, você paga por isso.
Para os moleques que chegam dizendo que querem virar lutador, a primeira coisa que eu pergunto é:
Tá disposto a pagar o preço?
E é um preço muito mais alto que ser multado no cachê. Seus amigos vão a uma festa, mas você não pode ir. Vai escutar muitas mentiras sobre você. Vai receber um monte de mensagens te xingando na internet. Vai perceber que muitos dos que se diziam amigos, na verdade, torcem contra o seu sucesso. Ou se afastam de você depois das derrotas.
Lutar é fácil. Tem que saber quem realmente tá disposto a pagar o preço.
Eu sempre estive. Quando perdi para o Paul Felder, voltei pra casa transtornado. Não só por descobrir que eu tinha errado na luta, mas que estava errando durante todo aquele tempo. Nessa época, minha filha nasceu. A Tayla virou a chave da minha vida. Passei a treinar mais. Musculação, wrestling, chão, boxe, tudo!
Eu tinha de ser mais forte. Então, eu seria o mais forte.
Acabei descobrindo também que, na luta, o cara que ganha não é o que bate mais, mas o que erra menos. É como num jogo de xadrez. Um jogo traçado, de calma. Quem tem a estratégia certa, vai lá e… Xeque-mate. As pessoas dizem: “Ah, seu jiu-jitsu é um fenômeno”. Não, meu jiu-jitsu é o arroz com feijão. O que aparecer de oportunidade, vou lá e… Xeque-mate.
Quando comecei no esporte, não entrei para ser qualquer um. Quantos caras no mundo querem ser jogadores de futebol? Tem um bocado. Mas quantos são um Neymar, um Messi, um Cristiano Ronaldo?
Eu não queria ser só mais um na luta. Pra isso, eu entendi que precisava me entregar mais. Não basta ser fenômeno. Tem que se dedicar 100% à coisa, em tempo integral. E, sim, ter paciência.
Já tinha me tornado o maior finalizador da história do UFC. Quase 30 anos nas costas, 40 lutas no cartel. Sentia que estava chegando meu momento. Depois de oito vitórias seguidas, resolvi mandar o papo reto pro Dana White.
“Não sou mais um menino. Acredita em mim!”
Round 4: A consagração
Ainda em janeiro, eu já sabia que este seria o ano da minha carreira. O ano da virada, do chacoalhão. E eu queria provar isso para mim mesmo, de um jeito, digamos, simbólico.
Sempre tive vontade de montar num boi. Fui pro rodeio de Sete Barras, no Vale do Ribeira, onde a gente tem um sítio, com a decisão já tomada. É hoje! Eu vou montar num boi!
Meus amigos me ligaram assim que souberam que eu tava indo pra arena. “Tá louco, Charles? Lutador do UFC montando em boi? Perdeu o juízo?”. E eu nem tchum.
Participei da oração antes de começar o rodeio. Pô, de arrepiar. Aí pedi para montar. “Só pra bater uma foto”, falei pros caras. Eu lá, de camiseta, bermuda jeans e tênis Nike no pé. Segurei no brete e meti o loko. “Não vou descer daqui, não. Solta esse bagulho aí!”. Hahahhaha!
E não é que os caras soltaram?
VULPT! VULPT! VULPT! VUUUULPT!!!
O bichão pulou umas quatro vezes e me derrubou. Caí antes de bater o tempo, mas nem me importei. Saí correndo na maior felicidade, realizado. Eu sou desses, cara. Se tiver de fazer algo, não deixo pra amanhã.
Mas uma coisa eu guardei só pra quando chegasse o momento. O meu momento. Nunca encostei um dedo no cinturão. Tive várias oportunidades, mas sempre recusei. Dizia que só tocaria nele quando fosse meu.
Chega o dia tão sonhado, da luta pelo título. Já imaginava que o primeiro round contra o Michael Chandler seria duro. E ele acreditou mesmo que acabaria comigo logo no início. Pode reparar que eu apanho muito, mas levanto como se nada tivesse acontecido quando zera o cronômetro. Bate mais da próxima, irmão…
Eu falei que a luta é como um jogo de xadrez, lembra? Pois é, tem que saber dosar a força e esperar a hora certa de cair pra dentro. Começa o segundo round. Ele vem batendo de novo, mas, dessa vez, eu revido. Ali o cara já sente, e tome pedrada na ponta do queixo.
POW! Xeque-mate.
Mano, tem uma parada curiosa. Eu enxergo muito pouco. Se tirar o óculos na rua, fico cego. Vejo tudo embaçado. Mas, graças a Deus, isso nunca me atrapalhou na luta. Se tô batendo nos caras desse jeito, imagina, então, depois que eu operar? Hehehe.
Quando entrou o cruzado, eu pude enxergar perfeitamente, bem ali, diante dos meus olhos.
Enfim, havia chegado meu momento de tocar o cinturão.
Round 5: A permanência
11 anos.
Mais precisamente, 3908 dias.
Esse foi o tempo que eu tive de esperar para ter a chance de me tornar campeão do UFC.
Porra, na hora que o Dana coloca o cinturão em mim, eu não acreditei. Fecho os olhos e esfrego as mãos sobre ele, alisando com os dedos, pra saber se era de verdade. Ainda de olhos fechados, me vêm algumas imagens na cabeça.
A comida sem sal do hospital.
Meus pais catando latinhas na festa.
A galera do Açaí desacreditando de mim.
O Charles sonhador montado no boi.
Todas as batalhas que eu tive de vencer para chegar até ali.
Mas se você pensa que o auge é ser anunciado como novo campeão mundial, tá enganado, cara.
Nada se compara ao que eu senti quando voltei pra Vicente de Carvalho com o cinturão.
Mano, não sei de onde saiu tanta gente. Muita gente mesmo, tá ligado? As ruas da comunidade lotadas. Todo mundo querendo me dar um abraço.
E sabe o que é mais legal? Eu conseguia reconhecer o rosto de cada um. Minha família, meus amigos de infância, os parceiros da academia, os netos da vizinha… Pô, era minha gente! Só gratidão pela forma como me receberam.
Jamais vou esquecer a chegada na rua da minha casa. Levanto o cinturão e a bandeira do Brasil e, lá de cima do carro dos Bombeiros, escuto a letra da canção de um camarada do Guarujá, que tem tudo a ver comigo:
Ôôô, vitória chegou... Deus abençoou.
Desço do caminhão e sou carregado nos ombros. Tem noção disso, mano? O moleque que cresceu ali na rua... Nos braços do povo. Meu povo!
Eu quero mostrar que o moleque que saiu da comunidade desbravou o mundo sem precisar entrar pra vida errada.
- Charles Oliveira
Faço força para erguer o cinturão o mais alto possível, mas eles nem imaginam que, naquele momento, meu maior troféu é a sinceridade no sorriso de cada um ao me cumprimentar.
Eu carrego o cinturão como se fosse uma chave na mão. Quero usá-lo para abrir portas. Comecei num projeto social. E hoje mantenho um projeto social no lugar onde comecei. Tá vendo como foguete não tem ré? Só anda pra frente. Olha onde a gente tá!
Aprendi com meu pai: “Chegar é tranquilo. Difícil é se manter.” Mas esse cinturão não vai embora daqui tão cedo.
Ajudar todo mundo que eu puder ajudar.
Não existe motivação maior para eu me esforçar ainda mais e permanecer como campeão. Hoje eu luto por prazer, por uma causa. Sem aquela pressão de não poder perder.
Se você ainda não entendeu qual é a minha luta, eu quero que você enxergue agora.
Eu quero mostrar que o moleque que saiu da comunidade desbravou o mundo sem precisar entrar pra vida errada.
Isso é o mais gratificante de tudo.
Sou um favelado que venceu na vida. E que vai continuar lutando para que outros não precisem esperar tanto tempo para ter sua chance de vencer.