O Gigante
Quando o Alex cruzou, a defesa deles afastou de cabeça, a bola veio quicando na minha direção, e eu me vi livre na meia-lua. Preste bem atenção, eu disse livre.
No Gigante da Beira-Rio, você nunca está sozinho.
Comigo eu sentia o amor da minha família, a ótima recepção dos meus companheiros no novo clube, e o apoio inflamado dos colorados nas arquibancadas.
No futebol e na vida, aquela bola que sobra na frente da área pode mudar a nossa trajetória.
E foi desse jeito que eu comecei, de fato, a marcar o meu nome na história do Sport Club Internacional.
Olhando para trás, o meu primeiro gol em um dos maiores clássicos do mundo foi um belo sinal de que havia uma linda jornada para ser escrita com a camisa vermelha.
Aquele chute não só abriu o placar da nossa goleada por 4 a 1 no Gre-Nal, em setembro de 2008, mas foi o pontapé inicial para valer na minha melhor decisão em 40 anos de existência: defender – e me apaixonar – pelo Inter.
No Beira-Rio, eu me consagrei como jogador. Melhor ainda, eu me realizei como ser humano.
A partir de agora, vou te contar como tudo aconteceu.
Dois meses antes daquele golaço, eu tinha desembarcado em Porto Alegre e, confesso, estava apreensivo.
Parece mentira, né?
No seu lugar, eu também duvidaria, cara. Afinal, por que alguém que acabou se identificando tanto com o Inter, numa relação intensa de 12 anos de amor e devoção pelo escudo, estava preocupado após ser contratado?
A verdade é que sempre admirei os jogadores brasileiros. Ronaldinho, Ronaldo Fenômeno, Rivaldo, Roberto Carlos... Meu Deus, quanto talento! E eu estava prestes a assinar contrato com um gigante do país desses craques.
A surpresa veio logo na minha chegada, que lembro até hoje. Era noite de inverno quando o avião pousou. Eu estava ansioso pelo primeiro contato com a torcida colorada e já pensava nas fotos e autógrafos que distribuiria no salão de desembarque. Até que...
¡No me lo puedo creer!
Eu não conseguia acreditar no que os meus olhos insistiam em me mostrar.
Centenas de colorados estavam no aeroporto para me recepcionar!
Bandeiras, fogos, os bumbos da Guarda Popular...
E tudo aquilo mesmo em dia de jogo, porque em poucas horas o Inter receberia o Santos na nossa casa!
Loucura o esforço que fizeram para me sentir bem-vindo desde o meu primeiro dia na cidade. Isso vale para todos os setores do clube – a diretoria, o elenco, a comissão técnica, o departamento administrativo, a tia do café, os seguranças...
Por outro lado, essa recepção gera expectativa e pressão, ainda mais em uma instituição com a grandeza do Inter. Nos anos anteriores à minha contratação, eles tinham sido campeões de quase tudo – até do Mundial! E contra o Barcelona... do Ronaldinho!
Depois que aquela bola estufou a rede do Victor, consegui sentir exatamente o que o Fernando Carvalho, dirigente do Inter, havia me explicado na reunião para negociar a minha transferência.
No nosso encontro, em Buenos Aires, ele me passou o sentimento do que é o Gre-Nal, e a importância do clássico para o povo gaúcho. Essa parte da conversa me tocou de uma forma especial, porque se encaixou perfeitamente com a filosofia que conduz a minha carreira:
Se vive como se joga e se joga como se vive.
Claro, eu havia vivido a rivalidade entre River Plate e Boca Juniors, na Argentina. Óbvio que já tinha ouvido falar sobre a batalha histórica no Rio Grande. Só que jogar um Gre-Nal é uma experiência incomparável.
Nasci em uma família apaixonada por futebol e sempre sonhei disputar grandes partidas. Em La Paternal, aproveitei muitos dias da minha infância idealizando dribles, passes e chutes. Na época, um portão verde na esquina de casa era o meu Beira-Rio.
Se alguém quisesse me encontrar depois do colégio, era muito fácil. Bastava só procurar pelo portão verde da rua, e lá estava eu, tentando imitar a genialidade do meu ídolo Rubén Paz.
Herdei do meu pai, Eduardo, a idolatria pelo Rubén, craque uruguaio do Racing. Mas nem nos meus melhores sonhos eu imaginei que um dia eu vestiria a camisa 10 que ele usou no Inter, onde foi tricampeão gaúcho nos anos 80.
Ao meu pai, também devo a perseverança na busca pelo meu desejo de ser jogador. Por diversas vezes eu voltei para casa decidido a desistir, mas ele e a minha mãe, Gladys, ofereceram apoio e me convenceram a continuar na luta. Não foi fácil.
Nem sempre eu seguia todos os conselhos deles e acabava pagando o preço por isso. Alguma dúvida sobre o apelido que ganhei do meu pai?
Cabezón.
Desde pequeno, nada veio de graça ou sem esforço para mim.
O meu pai suou muitas horas como taxista e depois como mecânico para conseguir comprar as minhas chuteiras.
A nossa casa era bem apertada, então a sala também servia de quarto para mim e para o meu irmão, Marcelo. Levarei para sempre na memória a imagem das nossas camas ao lado da mesa de jantar.
Ao longo da minha formação nas categorias de base do River Plate, onde iniciei aos 9 anos, quase nunca fui titular. O motivo? O meu tamanho. Praticamente todos os técnicos usavam a mesma justificativa para me deixar no banco de reservas.
Chorei muito. Muito.
Enquanto os meus amigos aproveitavam o final de semana para se divertir na rua, eu precisava dormir cedo, porque tinha compromisso importante no dia seguinte, jogo ou treinamento.
Hoje as pessoas enxergam o D’Alessandro que luta, briga e reclama. Eu me comporto assim porque valorizo as minhas origens e sei as dificuldades que enfrentei, com o incentivo dos meus familiares, para conquistar o meu espaço no futebol.
O Inter acreditou em mim em uma das melhores fases dos seus 112 anos de muitas glórias.
Valorizo as minhas origens e sei as dificuldades que enfrentei.
- Andrés D’Alessandro
Cara, sendo sincero, naquele momento na minha cabeça o meu futuro era na Espanha. Em 2003 o River tinha me vendido ao Wolfsburg. Depois de dois anos e meio na Alemanha, tive uma experiência na Inglaterra, no Portsmouth, e na sequência fui emprestado para o Real Zaragoza, que depois me comprou.
Como no início de 2008 a minha esposa, Érika, estava grávida de alguns meses do nosso segundo filho, Santino, decidimos voltar a Buenos Aires para o bebê nascer rodeado pela família. No San Lorenzo, a passagem por empréstimo foi rápida, mas suficiente para eu chamar a atenção do Inter.
Os colorados abriram muito mais do que as portas do clube para mim.
Cara, em Porto Alegre passei por uma experiência profunda e coletiva de pertencimento e empatia. A sintonia com os colorados aconteceu naturalmente. Foi amor à primeira vista.
O mais importante é que eu senti uma paixão pura e verdadeira em cada um dos 516 jogos em que tive o privilégio de vestir vermelho e branco.
Nós sentimos.
Às vezes eu não precisava falar nada (algo raro, eu sei). Só de olhar as arquibancadas eu entendia o sentimento colorado, o espírito guerreiro do Clube do Povo.
Com vocês, realizei o sonho de conquistar a América. Vencemos mais Gre-Nais do que perdemos – e sem quebrar códigos de dentro de campo.
Tive a honra de não só participar da festa de reinauguração do Beira-Rio, mas ainda escrever o meu nome no primeiro capítulo da nossa casa nova, com dois gols. Chorei. Muito.
Mais importante do que assistências, gols e títulos, no Gigante deixamos a rivalidade de lado e nos unimos para fazer o bem e acolher a população carente de Porto Alegre.
No Lance de Craque, os protagonistas são vocês.
Quem disse que colorados e tricolores não podem pelear juntos? Quando isso acontece, temos dois grandes campeões: a solidariedade e a esperança.
Esse é o Rio Grande que aprendi a amar. Sou argentino de nascimento e gaúcho de coração. Receber o título de cidadão honorário de Porto Alegre foi um orgulho para mim e para a minha família. Sentir o respeito de todos do estado não tem preço.
O meu filho mais novo, Gonzalo, prestes a completar seis anos, é brasileiro, gaúcho e, claro, C-O-L-O-R-A-D-O.
O Inter me proporcionou muito mais do que eu poderia sonhar. Tenho convicção de que nem em duas vidas eu conseguiria retribuir ao clube, aos funcionários e à torcida.
A minha despedida aconteceu no tempo certo e por decisão minha, mas não da maneira que eu idealizei. Do jeito que nós merecíamos.
Do aeroporto lotado na chegada às arquibancadas vazias por causa da pandemia do coronavírus. Das comemorações emocionadas nos 13 títulos às saudades dos nossos encontros inesquecíveis à beira do Guaíba.
A ausência dos últimos abraços e dos últimos beijos foi um golpe duro.
Pelo menos me despeço com a certeza de que deixei um legado para as próximas gerações: o de colocar o símbolo do Internacional acima de tudo.
Cheguei ao clube cheio de sonhos e saio com amor eterno pelo Colorado.
Sentimento que passei, com muito orgulho e carinho, para os meus filhos.
Assim como a Martina, o Santino e o Gonzalo já viveram a emoção de subir as escadas do túnel do Beira-Rio comigo, sei que sempre que os três quiserem voltar aonde o pai deles marcou época, o acolhimento à família D’Alessandro continuará sendo especial.
Como a história do Clube do Povo.
É o Inter!