Tem Que Respeitar
Eu não sou herói da América.
Sim, eu sei que faz algumas semanas desde aquela final histórica em Montevidéu, a segunda Libertadores conquistada em menos de um ano, e eu também sei que muitos de vocês têm vontade de vir me agradecer por aquele dia. Rolou até um #nuncacritiquei, que eu tô ligado.
Do fundo do meu coração, torcedor palmeirense, você não precisa entrar na fila pra pedir desculpas.
Digo isso porque, assim como você, eu amo o Palmeiras. E sei das coisas que fiz no passado, das c4g#das que cometi, e agora entendo que muitas daquelas críticas eram mais do que justificadas.
Todo torcedor alviverde quer apenas o melhor para o Palmeiras, e nesse ponto eu não sou diferente de vocês. Às vezes, mesmo no banco de reservas, me comporto assim, como um torcedor. Mas é difícil não ficar contagiado pelo canto que vem das arquibancadas.
Quem estava no Uruguai naquele 27 de novembro sabe do que eu estou falando. As lágrimas que desceram do meu rosto trouxeram à minha memória tudo o que eu passei ao longo da minha carreira. E eu queria compartilhar isso agora para que vocês conheçam um pouco da minha história.
Nunca foi fácil.
Mas Deus, minha família e alguns amigos sempre estiveram ao meu lado.
No começo, era para o meu irmão, Anderson, ser jogador de futebol. E olha que coisa de maluco, ele era goleiro.
O meu irmão tinha talento e chegou a atuar em clubes importantes do Brasil, como o Atlético Sorocaba, o Figueirense e o Vasco. Ele tinha tudo pra ser um atleta de destaque, mas um problema no joelho impediu que a carreira dele seguisse adiante.
Assim como meu irmão mais velho, às vezes, eu também ia pro gol, mas a minha ocupação principal era outra: eu vendia salgados na praia. Sim, até os 18 anos, esse era o meu trabalho.
Daí, quando o Anderson teve de parar de jogar, lembro que minha família ficou angustiada: todo mundo sabe que goleiro sofre. Então, passei a jogar na linha, como atacante.
Fui fazer testes em diversos clubes. Fui reprovado em vários. Tive que ouvir muitas vezes a palavra “não”.
— NÃO, não vamos ficar com ele.
— Ele não é o tipo de jogador que a gente quer.
— Aqui ele não joga.
Desde o início, aprendi que o futebol é assim. Foi aí que surgiu o Grêmio Mangaratibense, clube que me abraçou.
Mas, mesmo quando eu estava em Mangaratiba, eu não fazia ideia do que ia acontecer comigo.
Nessa época, passei por uma situação muito difícil. Eu era rejeitado pelos meus próprios companheiros de equipe.
É uma história triste. Eu era o cara do time, porque fazia gols e era querido pelo presidente. Mas os meus “amigos” de clube não me chamavam pra comer hambúrguer e tomar açaí com eles.
Uma situação surreal, porque a cidade de Mangaratiba tem um carinho enorme por mim e eu me dava bem com todo mundo.
Só que, como eu era novo e não tinha uma boa condição, os colegas de time iam lanchar e me deixavam lá sozinho na casa. Nem perguntavam se eu tinha fome, se eu estava bem… Não estou contando isso por rancor. Eu não guardo mágoas de ninguém. É só pra mostrar como eu fui rejeitado.
Como ao longo da minha vida, muitas vezes, tive que provar para as pessoas que desacreditavam de mim que eu tenho valor.
Pra ser sincero, acho que nem o agente que quis me levar para fazer um teste em Portugal imaginava que eu daria certo.
Só que as coisas estavam mudando. Já tinha 20 anos, não era mais um menino. É agora ou nunca!!, eu pensava.
Fui fazer o teste no Benfica B, num amistoso contra o Oriental. Estava no banco de reservas, e o jogo 0 a 0. O técnico me colocou faltando 10 minutos. Era a minha única oportunidade. Eu marquei dois gols. E nós ganhamos a partida.
E foi assim, de maneira improvável, que minha carreira como jogador decolou.
Depois desse dia, assinei um contrato de cinco anos com o Benfica, o que me abriu as portas para jogar em outros clubes em Portugal, como o Belenenses, e em outros países da Europa, como no Colônia, Levante e Alavés.
Cheguei até mesmo a jogar uma final da Copa do Rei contra o Barcelona. Não, nós não vencemos, mas eu aprendi como jogador de futebol que ganhar é muito bom, mas a derrota também ensina bastante.
O tempo passou.
E eu me lembro que estava jogando na Espanha, em 2016, quando recebi um telefonema do Alexandre Mattos e outro do Cuca.
— Como? Jogar no Palmeiras? É claro que aceito!
Foi o que eu disse para o meu empresário. Quem não gostaria de atuar em um dos principais clubes do mundo, que tem estrutura padrão internacional? Começaria ali uma relação intensa, apaixonada, de altos e baixos — mais altos do que baixos, na minha opinião.
Mas nessa primeira passagem muitos torcedores ficaram com uma impressão ruim a meu respeito.
E, não, ninguém precisa me falar porque sei direitinho o que eu fiz. Eu também reconheço que esse meu comportamento não agradou aos torcedores, e por isso aceito todas as críticas, que me fizeram evoluir. Só não me peçam para aceitar atos de violência.
Eu aprendi minha lição e mudei de atitude. Nas redes sociais, passei a transmitir outras mensagens. Em campo, me esforcei nos treinamentos e comecei a marcar gols nos jogos.
E eu consigo me lembrar de um dia muito especial dessa primeira passagem, o jogo do título do Campeonato Brasileiro de 2018. Foi em São Januário e, sim, eu fiz o gol daquela partida. O engraçado é que, na época, muita gente veio me perguntar como eu me senti fazendo gol contra o meu clube de infância. Não tem nem o que falar, né? Quer dizer, é verdade, quando criança, eu torcia para o Vasco, tem até foto minha que circulou bastante na internet, junto com o Eurico Miranda. Só que, além de eu ser funcionário do Palmeiras, que dá todas as condições para eu desempenhar meu trabalho, eu me tornei torcedor do clube.
Meu sangue agora é verde. Eu amo a Sociedade Esportiva Palmeiras.
E, quando a gente ama, sabe que tem que respeitar!
Só o torcedor palmeirense sabe o que é ser desrespeitado pelos adversários. Ninguém me contou. Eu vivi isso com vocês e com meus companheiros de equipe.
Na véspera das quartas de final da Libertadores, começou a falação. Que o São Paulo, nosso rival, era o favorito. Que nós iríamos perder outra decisão, como aconteceu na final do Paulista. Que o técnico do nosso adversário era melhor que o Abel — sim, o Abel, o técnico que em quatro meses ganhou uma Copa do Brasil e uma Libertadores, entrando direto para a história do clube e do futebol brasileiro.
Depois do empate no primeiro jogo, no Morumbi, disseram que nós seríamos derrotados na nossa casa. Que na Libertadores nós éramos fregueses do SPFC. E não era apenas a torcida do adversário que dizia isso. Setores da imprensa falavam besteira todos os dias naquela semana.
Agora, o resultado da volta todo mundo viu, né?
Esquece...
O jogo terminou 3 a 0 no Allianz — mas podia ter sido mais, porque dominamos a partida. Pela segunda vez consecutiva, estávamos na semifinal da Libertadores. Quantos clubes conseguiram isso na última década? Sim, eu sei, poucos.
Mas para determinados segmentos da imprensa e para os torcedores do Atlético Mineiro, nosso adversário nas semifinais, nós ainda éramos os azarões.
Só o torcedor palmeirense sabe o que é ser desrespeitado pelos adversários.
- Deyverson
Vendo de fora, o time do Atlético era muito forte e os caras pareciam imbatíveis. Jogando na nossa casa, teve o lance do pênalti, que tinha tudo para decidir a favor deles. Mas a bola bateu na trave.
Na partida de volta, muitos jornalistas e parte da torcida do Atlético ignoravam a força do Palmeiras, a nossa campanha fora de casa, e a capacidade do nosso técnico.
E o que as pessoas não sabiam é que esses comentários motivaram demais a gente.
Sim, eles saíram na frente, 1 a 0, gol no segundo tempo. E a torcida deles já sonhava com a final.
Logo em seguida, no banco, o gesto do Abel dizia tudo: “cabeça fria, coração quente”.
Era a senha para a nossa vez.
O Piquerez deu um passe em profundidade. O Veron ganhou a disputa com o zagueiro do Atlético e cruzou. E o Dudu, o baixola, estava na área. Daí, esquece… Gol de empate.
Depois desse jogo, quando fomos à segunda final consecutiva do torneio mais importante do continente, ainda tentavam nos desqualificar. Teve quem dissesse que nós jogávamos feio contra os nossos adversários.
Além disso, aconteceu um lance que me envolveu pessoalmente.
Quando o Veron pegou a bola eu já estava vibrando, e não percebi que entrei dentro do campo, como um torcedor. Eu sei que muita gente falou bobagem, porque ninguém aceita a qualidade do nosso time. Mas daí a querer a nossa desclassificação? Por esse motivo? Não dá pra entender.
Eu não atrapalhei em nada naquela jogada, mas teve quem cobrasse a anulação da partida.
A minha sensação é que só fizeram isso porque ninguém admite a força do Palmeiras. Mesmo na final, eles ainda não nos respeitavam.
Desde o começo do ano passado, nós ouvimos muita coisa sobre o Flamengo. Para a mídia, era o melhor time do Brasil e um dos melhores do mundo. Diziam ainda que o elenco era superior. E que numa final, com a força da torcida deles, seria impossível derrotar o Flamengo.
Então, quando fomos para a decisão, nós estávamos preparados. Já tínhamos nos acostumado com o fato de sempre o nosso adversário ser considerado o favorito. E, pra falar a verdade, foi melhor assim. Ganhar desse jeito tem um sabor diferente.
Nós não estranhamos a quantidade dos torcedores do Flamengo, nem nos abalamos com as músicas que eles cantavam e com as provocações deles.
O que ninguém esperava, a não ser os jogadores do nosso elenco, era a reação da nossa arquibancada. O nosso torcedor estava, sim, em menor número em Montevidéu, mas posso garantir que a decisão de 27 de novembro começou a ser vencida pela nossa torcida, que, nessa trocação, engoliu a do Flamengo.
É uma coisa difícil de explicar, mas aquela vibração deu uma força que trouxe segurança para a equipe. E não foi coincidência que nós entramos tão concentrados em campo. Nós estávamos tranquilos pelo que o Abel tinha dito na preleção e motivados pelo que o torcedor fazia nas arquibancadas.
Por isso que os nossos movimentos pareciam tão ensaiados no gol do Veiga. É claro que nós não queríamos, nem planejamos, sofrer o empate, mas isso não abalou a nossa confiança. Sabíamos o que tínhamos de fazer. E agora eu preciso contar o que se passava na minha cabeça antes de entrar em campo.
Na véspera do jogo, alguns companheiros falavam pra mim.
— Já pensou se você faz o gol do título?
Primeiro, foi o Jorge. Depois, eu fui no quarto do Willian Bigode, e daí ele e o Mayke falaram a mesma coisa. Eu não tinha pensado nisso, mas comecei a acreditar.
Do outro lado, além de um time forte, tinha um goleiro de alto nível, o Diego Alves. Ele é um velho conhecido meu, dos duelos do futebol espanhol. É difícil fazer gol nele. Mas até para esse encontro Deus preparou tudo como deveria ser.
Quando me lembro daquele momento, acontece tudo muito rápido. Mas acho que o torcedor palmeirense vai se recordar.
O Flamengo sai com a bola, e eu aperto na marcação e faço a falta no David Luiz. Depois, é o próprio David Luiz que toca a bola pro Andreas, eu faço a pressão com o pé direito, aquele que é só pra subir no ônibus e olhe lá, e a bola fica nos meus pés. Nessa hora, não dá pra inventar muita coisa, mas eu consigo ouvir a voz de Deus:
“Vai, filho, é a tua oportunidade.”
Também me recordo das palavras do Scarpinha, que tinha me dado uma dica:
“Deyverson, tenta bater girando o pé um pouco. Finge que vai bater no canto e gira o pé.”
Foi o que eu fiz.
E não é que o Scarpinha, meu Deus do céu, o homem das bolachas trakinas com leite condensado, estava certo? Hahaha!
Eu já tinha enfrentado o Diego Alves antes, mas nessa final, naquele instante, eu estava mais confiante.
Aí, quando o pai dá o tapa na bola… Esquece!
Não, eu não sou melhor do que ninguém. E eu aprendi isso a duras penas, de um jeito mais difícil.
Antes de chegar aonde cheguei, fui rejeitado por treinadores e por torcedores que não acreditavam no meu futebol. Fui rejeitado pelos meus companheiros que não me chamavam pra sair com eles. E até mesmo quando eu conquistei meu espaço, na chance da minha vida, teve quem fizesse pouco de mim.
Foi um jogador do Flamengo, que, logo depois que eu entrei, olhou pra mim disse o seguinte:
— Vish, olha quem entrou, o presepeiro.
Eu sei que esse tipo de provocação faz parte do futebol. Se não tiver isso, fica muito mimimi. Mas acho que a pessoa que me falou isso não sabia das forças que estavam me protegendo.
Assim que entrei em campo, com a torcida toda gritando, beijei as tatuagens das minhas avós. Falar da dona Creusa e da dona Doralice é motivo de gratidão pelo que elas significam para mim e para os meus pais. Por isso, prometi a elas retribuir para as minhas primas e para as minhas tias o mesmo que elas fizeram por mim.
Então, talvez esse jogador quisesse que eu sentisse a pressão, mas naquele momento eu vinha forte, porque estava sendo carregado pelos braços e pelas orações daqueles que gostam de mim.
Das minhas avós, me guiando lá de cima.
Dos meus pais.
Da minha mulher e das minhas filhas.
Dos meus companheiros de clube, do meu empresário e da minha assessoria, que não me abandonaram.
Quando as coisas não dão certo, são eles que me protegem e que sofrem por mim. E é por isso que não tolero ameaças nem agressões. Todo mundo tem direito a fazer críticas — e eu agradeço muito por isso, pois me fizeram um homem melhor —, mas as pessoas têm de entender que quem veste a camisa do clube é um ser humano, que tem família, filhos, esposa e amigos que o amam.
Não foi apenas pela emoção de ter feito aquele gol que eu chorei. Foi também porque, num instante, logo depois que a bola estufou as redes e de eu ter corrido e recebido o abraço dos meus companheiros, me senti envolvido pelo carinho da torcida. Pelas mensagens de apoio e pela proteção da minha família. E pelo cuidado dos meus amigos de verdade.
Não, torcedor, eu não sou o herói da América.
Eu sou o Deyverson, que lutou com muita humildade pra chegar aqui. Muitos achavam impossível que eu me tornasse jogador profissional, ainda mais de um clube grande como o Palmeiras.
Mas também muitos duvidavam que o bicampeão da Libertadores tinha condições de conquistar o Tri.
Agora, tá chegando outra decisão, e eu sei que já tem gente falando mais um monte de besteira. Aliás, cadê a filha daquele treinador, que tinha comprado ingresso antecipado para o Mundial? Não tem problema não, viu? Se for vender, tenho certeza que nosso torcedor vai querer. Na mídia, alguns insistem em nos provocar, dizendo que não temos chance.
Deixa… Isso tudo faz parte. Mas o jogo é jogado dentro de campo.
Pode rir, mas não desacredita, não.
Em toda minha vida, eu aprendi que os rejeitados também podem ser vencedores.
Tem que respeitar o Deyverson.
Tem que respeitar a nossa história.
Tem que respeitar o Palmeiras.