É Uma Menina

SEAN M. HAFFEY/GETTY IMAGES

Eu queria que você imaginasse uma cidadezinha, localizada no sul do Brasil, perto da fronteira com a Argentina. Como toda cidade pequena, há uma praça central. E como toda praça central no Brasil, tem um pessoal lá jogando futebol. Quer dizer, meninos jogando bola. A não ser por uma pessoa. No meio dos meninos, correndo, passando, chutando, tem uma menina de seis anos de idade.

Eu.

Jogar futebol no meio dos meninos não era difícil, ao menos não para mim, não mesmo. Na verdade, eu fui tratada muito bem.

O único e verdadeiro esforço que eu fazia era levar aquele carrinho horrível gigante na frente deles.

A história é a seguinte: meu pai tinha esse carrinho de comida. Ele vendia cachorro-quente, salgadinhos e bebidas na praça. O carrinho tinha o formato de uma laranja. Uma horrível laranja gigante. Meu pai colocava as bebidas lá dentro e daí removia a tampa da laranja, então as bebidas eram guardadas ali para ficarem geladas.

Eu simplesmente odiava ter de ajudar meu pai, mas quando eu desobedecia, ou me comportava mal, ele me botava para ajudar até que eu finalmente tivesse permissão para jogar futebol.

E o pior castigo que eu podia receber era ter de levar o carrinho para outro lado da praça. Eu ficava com vergonha de ser vista com aquele carrinho gigante na frente dos meus amiguinhos – besteira de criança, eu sei. Mas meu pai me fazia atravessar a praça de propósito. É claro, ele fazia isso como uma lição de vida.

Ah, não, isso não, eu pensava, mas eu ia de qualquer maneira.

Foi o primeiro pequeno sacrifício que eu fiz pelo futebol.

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Arquivo pessoal/Andressinha

A verdade é que eu só pensava em futebol e tive muita sorte de meu pai estar sempre perto de mim, na praça. Do carrinho, ele podia me ver o tempo todo, o que significava que eu podia ficar jogando por horas à tarde enquanto ele trabalhava.

Escola pela manhã, futebol à tarde. Essa foi a minha vida em Roque Gonzales, minha cidade, no interior do Rio Grande do Sul. Não se pensava no futuro, nem mesmo havia outras paixões. Era só bola. O dia todo. Uma infância perfeita numa cidade tranquila.

Meu pai, Eliseu, sempre foi apaixonado por futebol. Ele adorava jogar, e sempre que havia um jogo, eu estava lá, assistindo. Mas ele nunca me forçou a jogar futebol. Isso veio de mim. E deve ter sido uma surpresa agradável para o meu pai.

Tem uma história interessante, que ele nunca me contou, mas eu ouvi da minha mãe. Quando ela estava grávida, eles fizeram o ultrassom e descobriram que era uma menina…meu pai ouviu o resultado, se jogou na cama e ficou olhando para o teto, por horas a fio. Ele ficou perturbado, de verdade. Ele queria um menino. É claro que isso foi antes de eu nascer, e agora ele ri dessa história.

Sou filha única, e eu acredito que compensei tanto meu pai quanto minha mãe, porque ela queria uma menina, mas ele conquistou a parceria perfeita: assim que eu comecei a andar, eu curtia sair por aí com ele. Ir pescar, jogar futebol, qualquer coisa. Era tudo muito divertido.

Se eu olhar para trás, minha primeira lembrança é andar de motoca com ele ao redor da praça. Sabe aquelas motocas? Eu tinha uma que gostava muito e meu pai ficava me puxando com a cordinha enquanto eu tentava me equilibrar.

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Arquivo pessoal/Andressinha

Quando eu cresci, de novo, éramos meu pai e eu, numa motocicleta, mas desta vez era para valer.

Ele me levava para os treinamentos e para os jogos em diferentes cidades na sua moto. Às vezes, nós íamos para cidades diferentes no mesmo dia, porque era assim que eu queria.

Minha mãe, no início, não entendia o mundo do futebol feminino, mas ela nunca tentou me impedir. Se eu estava feliz fazendo isso, era o que importava para ela. E quando minha mãe assistiu ao meu primeiro jogo, ela realmente gostou.

Quando criança, você leva o futebol como se fosse uma brincadeira. Mas quando você cresce, começa a considerar isso mais seriamente. A certa altura, comecei a sonhar em jogar futebol de verdade, e isso foi a melhor decisão. Era o que eu gostava. Era o que eu queria.

Mas o futebol também tem o poder de fazer você chorar. Foi assim que eu realmente aprendi o que significava fazer sacrifício quando tive a oportunidade para jogar em Caçador, a 600 km de casa. Eu tinha apenas 14 anos de idade. Um ano antes, eu joguei pelo Pelotas, mas só ia para lá nos finais de semana e depois voltava para a vida normal. Mas em Caçador foi outra coisa.

Em Pelotas, eu conheci o Edvaldo, que foi o técnico da Seleção Sub-17 e ele também tinha treinado um clube chamado Kindermann, muito tradicional no futsal. Ele sabia que o Pelotas não tinha alojamento e que eu só tinha um contrato de fim de semana, então, o Edvaldo me convidou para jogar pelo Kinderman para que eu pudesse treinar todos os dias. Foi uma oferta para valer, de um técnico de Seleção, então tive de discutir isso com meus pais. Aceitar a proposta significaria sair de casa muito cedo.

Eu me lembro da viagem como se fosse hoje. Meu pai me levou até lá. Eles mostraram tudo para mim – as instalações, o alojamento, os campos de treinamento, a escola. Uma das coisas que me lembro é o meu pai me levando ao centro da cidade para comprar todas as coisas necessárias para uma casa.

Colchão.

Cobertor.

Travesseiros.

Naquele dia eu entendi que estava deixando tudo para trás. Meus amigos. Minha família. Minha escola. Minha praça.

Quando meu pai me abraçou e saiu, tentando controlar suas emoções, lá no fundo eu pude ver o que ele estava sentindo.

Como eu vou deixar minha única filha aqui?

Meus pais foram muito corajosos por me deixarem aceitar aquela proposta, e eu os agradeço até hoje por isso.

No meu primeiro dia no alojamento, já sem meu pai por perto, eu fiquei desesperada. Pela primeira vez na vida, eu não tinha com quem compartilhar meus sentimentos. Num instante, você está com seus amigos ao redor, sua família, depois, do nada, você está cercado por estranhos, e você nem mesmo reconhece a si própria.

Durante os treinamentos, ia tudo bem, eu estava feliz. Mas quando tinha de voltar ao alojamento, era complicado. No primeiro mês, eu chorava demais. Sentia falta de todo mundo. Eu também estava acostumada a ficar em casa, com minha mãe fazendo tudo por mim. Eu não fazia ideia de como era lavar roupa, por exemplo.

Mas eu disse a mim mesmo que tinha de resistir por mais um mês.

Na minha cabeça, estava tudo muito claro: se é isso que você quer fazer da sua vida, fique. Se você não conseguir, volte para casa e vá fazer outra coisa.

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Zak Kaczmarek/Getty Images

Sacrifício. Ninguém disse que ia ser fácil. Vindo de onde eu vim, fazia as coisas ficarem ainda mais difíceis. Roque Gonzales é realmente muito longe das grandes cidades. Isso tornava as coisas ainda mais complicadas.

Na primeira vez que eu treinei com a Seleção sub-17, por exemplo, eu tive de pegar um ônibus à noite, por volta das 23h, da minha cidade até Porto Alegre, lá chegando às 6h. Em seguida, tive de ir para o aeroporto e ir para o Rio de Janeiro. Uma vez no Rio, peguei a serra até Teresópolis.

Eu estava exausta. Nunca tinha viajado de avião antes. Mas naquela primeira noite, nós tínhamos a primeira reunião oficial. Havia mais ou menos umas 10 pessoas da comissão técnica e os treinadores se apresentando. Eu estava lá no sofá, ouvindo e, de repente, caí no sono.

Completamente.

Sim, eu estava dormindo no meu primeiro dia com a Seleção Brasileira. Não é lá um começo brilhante, certo?

Na primeira semana, eu não abri minha boca. As outras meninas até mesmo perguntaram se eu não falava ou se eu era muda.

Sacrifício. Ninguém disse que ia ser fácil.

“Você não fala, guria?”

Eu tinha vergonha e não conseguia falar nada.

Às vezes, as emoções são refletidas nos gramados. Para minha sorte, comigo foi diferente. Nos treinamentos, eu me esquecia de tudo o que estava acontecendo e ia bem. Muitas eram deixadas de lado porque estavam nervosas, ou tristes, ou doentes. Quinze dias naquela idade pareciam um ano.

Edvaldo sempre falou que, quando me viu dormindo naquela primeira reunião, ele não sabia o que dizer.

“O que ela está fazendo aqui? Ela não vai aguentar dois dias”.

Mas aqui estou eu, 10 anos depois.

Em 2015, joguei a minha primeira Copa do Mundo, no Canadá, com todas as estrelas. Já estava mais madura nessa ocasião, mas, ainda assim, quando alguém como a Marta vem falar com você, a única reação possível é tentar responder. Você fica muito nervosa para buscar qualquer assunto e daí sobram respostas engraçadas.

Eu me lembro de estar assistindo a Simpsons, na TV, e a Marta achou isso curioso.

“Você não quer assistir outra coisa?”, ela me perguntou.

Eu disse: “Não, eu gosto de desenhos, obrigada.”

Isso é uma coisa que vou me lembrar para sempre.

Se em 2015 foram só sorrisos, os Jogos Olímpicos do ano seguinte me deixariam em lágrimas.

Para mim, os Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro me levariam do céu ao inferno. Contra a Austrália, nas quartas de final, eu entrei só para cobrar o pênalti. Eu sabia que essa era a minha missão e fiquei feliz por ter convertido a cobrança. Já contra a Suécia, nas semifinais, eu joguei toda a segunda etapa da partida, que foi totalmente dominada pela nossa equipe, só que nós não conseguimos marcar um gol. O jogo foi para os pênaltis e eu acabei perdendo a minha cobrança – a última. Se eu dissesse que não senti a pressão, estaria mentindo. Eu sabia que 70 mil pessoas estavam no estádio do Maracanã, torcendo pelo Brasil.

Quando a Suécia marcou o último gol, vencendo, assim, a partida, o meu mundo caiu. As pessoas disseram que nós deveríamos ter vencido durante os 90 minutos, mas eu sabia que eu tive uma chance nos meus pés. Fiquei abalada com isso durante meses.

“Dói agora, mas vai passar”, todo mundo dizia isso. Tive de lidar com uma batalha interna e tive de tirar isso do meu peito. Mas depois de 10 anos com a Seleção Brasileira, e com tantos momentos lindos, eu sabia que não podia ser tão cruel comigo mesma. Tive de enfrentar isso.

Eu gostaria de apagar a imagem da última Olimpíada com uma boa performance na Copa do Mundo deste ano. E eu ainda penso em conquistar a medalha de ouro em Tóquio, em 2020. Mas aquelas lembranças do pênalti perdido não me atormentam mais.

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Bruno Zanardo/Getty Images

Nós sabemos que a Seleção Brasileira de futebol feminino precisa de um título ou de uma medalha de ouro nas Olimpíadas, por conta da nossa história no esporte. Mas nós também sabemos que isso não vai mudar a realidade, porque o futebol feminino tem de ser acertado a partir de baixo. Começando com as categorias de base.

Não é assim: “Ah, meu Deus, o Brasil é campeão do mundo e agora vai resolver todos os problemas”.

Não, não vai acontecer assim.

É sobre abrir portas, sabendo que nós podemos contribuir muito com o desenvolvimento do futebol feminino no país. Hoje em dia, nós somos as vozes delas. Então, nós temos de representa-las da melhor maneira possível. A Copa do Mundo dá visibilidade, mas o futebol feminino não diz respeito apenas ao esporte. É sobre igualdade de oportunidades. Mulheres que não gostam de futebol também estão nessa briga.

O importante, meninas, é que vocês precisam ser felizes com o que vocês estão fazendo. É claro que eu gosto de fazer minha família e meus amigos se sentirem orgulhosos, mas o que realmente importa é que nós acordamos todos os dias felizes por treinar, por jogar futebol, por enfrentar as coisas que não são fáceis, e seguir avançando.

O futebol feminino não diz respeito apenas ao esporte. É sobre igualdade de oportunidades. Mulheres que não gostam de futebol também estão nessa briga.

Quando nós estávamos voltando da Copa do Mundo no Canadá, nós tínhamos de atravessar o triângulo das Bermudas, e aquele foi um voo muito ruim. Digo para vocês, nunca senti tanto medo em toda a minha vida. Minhas pernas estavam tremendo, e eu não podia controlá-las. Algumas meninas diziam que não queriam mais jogar futebol, que elas não queriam mais essa vida. Mas eu não pensei assim. Foi algo mais como: “Nós passamos por algumas situações difíceis, mas isso é futebol. E nós gostamos”.

Nunca passou pela minha cabeça que eu pudesse fazer outra coisa que não fosse jogar futebol. Para mim, medo verdadeiro seria não conseguir jogar. Você passa por situações difíceis, e, em troca, viaja pelo mundo fazendo o que gosta. O futebol permitiu que eu crescesse mentalmente, que eu conhecesse pessoas, que fizesse amigos. O futebol me levou para os Estados Unidos, para jogar pela NWSL, a liga norte-americana de futebol feminino.

Este esporte é um presente.

Da praça com o carrinho de laranja gigante do meu pai, da primeira vez que minha mãe me assistiu jogando futebol, até esse momento, tudo aconteceu depressa demais.

Eu sinto falta de tudo isso, e até mesmo hoje, quando mudo de lugar, ainda sinto que estou me adaptando. Mas o meu foco, desde o dia que saí de casa, tem sido o mesmo.

Eu não ia desistir do meu sonho.

Aquela menininha agora é jogadora de futebol.

Valeu a pena todo o sacrifício.

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