Dias de Alegria
Brad Pitt.
George Clooney.
Morgan Freeman.
Javier Bardem.
Benicio Del Toro.
Ator coadjuvante também ganha Oscar, né?
Eu nunca me importei por não ser o grande astro do time.
Especial mesmo é ter sido campeão no clube do Rei. Um título pelo Santos vale mais do que qualquer estatueta dourada de Hollywood.
Oito taças, então...
Gol em final de Brasileirão, com apenas 21 anos de idade.
O fim de 18 anos de fila.
Outra conquista nacional, mesmo sem poder jogar a reta final no nosso alçapão, e ainda com mais um gol meu na partida decisiva.
O Tri da América.
Diego e Robinho. Neymar e Ganso.
O privilégio da aposentadoria como jogador acontecer vestindo a camisa mais linda da história do futebol. A beleza está na simplicidade. O escudo, pesadíssimo, já basta.
Há exatos 20 anos, eu pisava na Vila Belmiro pela primeira vez como jogador do Peixe. Ainda não era para jogar no templo sagrado. Novato, estava ali para almoçar no refeitório.
Era só o passo inicial. A fome, porém, era de títulos.
Duas décadas depois, tenho imenso orgulho de, além das medalhas de campeão, ter ganhado um sobrenome. Cheguei como Elano Ralph Blumer. Saí Elano Ralph Blumer “do Santos”.
É uma honra gigante ser identificado assim.
— Sabe o Elano?
— Qual Elano?
— Aquele do Santos.
São apenas duas palavras a mais, é verdade. Mas elas carregam muita tradição. A exigência é enorme, então o empenho precisa ser dobrado. Até para ser coadjuvante.
Por trás de todo milagre existe um ser humano, e a partir de agora eu vou te contar a dádiva que recebi ao poder chamar de lar a Vila mais famosa do mundo.
Eu comecei a chorar em campo. Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Tinha sido muita luta para chegar àquele momento. Era a minha maior chance na carreira. E tudo estava perdido...
Até eu receber um abraço.
O jogo no Anacleto Campanella tinha acabado da pior maneira para aquela molecada do Santos cheia de sonhos: 3 a 2 para o São Caetano.
Se a lógica tivesse prevalecido nas outras partidas, não nos classificaríamos para a fase final do Campeonato Brasileiro de 2002, a última edição decidida em mata-mata.
Mas como impossível não existe no dicionário do futebol, o Magrão, do São Caetano, colocou o braço ao redor do meu pescoço e me contou uma das melhores notícias que eu já recebi na vida.
O Gama, já rebaixado para a Segunda Divisão antes mesmo da última rodada, tinha goleado o Coritiba, nosso concorrente, por 4 a 0 no Mané Garrincha. Ou seja, era a chance dos garotos desconhecidos se mostrarem para o Brasil. A vaga estava garantida!
Na época, o país parava na frente da TV para assistir às decisões do Brasileiro. Como eram confrontos eliminatórios, o melhor da competição ficava para o último mês da temporada.
Daquele 17 de novembro no ABC Paulista até o histórico 15 de dezembro no Morumbi, a nova geração dos Meninos da Vila explodiu de vez como sensação nacional.
Cada viagem era uma loucura diferente no saguão do aeroporto. Um assédio absurdo sobre a dupla Diego e Robinho. Nunca tinha visto nada parecido. Muitas vezes tínhamos de fazer um cordão em volta deles para conseguir embarcar. Senão, perderíamos o voo.
Nunca me importei em correr pelas grandes estrelas. Eu dava o passe, e os gênios decidiam. Todos têm o mesmo espaço na foto do título.
Só que a caminhada até aquela tarde em que o Santos deu bola contra o maior rival foi cheia de obstáculos. Eram tantas limitações que, se não fosse a personalidade ousada da garotada, com o suporte dos mais experientes, o Peixão talvez ainda estaria na seca.
Tenho o maior amor do mundo pelo clube, que me levou à seleção, me deu visibilidade mundial e onde alcancei as maiores conquistas. Então, em respeito aos torcedores, preciso dizer como era a nossa realidade – e muitos deles até já sabem.
Aquele ano começou sem jogador, sem dinheiro e quase todo mundo desacreditado.
Cara, nós tomávamos café da manhã numa Kombi no centro de treinamento.
Diante da fase do time, torcedores estendiam faixas de cabeça pra baixo nas arquibancadas e às vezes ficavam de costas.
Para piorar, nem sequer nos classificamos no Rio-São Paulo. Com a equipe sob pressão, a diretoria resolveu mudar a comissão técnica.
Na reunião de apresentação do elenco para o Leão, ele olhou para nós daquele jeito dele e se virou para o presidente Marcelo Teixeira:
“Cadê os jogadores?”.
A resposta não foi muito convincente:
“Tem esses daí.”
Contaram um por um, e a soma final também não era animadora: 16.
DEZESSEIS.
Não tinha jogador suficiente para completar o banco de reservas.
E um monte de moleques que ninguém tinha ouvido falar.
Eu havia chegado no ano anterior, depois de me destacar em uma partida de aspirantes pela Inter de Limeira contra o Santos. Quando começou o Brasileiro, eu tinha só 21 anos.
Paulo Almeida, 21.
Renato, 23.
Diego, 17.
Robinho, 18.
No entanto, antes de ter dificuldade de atravessar o saguão dos aeroportos por causa do alvoroço dos fãs, aquele grupo havia passado por constrangimentos nos mesmos lugares. Mais de uma vez, ouvimos perguntas desagradáveis:
“Quem são vocês? É o time juvenil do Santos?”.
“Esse time é o profissional? Vai cair...”.
Nessa fase, o Leão fez toda a diferença. Ele nos abraçou, exerceu a figura de um pai para a meninada e passou muita confiança.
“Está tudo bem. Hoje vocês têm de engolir isso, ninguém liga para o nosso time, mas em três meses tudo vai mudar.”
Por mais que o Leão passe essa imagem de durão, nas partidas ele nos dava toda liberdade para mostrar nosso futebol e nos incentivava a ousar, arriscar uma caneta. Se dentro de campo tínhamos autonomia para tentar o diferente, fora do clube não podíamos dar um passo sem que ele soubesse. Nossa Senhora!
Mas na concentração não tinha jeito. Do nosso grupo, não ficava uma porta fechada. Era moleque correndo pra lá e pra cá, jogando videogame até de madrugada, gritaria na janela...
Com toda essa zoeira, o Leão não aguentava. Aparecia no corredor com o rosto inchado às 3 da manhã para dar bronca na gente. Quem não conseguia se esconder no quarto, tinha que domar a fera.
“Calma, prof. Amanhã é nóis!”.
“Calma o c***, moleque. Vai para o quarto agora!”.
Era impossível segurar tantos garotos juntos. O Leão e o clube bem que tentaram frear a empolgação pra não passarmos do ponto. Contrataram até uma nutricionista para nos ensinar sobre educação alimentar. A palestra foi boa, todos prestaram atenção, e a moça deu sorte de pegar o elenco em um dia tranquilo.
Até ela ir embora e encontrar todo mundo no McDonald’s do outro lado da rua… Hahaha!
E o segredo do nosso time era usar essa mesma irreverência nos jogos. Uma das minhas memórias mais felizes desse ano mágico que vivemos é sobre o nosso ritual antes da bola rolar.
Feito o aquecimento, fechávamos a roda só dos jogadores. É um momento que pode parecer desnecessário para quem não viveu num vestiário de futebol. Mas, nesse olho no olho com os companheiros, dá pra perceber todo tipo de sentimento.
Ansiedade.
Confiança.
Preocupação.
Empolgação.
No nosso caso, compartilhávamos essa mesma emoção. De forma espontânea, sempre alguém nos lembrava qual era a sensação de mostrar para o mundo o emblema no lado esquerdo do peito.
“Rapaziada, dia de jogo do Santos é o quê?”.
DIA DE ALEGRIA!!!
Esse carinho em comum foi fundamental para não sentirmos a pressão de enfrentar o São Paulo, classificado em primeiro, nas quartas de final. Eles tinham um baita time: Ricardinho, Kaká, Reinaldo, Luis Fabiano. Falavam que parecia o Real Madrid, né?
Para ser sincero, a nossa maior preocupação era o Grêmio. Por maior que fosse a qualidade do São Paulo, nós já sabíamos como eles jogavam, porque nos enfrentávamos com maior frequência. Vendo de longe, o Grêmio era um time que conhecíamos menos e com um elenco mais experiente. Danrlei, Anderson Lima, Anderson Polga, Rodrigo Mendes… Só cara cascudo.
Mas não existe casca que resista à força da Vila Belmiro.
Éramos praticamente imbatíveis no nosso alçapão!
Na final, em campo neutro, fomos para o tudo ou nada.
Lembro que a Nike queria que o Robinho estreasse uma chuteira amarela, porque a audiência seria monstruosa. E o Leão vetou. Ele fez a leitura perfeita do momento.
Se formos campeões, a festa não tem hora pra acabar, façam o que quiser. Mas, antes disso, temos pela frente um dos jogos mais importantes da história do Santos, por todo o contexto de dificuldades financeiras, dívidas e uma fila de quase 20 anos.
O meu gol na decisão foi a cereja do bolo para celebrar o ano em que vivi um dos momentos mais prazerosos de toda minha vida. Ser campeão é muito bom. Ser campeão pelo Santos, melhor ainda.
Sabe por quê?
Ali você respira a história do futebol dia após dia. E nós resgatamos a dignidade à altura do rol de conquistas do clube.
O título de 2002 abriu caminho para as outras diversas taças importantes que vieram nos anos seguintes.
Dois anos depois, o Santos já era o primeiro bicampeão brasileiro do século – e o coadjuvante estava lá de novo para deixar sua marca no jogo do caneco.
Na virada da década, foi a vez de outros gênios surgirem na base, e os novos Meninos da Vila dominaram a América do Sul. O clube do Rei é Tri!
Se 2002 serviu de pilar para o ressurgimento do Peixe, um personagem foi decisivo nos bastidores ao longo dos anos, com diferentes gerações.
De alguma maneira, fui protagonista na história do Santos. Esse filme fica gravado pra sempre.
- Elano
Nesse período, eu não só aprendi muito sobre a história do Santos como convivi diariamente com ela, em carne e osso, no centro de treinamento: Seu Zito.
Pô, fico até emocionado ao escrever sobre ele, a maior perda do Santos nas últimas décadas.
Além do excelente jogador que foi, campeão do mundo pelo clube e pela seleção, muito se fala sobre os talentos que ele revelou. Isso porque o Seu Zito era apaixonado por talento.
A presença dele era muito forte no CT. Autêntico e muito assertivo com as palavras, quando ele falava todo mundo parava para ouvi-lo. Era a sabedoria em pessoa. Às vezes eu sentava ao lado dele, depois do treino, e ficava ouvindo as histórias que ele tinha pra contar.
“Seu Zito, como era aquela máquina do Santos dos anos 60?”.
“Seu Zito, como era jogar com o Pelé?”.
“Seu Zito, e o Garrincha?”.
Com frequência, eu discordava dele, com todo o respeito, só para ele continuar falando e eu aprender um pouco mais. Me sinto um privilegiado por ter tido essa oportunidade de conhecer direto da fonte que desempenhou papel crucial na formação da identidade do Santos.
Mas ele não era só paz e amor, não, viu?
Quando preciso, o Seu Zito intervinha e contrariava até mesmo o presidente.
— Mas Seu Zito...
— Vai fazer, pronto e acabou.
Até treino ele já interrompeu para ensinar à molecada.
O Seu Zito geralmente assistia aos treinamentos sentado em um banquinho. Nesse dia, ele entrou no campo, pegou o Paulo Almeida pelo braço, e a rapaziada se assustou.
“Volante não corre atrás da bola, volante se posiciona para receber a bola”, e puxou o Paulo Almeida para a intermediária.
Dito isso, ele voltou ao banquinho. O recado estava dado.
Outro dia, dali mesmo, um grito foi o suficiente.
Nosso coletivo era bastante pegado. Treinávamos como se fosse jogo, com dribles, velocidade e muita personalidade. Tinha dia que ganhávamos de 7 a 0 dos reservas.
Certa vez, eu inverti uma bola para o Robinho, ele dominou e foi pra cima dos caras, pedalando. Do mesmo jeito que faria naquela final, ele ousava nos treinos. Pedala, pedala, pedala… Na hora que deu o último drible, adivinha quem vem na cobertura?
Pereira! Gigante, 6% de gordura no corpo, bufando que nem uma fera.
Mano, se o Pereira acerta um carrinho no Robinho, quebra ele no meio. Eram dois metros de altura contra duas canelinhas finas.
Assim que os dois correram lado a lado, e o Pereira armou pra dar o bote, o Seu Zito grita do lado de fora:
Não, Pereira! Não, Pereira!
NÃÃÃO!
Você acha que o Pereira teve coragem de dar o carrinho?
Nem pensar!
O Seu Zito era tão inteligente que já deveria saber que aquelas pedaladas mereciam ser protagonistas de uma final de campeonato.
Ele, mais do que ninguém, compreendia que o DNA do Santos é inconfundível. De pura magia e com feitos incríveis.
Na Vila surgiu o maior de todos os tempos, e poder estar na mesma galeria de campeões do Glorioso Alvinegro Praiano mudou minha carreira. De alguma maneira, fui protagonista na história do Santos. Esse filme fica gravado pra sempre.
Alegria era a última palavra que falávamos antes de pisar no gramado.
Alegria era o que sentíamos ao dar o primeiro toque na bola sabendo do peso da camisa que representávamos.
Alegria o santista voltou a viver com mais uma geração dos Meninos da Vila que conquistou o país.
Os dias de alegria marcaram época no esporte brasileiro e transformaram a minha vida.
A trajetória do Elano do Santos.
O Santos vive no meu coração.