Preleção
*Com a colaboração dos pais.
Cleiton,
Como você sabe, a vida de uma pessoa com síndrome de Down costuma ser retratada como extraordinária quando contada por alguém que está de fora, como num filme ou numa série de TV. Nesses casos, é muito comum alguém narrar algum episódio que marca a superação de todos os obstáculos para o sucesso.
Pessoalmente, eu não tenho problema com isso. Na verdade, até gosto bastante de filmes assim, mas muitas pessoas confundem as coisas.
Hoje, eu tenho consciência de que a vida real é bem diferente dos filmes. E eu sei disso porque vivo esta realidade — e você, Cleiton, faz parte desse meu processo de aprendizado.
Acho que você se lembra quando a gente se conheceu, né?
Vou te falar o que me recordo: foi na época em que eu treinava numa clínica (Apabex) e, num torneio, uma outra entidade (Pestalozzi) me convidou para ser goleiro da equipe.
A partida estava disputada, até que chegou aquela hora. Para quem pensa que os nossos jogos não são pra valer, tinha que estar na minha pele (ou na minha barriga) para saber o impacto que eu senti. O chute forte me derrubou.
Fiquei deitado na quadra e só sentia a dor.
Ninguém gosta de ser atingido assim, ainda mais com uma bolada daquelas. Mas é esse tipo de coisa que acontece com quem joga no gol.
Eu nunca te perguntei, mas acho que você, Cleiton, percebeu ali, no meu olhar, que as coisas não tinham de ser sofridas daquele jeito.
Nesse intervalo, eu treinava na Escolinha de Futebol Meninos da Vila e foi quando vocês me convidaram para integrar a equipe do Corinthians.
Ah, sim, me lembro até hoje de suas palavras:
“Ô, japonês, você não vai ser goleiro nem aqui nem na China!” kkkk
Ai que eu entendi que você me queria em outra posição. Que eu deveria jogar como fixo — e que ser goleiro não era minha verdadeira vocação.
Eu não fazia ideia se daria certo. Mas, de algum modo, você sabia, Cleiton. E me fez acreditar que era possível.
Mas calma que nem tudo foi tão simples como parece agora. Ser goleiro, eu sabia, não era fácil. Só que ser treinado por você, Cleiton, era mais complicado ainda.
Pensando bem, acho que foi isso que fez meus pais se convencerem, pois isso também era meu desejo e foi uma decisão em família.
E acredito que as palavras que fizeram com que eles aceitassem a proposta não foram de conforto ou suavidade. Acho que eles gostaram mesmo foi de você ter dito que me trataria como um jogador em formação. Com estímulo, mas sem deixar de cobrar.
E eu posso me lembrar das inúmeras vezes, Cleiton, que você nos corrigiu, dizendo o que deveríamos fazer para melhorar.
Falava do posicionamento tático, da nossa postura em quadra e da importância do comportamento. Jogando sempre para respeitar o adversário. E para respeitar o futebol.
E eu posso confirmar a diferença que esse conjunto de atitudes fez na minha vida. Existe um Érico antes e um Érico depois de te conhecer.
Acho que a maior prova dessa mudança teve a ver com minha postura como pessoa, algo que vai além das quadras.
Sou capaz de me ver, Cleiton, reclamando de coisas que não faziam o menor sentido. Sei lá, agindo como se o universo girasse em torno das minhas preocupações.
E o que você nos ensinou a respeito do esporte tem a ver com isso: não envolve só uma pessoa, porque ninguém ganha nada sozinho. Isso tem a ver com o grupo, e nós passamos a nos proteger e a nos cobrar para sermos jogadores (e pessoas) melhores.
Foi assim que nós, como grupo, formamos uma das equipes mais vencedoras do Futsal Down. Um time praticamente imbatível. (E olha que nem era o meu time de coração).
Você conhece a história como ninguém — e acho que na época só você sabia disso. De coração, eu sou torcedor do Palmeiras. Só que quis o destino que eu fosse atleta do Corinthians. Se me perguntassem, quando criança, essa não teria sido a minha escolha. E o meu amor pelo Palmeiras jamais diminuiu durante o tempo em que defendi as cores do rival.
Mas eu posso garantir que nunca desonrei o Corinthians quando entrava em quadra. E como jogador aprendi a respeitar a instituição.
Hoje eu acho que vivi essa experiência para aprender o que é ser profissional – porque é assim que a vida real funciona, né?
Você já estava no Corinthians e nos mostrou como era possível entregar mais dentro de quadra. Cleiton, suas palavras nem sempre eram sutis, mas era isso que nos motivava: você nos tratava de igual pra igual, reforçando como o esporte podia mudar a vida das pessoas.
E de um garoto assustado, aos poucos, você viu surgir uma pessoa que entendeu o que significa assumir responsabilidades. E a jogar num clube com a camisa pesada como a do Corinthians.
A vida de uma pessoa com síndrome de Down pode ser bem difícil se não houver apoio da família e a amizade verdadeira de pessoas que atravessam as nossas vidas.
- Érico Eda
Lembro de uma ocasião em que esse respeito ao esporte foi colocado à prova. Estávamos disputando um torneio muito importante para a modalidade e para o clube, a Copa Down.
Na época, nosso time estava tão acostumado a vencer que ficou conhecido como o time que nunca perdeu. Você sabe disso, Cleiton: nós não estávamos preocupados com essa fama. Queríamos apresentar o nosso melhor futebol. E era isso que fazíamos. Sempre contando com a sua orientação.
Mas nosso sucesso era tão grande que queriam fazer um filme nosso, do time que nunca perdeu. E o jogo decisivo, se chegássemos na final da Copa Down, seria contra o nosso grande rival na modalidade, o Santos.
Para a nossa surpresa, aconteceria uma coisa muito especial naquele dia: pela primeira vez, a torcida uniformizada do Corinthians estaria na quadra para nos apoiar durante o jogo.
Era o nosso presente, que você tinha preparado sem que nós soubéssemos da surpresa.
Acontece que, antes da grande final, tinha a semifinal. E a reação do nosso time não foi da maneira como você esperava. Nós quase perdemos o jogo e a vaga na decisão.
Sou capaz de reconstituir em detalhes a sua entrada no vestiário no intervalo daquela quase derrota.
Cleiton, você estava furioso.
Não importava que as câmeras da equipe de gravação estivessem ligadas.
Você pegou pesado com a gente!
Perguntou até mesmo se a gente achava que era modelo, porque não tinha entregado nada dentro da quadra.
Foi duro ouvir tudo aquilo calado, Cleiton.
Ainda mais depois que você saiu bravo, sem que a gente pudesse reagir...
Assim que você deixou o vestiário, eu pedi a palavra.
Eu sempre fui meio tímido, né?, mas naquela hora fiquei muito incomodado com a situação do nosso time. Às vezes, dentro de quadra, quando estamos jogando, as coisas não saem do jeito que gostaríamos. Mas isso não queria dizer que não poderíamos fazer melhor na partida decisiva. E foi com esse sentimento que resolvi desabafar naquele dia, assumindo minha responsabilidade.
Bati no peito e falei pros meus companheiros de time: “Temos de representar essa camisa!”. Foi uma preleção que você teria ficado orgulhoso, porque eu falei do coração, assim como meu técnico me ensinou.
Sim, Cleiton, eu sou palmeirense, mas naquele dia estava defendendo não apenas a camisa de um clube, mas quem nós éramos como grupo. Tínhamos de agir com respeito aos torcedores e a quem havia confiado naquele time.
E na volta pra quadra dava pra ver no nosso rosto como não deixaríamos escapar a vitória e iríamos disputar o título na final.
Eu estava tão focado em conquistar o título que mal percebi que o Cássio, um dos maiores ídolos da história do Corinthians, é quem estava entrando com a gente na quadra. Minha expressão refletia o nível de concentração para aquela partida decisiva.
Então, quando o jogo começou, nosso time foi pra cima do Santos. Jogamos como nunca, pra valer. A final terminou 5 a 2 para o Corinthians, e o último gol foi meu. A vibração foi intensa ao lado da nossa torcida, e eu nunca vou me esquecer daquele dia, Cleiton.
Gosto de lembrar daquele jogo porque sei o quanto aquela decisão foi importante não só para o Corinthians, mas para a modalidade e para toda a comunidade de pessoas com deficiência.
Aquele jogo mostrou para nós, atletas, que poderíamos conquistar mais. E a nossa história ainda se tornaria mais vitoriosa quando disputamos o Mundial aqui no Brasil representando a seleção. Poucos sabem o quanto você se empenhou para que o nosso país sediasse o campeonato.
E no último jogo, Cleiton, você fez uma coisa que poucos treinadores no mundo fazem: deixou que a gente abrisse o nosso coração, perguntando para quem nós dedicaríamos o título se fossemos campeões.
Todo mundo falou o que sentia. Choramos juntos. Rimos juntos. Estávamos prontos para mais uma final. As principais emissoras estavam lá no ginásio e, de verdade, a gente não esperava tanta atenção assim.
Quando você deixou que nós tomássemos a palavra, foi como se tivesse dado a senha: o treinador confia que nós somos capazes e que seremos campeões.
E todo mundo sentiu isso na hora. Então, se antes daquela conversa nós sabíamos que não poderíamos perder aquela partida, depois da preleção, tivemos a certeza de que sairíamos dali vencedores.
E nós fomos com tudo pra cima da Argentina. Chegamos até a fazer 5 a 1 no placar, mas nossos adversários foram duros na queda, e o placar final foi 7 a 5.
O título mostrou que nós somos capazes de enfrentar a pressão – jogar um torneio mundial em casa é muito bom pelo apoio da torcida e pela visibilidade da mídia, mas, também, tem uma pressão grande. Só quem jogou sabe como é difícil, e o resultado colocou nosso nome na história.
E em 2022, conquistamos o bicampeonato mundial no Peru contra a mesma Argentina. Placar 5 a 1.
Ao contrário do que alguns pensam, nós não queremos que os jogos sejam mais fáceis, não gostamos quando nos olham com pena e não queremos ser incluídos apenas para fazer bonito na TV.
O que queremos é o tratamento com respeito, o que significa, sim, fazer com que os campeonatos aconteçam para a nossa comunidade, mas sem que nos considerem inferiores porque nós somos quem somos.
Como poucas pessoas, Cleiton, você percebeu isso. E nos cobrou como ninguém. E acreditou em nós quando ninguém sabia que nós existíamos.
Acho que é por isso que, nos últimos tempos, tenho pensado em mudar de lado. Não, eu ainda torço pro Palmeiras (e assim será para sempre). O que quero dizer é que pretendo seguir outros rumos dentro do esporte. Eu tenho meu emprego no dia a dia e, no futsal, ainda estou me desenvolvendo como atleta. Sei que tenho muito que melhorar.
Não foi preciso um filme me dizer que eu sou um herói. Sou uma pessoa como as outras, com alegrias e tristezas.
- Érico Eda
Mas daqui a algum tempo, quando parar de jogar, tenho interesse em continuar participando da modalidade de algum jeito. Penso em seguir os seus passos, ajudando a preparar os jovens que sonham ser jogadores, que nem eu tenho feito quando você me deixa organizar alguns treinos.
Quero mostrar para as outras pessoas que o esporte só pode ser inclusivo quando se entende que os atletas podem praticar suas atividades assumindo, também, o risco da frustração, da cobrança, das derrotas e, claro, a glória das vitórias.
Você, Cleiton, fez com que eu pudesse ver isso, a ponto de eu me sentir privilegiado por jogar pelo Corinthians, mesmo sendo palmeirense.
Hoje, com muito orgulho, eu — ou melhor, nós — fazemos parte da equipe de futsal Galápagos JR e com você no comando.
A vida de uma pessoa com síndrome de Down pode ser bem difícil se não houver apoio da família e a amizade verdadeira de pessoas que atravessam as nossas vidas. É por isso que o esporte nos ajuda. Mesmo quando o jogo não é fácil, ele nos ensina como podemos enfrentar as dificuldades. E isso a gente não aprende numa preleção.
No final, não foi preciso um filme me dizer que eu sou um herói. Sou uma pessoa como as outras, com alegrias e tristezas. E foi através do esporte que você me mostrou que eu poderia ser tanto um atleta como uma pessoa extraordinária.
Nos vemos na Turquia, Cleiton, em busca de mais um título mundial com a seleção. E se este realmente for o meu último campeonato como jogador, eu estarei grato e feliz por tudo o que vivemos juntos até aqui.
Obrigado, professor!
Você mora no meu coração.