A Caminhada

Djalma Vassão/Gazeta Press
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Sportingbet

Chegando no Morumbi, ouço a torcida gritar meu nome. Se tem algo que mexe com qualquer jogador, é saber que o torcedor palmeirense está do seu lado. Ali já compreendo que não se trata apenas de uma final de campeonato.

Dentro do estádio, a tensão é tanta que mal dá pra sentir o frio. Entramos em campo com camisa de manga comprida e meião branco. Sinal de sorte? 

Toca o hino nacional, mas a nação que a gente representa nesta tarde é alviverde. Enquanto 104.000 torcedores cantam nas arquibancadas, eu enxergo duas opções: Só saio daqui carregado. Ou campeão. Deixaria perna, canela, pé, chuteira… Tudo que fosse necessário para levantar aquela taça.

Afinal, são 16 anos sem título. Isso é inadmissível para um clube como o Palmeiras.

Mas até chegar o dia 12 de junho de 1993, a caminhada foi longa.

Felizmente, eu não estava sozinho. Jamais estive sozinho.

Eu tinha milhares, milhões de palmeirenses caminhando junto comigo. Acreditando em mim. Me guiando na missão mais difícil e gratificante que já recebi.



Pra falar a verdade, eu nunca imaginei que seria jogador do Palmeiras, muito menos da Seleção Brasileira. Minha vida em Crisólia, no interior de Minas, era entancar rio para conseguir nadar e espantar o calor no verão. O futebol eu só descobri depois, quando soube que, para pertencer de fato àquele lugar, primeiro eu precisaria pertencer ao time da cidade.

Naquela época, vencer por aquele lugar, marcar um gol ou ganhar um título por aquele lugar, significava muito. Assim se aprende a amar o futebol numa cidade pequena.

Vou contar um causo da minha infância que explica um pouco desse sentimento. Eu era santista quando criança. Poucas casas tinham TV na região, uma delas a da minha tia. Um dia fiquei sabendo que passariam os gols do Pelé. Cheguei cedinho e já me acomodei num canto da sala.

Como não sabia o horário da transmissão, perdi a noção do tempo. Esperei o dia todo até dar a hora dos gols. Mas eu tinha esquecido de avisar minha família, que rodou a vizinhança inteira até me achar na casa da tia… O que importava para mim era assistir o Pelé.

Foi ele quem despertou meu sonho. Um atleta completo, o melhor de todos.

Evair carta The Players Tribune TPT
Sam Robles

Então, bem antes de conhecer o Palmeiras, entendi que, para ser jogador, eu teria de correr atrás daquele objetivo. Correr de verdade! De manhãzinha, eu corria sete quilômetros até Ouro Fino, cidade vizinha, e voltava, para chegar mais preparado aos testes. 

Pessoal que trabalhava na roça achava que eu era doido, correndo no escuro. Nunca tinha saído um jogador da minha cidade. Ninguém conseguiu dar esse passo.

“Será mesmo que eu consigo?”, pensava.

Na parte da tarde, eu ia levar almoço pro meu avô e ajudar a varrer o café na fazenda onde ele trabalhava. Teve uma vez que o fazendeiro perguntou pra ele:

– Seu Maná, por que o senhor deixa seu neto ir embora mais cedo?

Meu avô vira e fala assim:

– É porque um dia ele vai jogar na Seleção Brasileira.

Puxa vida! Olha como são as coisas…

De repente, aquele menino de Crisólia, o lugar de onde nunca tinha saído um jogador, foi aprovado num teste e tava jogando no profissional do Guarani. Só não esperava que o sonho logo se transformasse em algo tão ruim.

Numa viagem para o interior, sofri um grave acidente. Com a pista encoberta pela neblina, um caminhão atravessou na contramão e atingiu o carro em que eu estava. Capotamos duas ou três vezes ribanceira abaixo. Eu fui jogado pra fora da janela, me quebrei todo.

Depois disso, ninguém mais apostava em mim. Quando consegui me recuperar, escutei uma preleção que, de certa forma, me acompanhou pelo resto da minha carreira. O treinador chega e diz pro atacante com quem eu disputava posição:

“Ô, fulano, hoje eu vou começar com o Evair para ele cansar os zagueiros pra você.” 

Pensei comigo mesmo: Legal, vou lá cansar os caras. Termina o primeiro tempo: 3 a 0 pra gente, três gols meus. Apesar de quase ter morrido no acidente, dei a volta por cima e provei meu valor no Guarani até chamar a atenção da Itália. 

Foram três anos maravilhosos na Atalanta. Era engraçado que, pra falar com minha mãe em Crisólia, eu tinha de ligar no bar da cidade. Alguém batia lá na porta de casa pra avisar. Depois ela ficava mais uns cinco minutos esperando até eu telefonar de novo. Os tempos não eram fáceis como hoje, né?

Evair jogador Atalanta
Alessandro Sabattini/Getty Images

Numa dessas ligações, começa a se desenhar a guinada do meu destino.

“Tá na hora de voltar, meu filho. Já ganhou dinheiro, não ganhou? Então, volta.” Coisas de mãe…

Justamente aí, surge a proposta do Palmeiras. Queriam me trocar pelo Careca Bianchesi. E ofereceram um salário muito menor do que eu ganhava na Itália. Se fosse dar ouvidos a tudo que comentavam sobre o Palmeiras, nunca teria aceitado. 

“Nada presta, nada dá certo nesse time”, era o que diziam do clube. Teve um tio meu, de Ouro Fino, que foi bastante sincero ao me aconselhar: “Você pode ir para tantos times... Vai escolher logo o que enterra todos os seus atacantes?”. E olha que ele era palmeirense doente.

Mas eu estava disposto a arriscar. Mais do que isso, eu estava animado. Não só por voltar ao Brasil, como também pela chance de vestir a camisa do Palmeiras. Alguém disse que seria fácil? Longe disso. Eu só não podia prever um começo tão frustrante.

“Você está bichado?”.

Essa foi a primeira pergunta da minha apresentação no Parque Antártica.

Quando saí do Guarani, espalharam que eu tinha uma hérnia de disco que me impediria de continuar jogando. Mas a imprensa se esqueceu dos três anos em que joguei sem problemas e marquei vários gols pela Atalanta. 

As manchetes eram todas iguais.

Palmeiras faz mais um péssimo negócio! Conheça o atacante que não pode jogar futebol.

Nesse momento, lembrei de um ditado famoso na minha região: A gente só cresce depois de rodar com pneu murcho em estrada de terra. E eu encontrei muitos percalços no primeiro trecho da minha estrada pelo Palmeiras.

Era um ambiente de desconfiança, mas, principalmente, de muita cobrança pela falta de títulos. Parecia que os jogadores que estavam no clube queriam apenas se salvar. Ninguém pensava em jogar bem. O intuito era ganhar o jogo seguinte para não ser criticado, agredido ou crucificado.

Vivi isso na pele. Em 1992, eu fui afastado após uma derrota. O motivo? “Deficiência técnica”, eles alegaram. Deficiência técnica é uma expressão forte demais para se referir a um profissional. 

Só cresce no Palmeiras quem sabe tomar tapa nas costas e seguir em frente.

Evair

Tirei a farda que tinha vestido pro treino, coloquei meus pertences dentro de um saco de lixo e voltei para o meu apartamento. Só então minha ficha caiu. 

Dali em diante, vieram dias tenebrosos.

A imprensa cercava meu prédio querendo entender a razão do afastamento. Eu não tinha o que dizer. A única coisa que sabia fazer era jogar bola. Mas me levaram a crer que nem pra isso eu prestava. Quando a equipe ia treinar no CT, eu tinha de treinar no Parque Antártica, e vice-versa. Por cinco meses, o Palmeiras me pagou para não ser notado.

Nos fins de semana, eu ia pra Crisólia jogar pelo time amador de lá. Quando começamos a ganhar todas as partidas, proibiram a participação de profissionais nos torneios da cidade. Isso mesmo: eu simplesmente não podia mais jogar, nem como amador.

E para explicar à minha família? O nó que dava na garganta quando meus pais perguntavam: “Fez alguma coisa errada, filho?”. Parecia que eu tinha cometido um crime. Mas nem sempre existe explicação para tudo que acontece no futebol.

Pelo menos esse início tortuoso serviu para que eu ficasse mais calejado. Aprendi que, no Palmeiras, não basta rodar de pneu murcho em estrada de terra. Só cresce no clube quem sabe tomar tapa nas costas e seguir em frente. Se não for dessa maneira, não se vence no Palmeiras.

Aquele Palmeiras, então, precisava vencer a qualquer preço. E eu tinha fome de vitória. Nem nos momentos mais solitários abandonei a fé de que poderia ajudar a recolocar o clube nos trilhos. Mesmo durante o afastamento, o Palmeiras nunca aceitou me vender e, graças a Deus, eu fui reintegrado. 

Na virada para 1993, a gente percebia que o clima estava diferente, havia uma ambição maior no vestiário. Não era por acaso. Tinha chegado a Parmalat e, com ela, jogadores do nível de Edílson, Edmundo e Roberto Carlos. Se não deixássemos a pressão nos atrapalhar, seria questão de tempo para o clube voltar a ser campeão.

Evair gol Palmeiras Corinthians 1993
Acervo/Gazeta Press

Só que o Palmeiras já tinha montado outras equipes fantásticas, que, no fim, acabaram sem ganhar nada. Por tudo isso, o Vanderlei Luxemburgo foi inteligente ao ler o cenário. Ele contava com um grande time nas mãos. Mas era um time que não tinha se provado. 

Então, ele trouxe a Suzy Fleury para dentro do clube. Todo mundo tomou um susto. “Psicóloga? Isso é coisa de louco!”, a turma dizia. No entanto, ela realizou um trabalho excepcional. Mexeu com nosso brio e nos fortaleceu mentalmente. 

Era preciso algo mais para tirar o máximo de cada atleta. Foi o que o Vanderlei fez.

Alcancei minha melhor fase no Palmeiras, artilheiro do time na temporada. E aí veio a lesão. Estava feliz pela equipe, que chegou à final do Campeonato Paulista. Mas, ao mesmo tempo, angustiado, sem saber se teria condição de ajudar meus companheiros.

Um mês treinando separado, só aprimorando a parte física. Na véspera do primeiro jogo da final, pedi para participar da atividade com bola. E o Vanderlei foi curto e grosso:

Não, ainda não!

O artilheiro da temporada fora da decisão? De jeito nenhum. Peguei o homem pelo braço e falei: “Professor, não sei se vou jogar, se vou ficar no banco ou se vou fazer gol, mas, pelo amor de Deus, me deixa estar perto do grupo”.

Ele se espantou com minha atitude. Talvez precisasse disso para confiar que eu poderia ser útil. Fui relacionado e assisti do banco o Viola imitando porco ao marcar o gol da vitória do Corinthians.

Aquela cena é emblemática.

Mais de uma década na fila, o time perde o clássico na final e ainda tem que aguentar gozação dos rivais. Por outro lado, o Viola não calculou a quantidade de reações que o gesto dele provocaria.

Primeiro, na nossa torcida. Nunca tinha visto uma coisa dessas. Palmeirense ligando no clube e oferecendo dinheiro aos jogadores. Queriam fazer até vaquinha pra gente virar o jogo. Mas deixamos claro que não se tratava de dinheiro.

Era questão de honra.

Passamos a semana concentrados num hotel-fazenda em Atibaia. A intenção era nos isolarmos de tudo. Porém, mesmo à distância, a gente não conseguia ficar alheio ao sentimento do torcedor.

Sabe o que é ter um filho que não pode ir à escola com a camisa do Palmeiras porque faz 16 anos que o time não ganha nada? Imagina como tava a cabeça do palmeirense...

Daí entra a outra parte tocada pela comemoração do Viola: nosso grupo.

Foi uma semana interminável. Parecia que nunca chegaria o sábado de 12 de junho. Antes de sair do hotel pro estádio, adivinha qual a última imagem que o Vanderlei mostra na preleção?

Exatamente, a comemoração do Viola.

“Precisam de mais alguma coisa?”, ele encerrou assim.

A gente queria que o campo fosse do lado de fora. A gente queria sair e jogar ali mesmo, sem nem precisar vestir o uniforme. 

Rumo ao Morumbi, tinha um monte de corintiano na rua, tirando sarro da nossa cara. Não sei o que deu na gente, mas abrimos a finestra do ônibus e chamamos todos eles para o estádio. Parece que fomos tomados por uma única certeza: 

Estávamos prontos para a guerra. Para vencer a batalha.

Quando o juiz apita a penalidade em cima do Edmundo, na prorrogação, me vem um misto de emoções. Todos os caminhos que percorri para chegar até ali se cruzam na marca do pênalti. Não existia pessoa mais preparada do que eu para cumprir a missão.

Ajeito a bola sem ter a mínima ideia do que viria em seguida. A cada passo pra trás, sinto um quilo a mais de responsabilidade pesando sobre as minhas costas. Foi a caminhada mais longa da minha vida.

Preste atenção aqui! Você já deve saber que eu acerto a cobrança, no canto esquerdo. O que você provavelmente não sabe é de um detalhe que passa despercebido pelas câmeras, mas tem tanta importância quanto meu próprio chute. 

Nós tínhamos um ritual no Palmeiras. Toda vez que eu ia bater pênalti, o César Sampaio se aproximava e dizia no meu ouvido:

“Vai em nome de Jesus.”

Aquilo era meu refrigério, que me acalmava e me trazia confiança.

Mas, enquanto eu caminho de costas, percebo que o Sampaio não chega. Olho para trás uma, duas, três vezes… “É, hoje ele não vem”, pensei.

Na hora que dou o último passo, já fora da meia-lua, ele finalmente aparece e diz essas palavrinhas tão simples, mas com o poder de mudar tudo.

“Vai em nome de Jesus.”

O peso que carregava em minhas costas desmorona. Me sinto tão leve que, ao correr pra bola, tenho a impressão de não tocar mais o chão. Flutuo pelo gramado, como quem caminha sobre as nuvens, até deslocar o goleiro e correr pro abraço.

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Poxa, e que abraço!

Não foi de propósito que eu saí para comemorar com os braços abertos. Mas essa, sim, é a comemoração que o torcedor palestrino merece. Naquele instante, eu quis abraçar cada um que cantou meu nome na chegada ao Morumbi. Cada um que precisou esperar mais de 16 anos para soltar de novo a sua voz, para voltar a gritar “É CAMPEÃO!!!”.

No dia seguinte, retornei a Crisólia pra dividir com a família a alegria pelo primeiro título da minha carreira. E lá reencontrei meu tio palmeirense. A amargura no coração deu lugar ao orgulho de ver que o sobrinho ajudou a tirar o time da fila.

Pude dizer, com toda franqueza, que a partir daquele dia nós tínhamos mais uma coisa em comum. Assim como ele, eu havia me tornado palmeirense. Minha trajetória se entrelaçou para sempre à do clube.

Depois do Paulista, eu fiz gol em todos os títulos importantes dos anos 90. Tive o privilégio de contribuir para que o nosso amado Palestra voltasse a trilhar sua merecida rota de conquistas.

Não tem um dia sequer que eu não pense no Palmeiras. Ainda sou reconhecido nas ruas por causa do Palmeiras. Isso representa muito pra mim. Estou marcado na história do maior campeão do Brasil.

Palmeiras campeao 1994
Acervo/Gazeta Press

Confesso que, às vezes, custo a acreditar que essa história – a minha, no caso – tenha tido um final feliz. Pois eu tinha tudo pra dar errado, né? 

O meia que virou centroavante.

O centroavante que virou reserva. 

O reserva que quase morreu, só servia para cansar os zagueiros adversários e virou atleta bichado

O  atleta bichado que foi barrado por deficiência técnica e virou última opção. 

A última opção que virou ídolo do Palmeiras.

O ídolo do Palmeiras que virou jogador da Seleção Brasileira. 

Nem a intuição do meu avô seria capaz de prever um percurso tão improvável. Sem dúvida, o desfecho mais bonito desse trajeto é poder olhar para trás e recordar que o Palmeiras fez parte da minha caminhada.

E que, ao longo da jornada, eu jamais estive sozinho.

Autografo Evair Palmeiras

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