Para a Fiel Torcida

Torcedor corintiano,

Neste 1º de setembro, aniversário de 112 anos do Corinthians, eu podia falar dos dois Brasileiros que ganhei como jogador do clube. Podia falar do tri paulista. Podia falar daquele 2018, quando ainda éramos tratados como “quarta força” do estado, mas fomos campeões em cima do rival.

Eu podia falar sobre qualquer um desses momentos grandiosos que vivi vestindo esta camisa — isso é o que não falta. Mas quero falar sobre um jogo de meio de campeonato. Um jogo de placar magro, 1 a 0, contra o Goiás. 

Um jogo que, para muita gente, já caiu no esquecimento das estatísticas. Mas que, para mim, é o contrário disso. É inesquecível.

19 de junho de 2022. E eu tenho que admitir, Fiel, eu estava ansioso. Ansioso como costumava ficar no começo da minha carreira no Corinthians, em 2006, quando o Leão me subiu para o time principal.

Eu estava há 11 partidas fora do time, quase seis semanas sem jogar, voltando depois de uma lesão no tornozelo. Lembro de estar pronto para entrar, do auxiliar levantar a placa com o meu número, e eu até dar uma olhada pra conferir se estava mostrando realmente o 23.

Foi aí que aconteceu. 

Quando pisei no gramado, já comecei a escutar vocês, todo mundo aplaudindo, cantando meu nome… Depois, assim que peguei na bola pela primeira vez, vocês gritaram tanto que a sensação foi a de que eu tinha marcado um gol!

Um lateral receber esse carinho todo? Isso me marcou muito. É algo que eu vou contar pros meus netos. Uma coisa comparável só à minha convocação para a Copa de 2018.

O frio na barriga que eu estava sentindo na hora de entrar não foi à toa. Aquilo não foi só meu retorno depois da lesão. Foi a prova definitiva de que eu tenho uma identificação direta com vocês, essa torcida imensa e incomparável, com o Time do Povo.

Eu sou um moleque do Terrão, mano! E para um jogador do Corinthians, não tem nada mais f*** do que isso.

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Duas coisas não faltaram na minha casa: a primeira foi dedicação total paterna. Minha mãe não esteve presente quando eu era criança e meu pai criou eu e meu irmão sozinho; a segunda foi futebol.

Sinceramente, Fiel? Minhas primeiras lembranças da vida: eu com uma bola no pé. Coisa de moleque mesmo. Jogo do Corinthians acabava na televisão, eu já descia para o pátio do prédio pra dar uns chutes. Ficava gritando pra molecada descer e jogar comigo.

Depois, quando eu tinha uns sete, oito anos, todo domingo meu pai levava a gente para uma pelada. E também tinham as vezes em que eu ia jogar sozinho com ele. A gente ficava jogando das oito da manhã às cinco da tarde. Sem parar.

Eu nunca fui driblador, mas meus toques de bola começaram a chamar atenção. Um tio sugeriu que meu pai me colocasse para treinar de verdade e aí a coisa começou.

Numa das escolinhas que joguei, o treinador levava a molecada pra fazer teste no Corinthians uma vez por semana. Demorou um pouco, mas quando eu finalmente fui… Cheguei lá no dia de outra categoria!

Meu pai explicou que a gente tinha vindo de longe, nessa época morávamos na Zona Sul de São Paulo — Santo Amaro, Jardim Capelinha, Heliópolis, bem longe do Parque São Jorge —, e eu pude ficar. 

Fiquei naquele dia e fui ficando nos próximos.

Foi bem nessa época, quando eu tinha uns 11 anos, que o negócio ficou mais sério para mim.

Eu e meu pai tínhamos um acordo de que eu não tinha obrigação de virar jogador. Sempre fomos pé no chão. Eu ia até onde me deixassem ir, aproveitava tudo que o futebol me dava, inclusive a possibilidade de estudar em escolas particulares, e ia levando.

Aí teve um campeonato chamado Mercosul em que participariam todos os times grandes e mais alguns pequenos. Eu já estava treinando no Corinthians, só que não fui convocado.

Eu não sou de aceitar derrota com facilidade, então, mesmo criança, botei na cabeça que ia dar um jeito de mostrar meu valor. Surgiu a oportunidade de eu jogar aquela competição pelo Jorge Bruder, uma equipe lá da Zona Sul, e meu treinador no Corinthians deu permissão.

A partir desse dia, eu só pensava numa coisa: Quero enfrentar o Corinthians!!

O resultado é que eu fui o destaque do campeonato e o Jorge Bruder só parou na semifinal, nos pênaltis, justamente contra… o Corinthians. Naquele jogo eu marquei um gol e dei cruzamento para outro. O jogo foi num domingo e eu me reapresentei para os treinamentos na segunda. Nem tinha chegado direito e o treinador começou a falar:

— Pô, você quase tira meu time do campeonato e agora chega aqui com essa cara de pau pra treinar?

Eu fiquei preocupado, mas era brincadeira dele. A partir daquele dia, eu me federei pelo Corinthians e minha família, que sempre viveu na Zona Sul, mudou comigo pra Leste. 

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Algum tempo depois, eu tinha 17 anos, estava no Corinthians B, e sempre que o Júlio César, goleiro, vinha treinar com a gente, ele brincava:

— Seu pai perguntou de você!

Meu “pai”, no caso, era o auxiliar do Leão que andava de olho na base. Eu fiquei com aquilo na cabeça, o cara devia estar interessado no meu futebol, mas nem isso me preparou para o que estava pra acontecer.

Era uma sexta-feira e, depois de um jogo que perdemos contra o Bragantino, o Edvar, que era o gerente de futebol, disse no vestiário:

— Semana que vem, Willian, Daniel e Fagner vão se apresentar no profissional.

Meu pai (o pai de verdade rsrs) fez questão de me levar no treino naquela segunda-feira. No caminho, foi tentando baixar minhas expectativas: quem tinha me visto jogar era o auxiliar, o Leão nem me conhecia e minhas chances de estrear eram poucas.

Só que o que meu pai não sabia é que os três laterais-direitos — Coelho, Ratinho e Edson — estavam machucados. Por isso, quando saiu a convocação na própria segunda, meu nome estava lá. 

Na sexta-feira eu treinava com o time B, na quarta eu ia jogar contra o Fortaleza, no Castelão, primeira divisão do Brasileiro.

Eu não acreditava, literalmente não estava preparado. Tanto que tive que sair correndo de volta pra casa. Precisava pegar cueca, uma muda de roupa, escova de dente e avisar meu pai que eu não ia poder ver o jogo ao lado dele na quarta-feira… Ele é que ia me assistir!

Comecei tímido, mas depois me soltei. Leão, Roger, Betão, Sebá… Lembro que todos me apoiaram, disseram para eu jogar como se estivesse no sub-15. No segundo tempo, mais relaxado, subi pelo menos três vezes, chutei a gol e dei um cruzamento.

Ganhamos de 4 a 0! Num dia eu estava saindo do treino e indo pra Fazendinha pegar autógrafos dos profissionais, no outro eu estava em campo jogando com eles.

Quando terminou o jogo, eu respirei fundo e só então, na saída do gramado, pude imaginar o quanto meu pai deveria estar orgulhoso em frente à televisão.

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Já contei que meu pai foi pai e mãe, mas preciso dizer isso de novo, porque, quando eu tinha 17 anos, eu só pensava em uma coisa: comprar uma casa pra ele.

Era um jeito de retribuir tudo que ele fez por mim. 

Nem todo mundo sabe, mas eu tenho um pequeno déficit de coordenação. Meu lado esquerdo é mais fraco que o direito, não consigo nem fechar minha mão e, na musculação, preciso de um aparelho especial para conseguir fazer os exercícios.

Quando eu tinha sete anos, entrei numa porta de vidro. Estava brincando no prédio onde morava e simplesmente entrei na porta. Rompeu todos os ligamentos, a pele descolou do braço, cortou artéria, tudo.

Minha sorte foi que uma vizinha, que era enfermeira, viu a cena toda e correu para fazer os primeiros-socorros. Ao chegar no hospital, fui operado por quatro horas e quinze minutos. Aqueles médicos salvaram minha vida.

Só que com o passar do tempo, meu braço esquerdo começou a atrofiar. Meu pai suspeitou que aquilo não era normal e me levou na AACD. Na cirurgia de emergência, alguns ligamentos ficaram grudados na pele e, por isso, eu teria que ser operado de novo.

Meu pai vendeu o carro, pagou todos os exames, a operação e, graças a Deus, eu pude ter uma vida normal.

Esse probleminha que eu tenho hoje atrapalha minha rotina de atleta? Zero. Mas essa história mostra como meu pai esteve presente, sempre atento. Muitas vezes sacrificava o próprio trabalho para cuidar de mim e do meu irmão. Nunca deixou faltar nada.

Por isso, Fiel, quando eu recebi o convite do PSV, não pensei duas vezes. 

Eu estava sem proposta de renovação com o Corinthians, contrato perto do fim, tinha acabado de ser campeão Sul-Americano com a Seleção sub-20, os holandeses queriam me levar e eu fui.

Quando estou no jogo, eu dou a vida.

- Fagner

Era o que eu queria? Não. Eu estava preparado para mudar de país? De jeito nenhum. Mas eu era um moleque de 17 anos com uma ideia fixa na cabeça: dar uma casa pro meu pai. E eu não ia desperdiçar aquela chance.

Na época, teve gente que me chamou de mercenário. 

Tudo que eu queria era poder me explicar, dizer que eu gostaria de ficar, contar toda a minha história… Mas, no final, isso soaria apenas como uma desculpa para quem estava criticando minha decisão.

Então, naquele momento, eu aprendi uma coisa. Críticas, contanto que não sejam direcionadas à família dos jogadores — com isso eu nunca vou concordar —, são normais e até saudáveis. Só que minha melhor resposta nunca será falando, retrucando.

Às vezes a torcida cobra e me vê calado. E tem uma razão de ser assim. Cada coisa tem um momento pra ser dita e, no meu caso, o melhor não é nem dizer nada, é jogar!!

Hoje eu tenho maturidade pra entender que num lance você erra feio, mas isso não faz de você o pior jogador do mundo. Assim como, quando você acerta, não vira o melhor. É possível cometer um pênalti e dar uma assistência na mesma partida. O jogo é assim. Por isso, minha melhor resposta é sempre dentro de campo. Tudo no seu tempo.

Desde que saí, eu carreguei comigo o desejo de um dia voltar ao Corinthians.

Em 2014, quando eu finalmente consegui, fiz questão de jogar com a camisa 35 o ano todo. Era esse o meu número quando subi para o profissional. Só na temporada seguinte passei a usar a 23. Mesmo que de uma forma simbólica, eu quis zerar qualquer mágoa que o torcedor pudesse ter de mim para então reescrever a minha história.

Poucas palavras, muita entrega em campo. Essa foi a maneira que eu encontrei de responder àquelas críticas lá de trás. 

A verdade é que eu nunca deixei de ser um moleque do Terrão.

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Títulos? É como eu disse. Eu podia falar de títulos, mas os títulos são consequências. Nos últimos anos, o Corinthians se estruturou, virou referência, formou bons elencos, ganhou muita coisa. Mas eu sei o que está no nosso DNA. É o maloqueiro, o sofredor… Graças a Deus!

Tem gente que fala: “Ah! Já viu o Fagner em campo? O cara é maluco”. Sou mesmo! Quando estou no jogo, eu dou a vida. Vou disputar cada bola com a consciência de que em campo eu não sou o Fagner, sou as pernas de mais de 30 milhões de torcedores.

Quer saber de uma coisa, Fiel? Assim como vocês, eu não suporto perder, fico puto. Nem videogame eu jogo mais com meu filho, porque agora ele ganha todas, quer fazer graça e eu acabo ficando irritado, bravo de verdade!

Pra mim, isso é ser Corinthians. É não se conformar com a derrota, é a torcida gritar sem parar, é o jogador nunca parar de correr, dividir todas, tentar vencer até o final — seja do jeito que for.

Às vezes a gente toma um gol e o adversário pensa: agora essa torcida vai calar a boca. Até parece! Eles não sabem o que é a Fiel! Eles fazem gol e vocês gritam mais!!

Na pandemia, quando jogamos com a Arena vazia, tivemos um dos piores aproveitamentos dos últimos anos. Foi o torcedor voltar para melhorar… O Corinthians é realmente diferente.

Não se conformar com a derrota, a torcida gritar sem parar, o jogador nunca parar de correr: isso é ser Corinthians.

- Fagner

Por tudo isso, não é porque eu joguei uma Copa, porque eu ganhei uns campeonatos, que eu vou me acomodar. Eu não posso, porque eu levo comigo uma frase que o Magrão me disse logo que eu subi da base: “Chegar é fácil, difícil é se manter”.

E sabe onde eu quero me manter? No Corinthians. Ganhando títulos, claro. Mas, acima de tudo, quero entrar numa partida de meio de tabela, num Corinthians x Goiás, vamos dizer, e ouvir vocês gritando meu nome.

Com a Fiel nos apoiando da arquibancada, todo jogo é final de campeonato.

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O Corinthians me deu tudo que eu tenho. Me formou como atleta, como profissional, como ser humano. Anos depois, se eu não tivesse voltado para o Corinthians, basta dizer que também não teria defendido o Brasil numa Copa do Mundo.

Quando o Tite fez a convocação, ele falou o nome de todos os defensores e me deixou por último. Eu tava naquela expectativa, mas, quando finalmente ouvi ele dizer “Fagner!”, pensei que eu estaria lá na Copa por mérito meu, mas que nunca deixaria de representar o Corinthians.

Eu não era o Fagner, lateral do Brasil.

Eu era o jogador do Corinthians na Seleção.

Tem dias, no meio de uma partida, que você para um segundo pra cobrar um lateral e ouve a Fiel gritando, cantando como um bando de loucos… Aí você pensa, como já pensou muitas outras vezes, que “pô, hoje tá animal!”. 

Nada no mundo é igual a essa sensação. É um negócio que te empurra pra frente. Que te faz querer vencer a qualquer custo.

Nesses momentos, eu paro e olho pra camisa do Corinthians e lembro de um outro uniforme. O uniforme do colégio com que eu ia treinar quando era moleque. Eu chegava com ele limpo, branquinho, e saía todo sujo do Terrão.

Muita coisa mudou de lá pra cá, Fiel. Estádio, centro de treinamento, estrutura, títulos…

Mas às vezes, no meio do jogo, parece que eu me vejo com aquele mesmo uniforme sujo. Me vejo no meio de vocês. E me lembro que eu represento vocês em campo.

Aí eu corro em dobro, que nem um maluco. 

Afinal, foi dessa terra que eu vim.

#VaiCorinthians