Pentacampeões
Próxima etapa.
Próximo time.
Próximo desafio.
Sempre me guiei pelo presente em minha estrada no futebol. Por olhar para o futuro e tocar em frente. O esporte me ensinou a pensar assim.
Eu nunca vivi nem quero viver do passado, porque aprendi que tanto as vitórias quanto as derrotas não devem durar mais que a vontade de dar o passo seguinte. Assim é o futebol. Assim eu me formei como jogador e treinador.
Agora, se me permites abrir esta exceção, eu gostaria de voltar atrás para relembrar uma conquista que ficou marcada no coração de todos os brasileiros. A conquista do nosso quinto título mundial, o pentacampeonato no Japão.
Bah, nem consigo acreditar que já se passaram 20 anos desse título. E, principalmente, da formação daquele grupo que tive o privilégio de treinar.
Mas sabe de uma coisa? Eu jamais sonhei chegar à Seleção Brasileira. “Ah, vou trabalhar no Grêmio, no Criciúma, no Goiás, no Palmeiras ou no Cruzeiro para dirigir a Seleção.”
Humhum!
Eu sempre trabalhei pelo clube, pois era o clube que dava essa visibilidade para mim. Quando apareceu a chance de treinar a Seleção é que, aí sim, eu fui trabalhar por ela com o máximo da boa vontade, disciplina, qualidade e tudo aquilo que eu tinha a oferecer. A base que adquiri nos clubes foi essencial para cumprir nosso primeiro objetivo, que era a classificação para a Copa do Mundo.
Havia uma pressão imensa, porque não estávamos bem nas Eliminatórias e precisaríamos ganhar uma série de jogos para nos classificar. Eu já estava acostumado com cobranças, mas, na Seleção, as coisas tomam uma proporção muito maior.
Só no último jogo, contra a Venezuela, a gente conseguiu confirmar a vaga no Mundial. E, de certa maneira, começamos a ganhar o penta ali. Tu pode até duvidar, mas a parte mais difícil de uma Copa do Mundo não são necessariamente aqueles seis jogos até a final.
Primeiro, tem que chegar lá, passar das Eliminatórias. Depois, é preciso definir o grupo para disputar a competição. E essa etapa costuma ser bem mais complicada do que parece. Não é só convocar os melhores de cada posição. É, acima de tudo, escolher os melhores para a equipe.
Quando cumprimos a parte da classificação, existiam muitas dúvidas entre os próprios jogadores. As Eliminatórias acabaram gerando desconfiança na cabeça de um ou outro atleta.
“Será que eu vou pra Copa do Mundo?”
“Será que o treinador vai tomar tal posição?”
“Será que ele vai valorizar mais a equipe ou a individualidade?”
“Será que eu me encaixo nos critérios?”
Eu podia sentir essa apreensão do lado deles logo que a gente se classificou. Normal, o jogador é ser humano, tem sentimentos, e o treinador precisa entender isso.
O melhor que tu pode fazer numa situação dessas é passar segurança aos atletas. E aí é onde tu começa a botar a mão em mais um pedacinho da taça. No caso da Seleção, eu diria que a campanha do pentacampeonato começou pra valer em março de 2002, três meses antes da abertura do Mundial. Foi quando fizemos nossos últimos amistosos no Brasil.
Goleamos a Islândia no primeiro e, no segundo, vencemos a Iugoslávia por 1 a 0. Mais do que o resultado, o que nos interessava naquele momento era a formação da equipe. Não um time, porque, à essa altura, a gente já tinha uma boa noção de como iríamos jogar, mas um grupo que representaria o país no torneio mais importante do mundo.
Montar esse grupo exige de ti a capacidade de enxergar como cada jogador pode contribuir com a equipe dentro e fora de campo. E aqueles amistosos me deram a amostra que eu precisava para ter certeza que nosso time, finalmente, havia se tornado um grupo.
A parte mais difícil de uma Copa do Mundo não são necessariamente aqueles seis jogos até a final.
- Felipão
Contra a Iugoslávia, o Ronaldo Nazário voltou à equipe depois de mais de dois anos sem atuar pela Seleção. Como ainda não estava totalmente curado da lesão no joelho e tinha jogado pouco pela Inter de Milão, muitos acreditavam que ele não jogaria a Copa, mas a gente confiava que podia recuperá-lo. O Ronaldo também confiou em nós, e o grupo compreendeu o quanto ele agregava.
Seguindo a programação determinada pelo departamento médico, fisioterapia e preparação física, ele só jogou um tempo. Na volta do intervalo, entrou o Luizão, que fez o gol da vitória e veio abraçar o Ronaldo no banco de reservas. Todos nós nos abraçamos naquele momento. E nos sentimos abraçados pelo calor da torcida em Fortaleza.
O Luizão tinha sido o titular no jogo decisivo contra a Venezuela. Marcou dois gols e foi fundamental para assegurar a vaga. Ainda assim, parte da imprensa não queria que eu o levasse para a Copa, porque entendia que havia jogador melhor pra Seleção. Eu não só o levei, como fiz questão de dizer pessoalmente que ele estaria no Mundial com dois meses de antecedência. Dei o mesmo aviso aos jogadores que não eram unanimidade para a opinião pública.
“Podem ficar tranquilos, vocês vão jogar.”
A partir dali, o grupo começa a tomar forma. Nasce a confiança de poder olhar um para o outro e dizer: “Eu acredito em ti, eu vou fazer isso e tu vai me ajudar assim”. Cria-se o ambiente de vitória para a Copa do Mundo. Tanto que, quando chega a hora da convocação final, eu praticamente não tinha dúvidas sobre quem levaria para a Coreia do Sul e o Japão.
No começo da nossa preparação na Espanha, já dava pra sentir que havia uma união, uma conexão muito maior naquele grupo. Se o jantar era às 19h, os jogadores ficavam nas mesas até 20h, 21h contando histórias, fazendo brincadeiras, falando o que desse na telha… Eles sabiam que aquele espaço era deles, que nenhum membro da comissão técnica se meteria na conversa se não fosse chamado. E várias vezes a gente também sentava com os atletas, que realmente aproveitavam esses momentos de interação.
Isso tu não encontra mais em nenhum time de futebol.
Até porque eram outros tempos, sem celular, laptop, Facebook, Whatsapp… Hoje em dia cada um se comunica com o mundo à sua maneira. E existe cada vez menos espaço para a convivência em grupo.
Em 2002, nós tínhamos mais do que convivência. O sentimento era de amizade, parceria e, sobretudo, de muita confiança. Algumas pessoas ainda pensam que eu criei a “Família Scolari”, mas esse termo surgiu da imprensa, que presenciou o comprometimento daqueles jogadores em servir à Seleção. De fato, o que havia ali era um ambiente familiar, construído desde o nosso primeiro encontro em Barcelona.
Sobre a parte da confiança, preciso fazer uma observação. Quem via de longe até podia imaginar que os jogadores tinham de seguir cartilha ou código de conduta, mas a verdade é que nunca existiu um livro de regras na Seleção. A única exigência era o cumprimento dos horários combinados. Fora isso, cada um tinha liberdade de ir e vir na concentração.
Todos assimilaram muito bem a nossa proposta, tanto que não tivemos nenhum problema disciplinar. E esse entendimento se refletia nos treinos, com todo mundo disposto a colaborar da melhor forma que pudesse.
Foi também na Espanha que aprimoramos e consolidamos nosso esquema de três zagueiros para a Copa. Nós reunimos jogadores com características para jogar em mais de uma posição, incluindo zagueiros que poderiam atuar como volantes e vice-versa: Polga, Edmílson, Roque Júnior, Gilberto Silva… Por outro lado, também tínhamos Cafu e Roberto Carlos, laterais que avançavam bastante no apoio.
Muita gente pensa que jogar com três zagueiros é uma formação defensiva, mas, pelo contrário, é altamente ofensiva, porque libera dois jogadores pelos lados. Por isso muitas equipes do Brasil e do mundo inteiro jogam dessa forma atualmente.
Nossa ideia era aproveitar o melhor de cada atleta em nome da equipe. E como eles recuperaram logo a confiança que tinha sido abalada durante as Eliminatórias, eu estava convicto, apesar das críticas ao trabalho, de que faríamos um grande campeonato. Uma convicção que aumentou ainda mais com a segurança que nosso time demonstrou na fase de grupos e, especialmente, depois do jogo contra a Inglaterra nas quartas de final.
Após a expulsão do Ronaldinho, a gente continuou jogando bem, com inteligência e organização. Fomos melhores que nosso adversário mesmo com um homem a menos. Nessas horas, a entrega dos jogadores faz toda a diferença.
Rivaldo, que era um dos artilheiros do time, por exemplo, foi taticamente impecável. Ele recompôs o meio-campo, disputava os tiros de meta pelo alto e ganhava toda segunda bola a nosso favor. Isso é ser craque e jogar para a equipe.
Ninguém naquele grupo tinha a vaidade de ser a estrela, de brilhar sozinho, algo que ficou muito evidente na final contra a Alemanha.
Antes do jogo, em conversas reservadas com os jogadores, eu escutei uma coisa parecida de praticamente todos eles: “Professor, nós queremos ganhar a Copa, não importa quem vai fazer o gol”. Olha, mesmo com tantos anos de futebol, eu nunca tinha visto uma unidade de pensamento como a que existia naquele grupo.
E na hora da decisão, tivemos mais uma prova do que é ser craque e jogar para a equipe.
O Ronaldo Nazário, sendo bem franco aqui, não gostava muito de fazer treino tático nem de marcar os zagueiros que saíam com a bola. Mas, antes mesmo da Copa começar, eu propus a ele um acordo.
“Tu vai fazer só 15 minutos de treinamento tático. Depois, tá liberado pra fazer chute a gol, bater pênalti e tudo aquilo que tu gosta de fazer.”
E assim foi. Nesses 15 minutos de treino, eu pegava no pé dele. “Perdeu a bola? Ataca o primeiro que estiver na frente.” Eu queria que ele fosse o goleador, mas que também ajudasse na marcação.
Na final, ele perde a bola, mas se levanta e rouba logo em seguida… Passa pro Rivaldo… Que chuta… O Oliver Kahn espalma… E o Ronaldo pega o rebote.
No segundo gol, os craques novamente jogam para a equipe. Dessa vez, o Rivaldo faz o corta-luz para o Ronaldo finalizar. No momento que ele veio nos abraçar na beirada do campo, eu senti algo semelhante àquele abraço da torcida em Fortaleza na nossa despedida do Brasil. Eu me senti abraçado pelo povo brasileiro, por 200 milhões de torcedores.
Uma sensação inesquecível, espetacular.
É engraçado que, antes de entrar em campo, parecia até que a gente não estava ali para jogar uma final de Copa do Mundo. Explico pra ti o porquê.
Primeiro, chega o ônibus da Alemanha. Os jogadores sérios, compenetrados, todos formais e em silêncio, organizando uma fila para seguirem juntos rumo ao vestiário.
Depois, chega o ônibus do Brasil… Bah, o ônibus do Brasil tu nem acredita!
Desce o Ronaldinho com atabaque na mão, o Cafu com um pandeiro, Denílson e Dida levando os tambores… Pá, pá, pá, tum, tum, tum!! Cantando Ivete Sangalo, Zeca Pagodinho, aquele ziriguidum… Faltam poucas horas pro jogo começar e os nossos jogadores estão fazendo um pagode na porta do estádio! Os alemães olhando aquilo sem entender nada, incrédulos.
Um treinador nessa situação poderia ficar preocupado, pensando: Os caras vão jogar uma final batucando desse jeito? Mas eu, não. Eu estava despreocupado. Pela confiança que existia no nosso ambiente, era ali que eu ficava tranquilo. Sabia que eles estavam felizes para jogar.
Se ganhamos 20 anos atrás, é porque havia um grupo que entendeu o significado de jogar em equipe.
- Felipão
E esse é o resumo perfeito do que foi aquela final: jogamos um futebol alegre e irreverente, de acordo com a tradição brasileira, mas com a disciplina tática alemã. Um equilíbrio que só foi alcançado porque os jogadores compreenderam que, se um ajudasse o outro, se jogássemos como uma verdadeira família, ninguém poderia nos vencer.
Porém, eu não queria escrever isso apenas para lembrar que nós vencemos ou que nós somos vencedores.
Eu nunca me senti especial por ter ganhado uma Copa. Não, eu me sinto parte do grupo que ganhou. É maravilhoso. Poucos no mundo conseguem isso, muito poucos, mas eu me sinto só mais um que contribuiu para a vitória.
É uma lembrança que vou guardar para sempre. Uma lembrança que passa, também. Como eu disse no começo, o esporte nos ensina a tocar em frente.
Deixo a vida me levar, sem ter a pretensão de carregar os méritos das conquistas que participei. Ninguém ganha nada sozinho. E se ganhamos 20 anos atrás, é porque havia um grupo que entendeu o significado de jogar em equipe. De vencer em equipe.
Eu queria escrever isso para lembrar por que e como nós vencemos.
Não gosto de dizer que eu sou pentacampeão do mundo.
Nós somos pentacampeões do mundo.
O Brasil é pentacampeão do mundo.
Somos os únicos.
E mesmo que um dia não sejamos mais, o futebol pentacampeão sempre será respeitado.
Que venham os próximos desafios.