Treinei, Confiei, Venci
Quando me perguntam como foi jogar até os 42 anos, de cara o que me vem à mente não é nenhuma das inúmeras partidas marcantes que eu disputei. Nem os títulos que conquistei. Ou aqueles pênaltis que eu defendi dentro de Itaquera e eliminaram o Corinthians do Paulistão de 2015. Isso tudo foi sensacional. Mas o que a memória me traz primeiro são as milhares de horas que passei treinando.
Cara, como eu treinei. Não estou exagerando nem contando vantagem. Estou relatando como as coisas aconteceram.
Bah, treinei até no dia minha despedida, em 2021. Eu estava no Ceará, a gente ia enfrentar o Botafogo à noite no Castelão, última rodada do Campeonato Brasileiro, meu jogo derradeiro antes da aposentadoria, e na parte da manhã eu fui pro campo treinar.
Sei lá, acho que treinar era a minha superstição.
Porque tu sabe, não é? O camarada que passa a vida ali onde a grama não cresce tentando estragar a festa dos outros precisa se proteger de alguma forma.
E cada um se protege como pode. Entra com o pé direito em campo. Faz o sinal da cruz, acende uma vela… Eu tenho um amigo goleiro que não cortava as unhas antes do jogo. Dizia que dava azar. Outro deixava as luvas de molho na água benta. E um terceiro, se tomasse gol, jogava fora as luvas mesmo se elas estivessem novinhas. Pra ele, se a bola passava, as luvas não prestavam mais. Taca no lixo!
Eu respeito as superstições e as crenças de todo mundo. Se a gente for frio e pensar de maneira lógica é claro que elas não fazem tanto sentido. Mas a beleza do futebol está na falta de lógica e de sentido. Então, se tu acredita que vai jogar melhor dando três pulinhos na beirada do campo antes de entrar, pode crer que tu vai. É sério! Porque futebol se joga com a cabeça. E das 11 posições em campo, a de goleiro é a que mais depende da força mental.
Se um atacante erra dez vezes num jogo e acerta uma, ele vira herói. Se um goleiro acerta dez e erra uma, pode ser o fim. Como é que tu trabalha sossegado nessas condições?
Bom, no meu caso, o que deixava a minha cabeça tranquila pra entrar em campo confiante era treinar. Treinar pra cacete. Essa era a minha crença. Um dia, na base do Grêmio, eu na reserva buscando meu espaço, um treinador que me via chegar antes e ir embora depois de todo mundo, falou assim:
— Não sei por que tu treina tanto desse jeito. Tu não vai jogar.
Aquilo me deixou desnorteado. A minha carreira, que mal tinha começado, podia ter acabado ali. A única resposta que eu consegui dar a ele foi silenciosa: chegar ainda mais cedo na manhã seguinte e treinar um pouco mais. Eu pensava: Ah é? Vamos ver se eu não vou jogar.
Muitos anos depois, na final da Copa do Brasil de 2015, Palmeiras x Santos, de repente eu me lembrei desse episódio. A decisão tinha ido pros pênaltis e, enquanto eu me concentrava no relatório de como os jogadores do Santos batiam, a voz daquele treinador martelou dentro de mim.
“Não sei por que tu treina tanto.”
A vida dos goleiros estava esquisita naquela temporada. Pelo menos três dos bons precisaram bater pênaltis: o Deola, do Fortaleza; o Cavalieri, do Fluminense; e o Jefferson, do Botafogo. Eu intuí que uma hora podia sobrar pra mim também. Então, no meu ritual incansável em busca de confiança, treinei cobranças durante seis meses. Todas as semanas. Vai que…
Pois de tanto treinar, aprendi a bater direitinho. Aí, decisão por penalidades é aquela coisa: o treinador passa perguntando pros jogadores: “Como é que tu tá? Bate?”. E o cara responde: “Ah, professor, se precisar…” Poucos querem bater, essa que é a verdade. Muita responsabilidade.
Naquela noite, alguém gritou no meio da rodinha: “O Prass treinou bastante e tá batendo bem”. Putz! O Marcelo Oliveira, nosso treinador, veio direto em mim:
— Tu bate?
— Bato. Mas me põe pra cobrar o quinto.
Eu tinha treinado, sabia o que fazer, mas decisão por pênaltis não é uma situação em que tu fica 100% tranquilo. Eu nunca tinha batido pênalti fora do treino. Por isso meu plano era defender duas cobranças pra não chegar na minha vez.
Só que não adiantou.
Quando eu pego a bola pra bater, o Vanderlei, goleiro do Santos, diz: “Ô, Prass, eu nem vou me mexer. Vou ficar no meio. Pode chutar!”.
Caramba, será que alguém passou pra ele como eu treinava?
De fato, eu cobrava forte no meio do gol. Me dava mais segurança. E o Vanderlei: “Vai, Prass. Chuta bem no meio. Vamo lá, chuta aqui que eu vou pegar!”.
E agora? O que eu faço? Mudo a minha batida?
Peguei a bola, ajeitei ela na marca, respirei e, enquanto tomava distância, a frase do treinador do Grêmio martelou de novo. Era o que eu precisava.
“É pra isso que eu treino tanto. Pra ter confiança.”
Enchi o pé no meio do gol. O Vanderlei saltou pro canto e acabou! Palmeiras campeão!
Foi a maior descarga de adrenalina da minha vida. Eu simplesmente não consigo lembrar o que aconteceu nos 30 segundos seguintes. Apaguei. Só voltei a mim quando o gandula me trouxe a bola do meu pênalti, que eu guardo até hoje como um troféu, um símbolo não do título, mas da construção que nós iniciamos no Palmeiras no ano anterior, um 2014 difícil, pesadíssimo, mas que foi o alicerce desse Palmeiras espetacular de hoje.
Eu sinto um orgulho gigante de ter contribuído nessa obra. Principalmente se tu pensar que eu cheguei no Palmeiras já veterano, com 35 anos. Meio inusitado, até pra um goleiro, ser contratado por um time de ponta nessa idade e ainda por cima pro lugar de ninguém menos que o Marcos.
Fui o primeiro goleiro que o Palmeiras contratou em 19 anos. Entre mim e o Gato Fernández, em 1994, só a galera da base, da incrível fábrica palmeirense de craques. Mas eu estava acostumado. Boa parte da minha carreira tinha sido uma coleção de fatos inusitados. Inclusive eu ter me tornado goleiro.
Eu comecei na linha, com uns quatro anos, no time de futebol de salão que os pais da minha cidade criaram pros filhos brincarem. Eu sou de Viamão, no Rio Grande do Sul, e lá não existia escolinha de futebol antigamente. Então, a nossa diversão era nesse time, a Associação Atlética Independente.
Depois de um tempo, ali pelos dez anos de idade, a gente foi disputar o campeonato praiano, muito tradicional lá no Sul. Só que o nosso time ficou sem goleiro um dia antes da estreia. Combinamos de cada um da linha ir pro gol a cada jogo. Sorteamos quem seria o primeiro e deu o mais baixinho de todos: o Nonô, que era meu apelido de infância. Eu tinha dez anos, mas o corpo de um guri de sete.
Se tu pega a foto do nosso time, eu dou no ombro dos outros meninos. Mas a sorte quis assim, eu encarei. Jogava de volante e não tinha nenhuma noção de como “agarrar no gol”, como a gente dizia. Nenhuma. Eu fiz tudo por instinto naquele dia.
Resultado: joguei bem, o nosso time ganhou e nunca mais me deixaram sair de debaixo das traves. Ainda bem. Porque eu tomei gosto, comecei a treinar, me aperfeiçoar e, quando eu tinha 13 anos, um olheiro do Grêmio me viu nesse campeonato praiano e me levou pra fazer um teste.
Fiquei dez anos no Grêmio, que era o meu time de infância, o time do coração do meu pai, do meu avô, e não disputei uma partida profissional sequer. Essa é uma tristeza que eu levo, fazer o quê? Logo que cheguei no clube, o que eu mais ouvia era: “Ih, não vai vingar. Muito baixo”. Eu não queria perder a chance. Eu amava jogar futebol. Sentia um prazer danado em fazer aquilo.
Então, pra prolongar aquela sensação o máximo possível, eu pus na cabeça que só me restava treinar e confiar que uma hora ia dar certo. Ali pelos 15 anos veio o famoso estirão. Eu fiquei mais alto e pronto: agora vai melhorar! Só que não. Me machuquei, fiquei muito tempo afastado e não deslanchava. Quando eu já estava prestes a largar tudo e ir fazer faculdade, me chamaram para um treino no profissional. Foi num dia de folga em que eu estava de bobeira no clube e tive que pegar emprestadas as luvas do Danrlei. Maravilha! Agora vai! Não foi de novo.
Foi a maior descarga de adrenalina da minha vida. Eu simplesmente não consigo lembrar o que aconteceu nos 30 segundos seguintes.
- Fernando Prass
Uma tarde o técnico dos juniores me tirou no meio do treino:
— Enquanto seu tiro de meta não passar do meio de campo, tu nem precisa voltar.
Eu fui pra casa arrasado, mas disposto a treinar até a exaustão. Fui pra uma rua tranquila com duas bolas que eu tinha e fiquei chutando o mais longe que eu conseguia. Gastava mais tempo indo buscar as bolas do que praticando. Eu queria muito seguir em frente e, se no Grêmio as coisas não aconteceram como eu desejava, posso dizer que a persistência me formou como jogador. Forjou o jeito que eu encararia o futebol dali em diante: um fiel adepto do ritual de treinar, treinar e treinar.
Saí do Grêmio e fui rodar. Em cada parada aprendia algo diferente. Na Francana, do interior de São Paulo, aprendi que, no futebol, às vezes a gente vai ter que trabalhar só pra comer.
No Vila Nova, de Goiás, aprendi que a confiança tira o nosso medo. Fomos pra final do Campeonato Goiano contra o favorito Goiás. Na véspera, um jornalista da televisão mostrou no ar uma cueca suja e falou que era dos jogadores do Vila Nova, todos amedrontados com a decisão. Ganhamos os dois jogos e demos a volta olímpica num Serra Dourada com 60 mil pessoas.
No Coritiba, aprendi a ser grande: primeira Série A, primeira Libertadores, primeiro jogo no Maracanã, no Mineirão, no Morumbi… Até pênalti do Romário e do Ceni eu defendi.
Aí, depois de um bom período em Portugal, fui pro Vasco, onde aprendi que líder não é o cara que grita, é o cara quem confia nos companheiros. Fomos campeões da Copa do Brasil de 2011. Eu já tinha 33 anos e era o capitão de um time que entendeu que precisava confiar uns nos outros se quisesse chegar a algum lugar, já que salário era uma miragem e aparecia só de vez em quando. Apesar disso, o ambiente era fantástico.
Um dia a nutricionista do clube me procurou e falou que estava chateada porque ela preparava todo o nosso lanche das 22h00 e ninguém descia dos quartos pra comer. É que a gente ficava todo mundo amontoado num quarto só, ouvindo música, papeando, contando piada e pedia X-Podrão na lanchonete da esquina. Foi esse ambiente de união e companheirismo que me deu o meu primeiro título nacional.
E aí vem o Palmeiras. Inusitado, amedrontador, imenso, mas uma das coisas mais formidáveis que já me aconteceram na vida. Cheguei em 2013 pensando em jogar dois anos, até os 37, e pendurar as luvas. Fiquei sete temporadas, as melhores da minha carreira.
No Palmeiras eu também aprendi algo importante. Aprendi que time grande pode ser que nem areia movediça. Uma hora está tudo bem, na outra tu tá se debatendo pra não ser engolido — e quanto mais se debate, maior o risco de afundar. Por outro lado, tem nas arquibancadas uma torcida sensacional, que reconhece o teu trabalho e sempre jogava a corda pra te salvar. O Palmeiras é assim. Um clube muito, muito especial nesse sentido.
Na minha primeira temporada, fomos campeões da Série B e tudo parecia que ia bem. O ano seguinte, 2014, era pra ser de terra firme, sem areia movediça por perto. Havia muitas coisas boas acontecendo, muitos presentes pra dar pros torcedores.
Era o ano da volta pra Série A, o ano do centenário, o ano da inauguração do Allianz.
Era pra ser um ano emblemático na história do clube.
E foi, só que de um jeito dramático. Uma luta absurda pra gente não voltar pra segunda divisão.
Pra piorar, quebrei o cotovelo num jogo da terceira rodada contra o Flamengo no Maracanã e fiquei cinco meses sem jogar. E ali, naquele momento trágico que se seguiu, com o time na lanterna e eu sem poder sequer pisar no campo, tive uma reação diferente da frase que sempre me assombrou, ora como desdém, ora como desafio: “Não sei por que tu treina tanto”.
O Palmeiras multicampeão de hoje nasceu do sofrimento, da luta, da entrega daquele grupo de dez anos atrás.
- Fernando Prass
Na minha hora mais escura, ficou claro pra mim: eu treino tanto, treinei tanto a minha vida toda, pra me tornar um cara confiável quando eu não pudesse jogar. Porque o Dorival Júnior, nosso técnico, fez questão que eu continuasse por perto no dia a dia do time. Então, mesmo machucado, eu estava sempre no CT, estava em todas as concentrações, reuniões, viagens, em todas as vitórias e nas derrotas também.
Isso ajudou um bocado na nossa recuperação, a minha particular e a da equipe. Voltei contra o Botafogo, Maracanã de novo, na 27ª rodada. Dali pra frente enfileiramos uma sequência de bons resultados e, faltando cinco jogos, a gente precisava só de uma vitória pra não cair. Mas as coisas foram apertadas até o fim. Time grande é areia movediça. Acabamos nos salvando com um empate na última rodada.
E então, nessa hora que era mais de alívio que de festa, eu tive a certeza de estar num time que ia fazer história. O Palmeiras multicampeão de hoje nasceu do sofrimento, da luta, da entrega daquele grupo de dez anos atrás e, principalmente, do apoio dos nossos torcedores, que pareciam pressentir que o Palmeiras se tornaria o clube a ser batido no país e no continente.
Foi mágico poder participar de tudo isso e não tem um dia que eu não agradeça pelo bendito sorteio no futebol praiano que fez do baixinho Nonô um goleiro improvável. Eu certamente não teria vivido as gigantescas emoções que vivi, do início por acaso ao auge da minha caminhada, se lá atrás não confiasse que a solução para vencer era treinar, treinar e treinar.
Se tivesse que resumir em três palavras a minha história inesquecível no Palmeiras ou a minha carreira como atleta de uma única superstição, eu diria que…
Treinei, confiei, venci.