Para as Minhas Duas Famílias
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As últimas semanas têm sido uma loucura.
Não, eu não vou mentir. Isso é o que a disputa para jogar a Copa do Mundo pela Seleção Brasileira faz com você, cara. Todo mundo sabia que o Tite ia escolher 26 jogadores, certo? Então, você deve ficar calmo e aguardar a convocação.
Mas fiz todas as contas. Minha cabeça ficava girando. Eu pensava, então, quantos atacantes ele vai levar?
Quem está disponível? Ele precisa de mim?
Ele vai me levar??
Cara, é muito cansativo. Eu poderia muito bem ter ficado em casa com um pedaço de giz e uma lousa, contando os jogadores, fazendo as contas!!
Quando o Tite me ligou, fiquei muito emocionado. Pô, você não faz ideia… Eu senti como se estivesse vivendo em algum tipo de mundo paralelo de fantasia. Devo muito a tantas pessoas... especialmente aos meus pais. Mas quero começar agradecendo à minha segunda família — o Arsenal — porque, sem vocês, nada disso seria possível.
Agradeço a Deus por ter vindo para o Arsenal em 2019. Eu realmente acredito que as coisas acontecem por uma razão especial e eu estou muito feliz aqui. É engraçado olhar para trás agora, porque eu poderia facilmente ter ido parar em outro lugar.
Veja só, eu fazia parte desse projeto do Manchester United. Na verdade, eu cheguei a fazer uns testes lá. Até conheci muitos dos jogadores mais velhos. Aos 17 anos, fiz minha última avaliação e daí voltei para o Brasil, esperando notícias.
Um dia meu pai me chamou na sala. Ele falou com meu agente e... bem, o Manchester United disse que não.
Não apenas: “Não para este ano”.
Foi mais na linha: “Não, nós não o queremos. De jeito nenhum”.
Para ser sincero, fiquei abalado. Eles tinham me visto em campo várias vezes, e eu tinha essa certeza de que eles iam me contratar, sabe?
Algumas semanas depois, fiz outro teste, desta vez no Barcelona. Passei 15 dias lá. Eles também não me queriam. Isso foi mais fácil de aceitar, porque foi só uma tentativa. Mesmo assim...
Me lembro de sentar com meu pai e perguntar: "O que vamos fazer?"
Você não pode realmente entender minha história sem saber sobre meu pai, João. Ele investiu tanto na minha carreira quanto eu. Quando eu era pequeno, ele decidiu me levar para um teste no Corinthians assim que completei seis anos. Só pra deixar claro, é um dos maiores clubes do Brasil. Quem faz isso? Ele queria se tornar profissional, mas não deu certo, e então queria que eu conseguisse. Os pais costumam ler histórias de ninar para seus filhos. Meu pai ficava dizendo: “Quando você fizer seis anos, eu levo você…”
Hahaha. Ele nem sabia se eu seria bom o suficiente. Tudo o que tínhamos feito era jogar em uma quadrinha perto da nossa casa em Guarulhos, São Paulo. As traves nem tinham redes. Eu pulava nas costas do meu pai, descíamos para a quadra e quando chegávamos eu dizia: “Pai, vamos driblar! Vamos jogar!"
E meu pai respondia: “Não, não. Vamos treinar seu pé esquerdo”.
Pé esquerdo!!! Eu não tinha nem seis anos! Só que meu pai estava falando sério. Ele era o goleiro, jogava a bola pra mim e eu chutava, e chutava, e chutava, e chutava...
Dez chutes... cem chutes... mil chutes...
Cara, eu sempre reclamo disso. “Já deu, pai...” Que dor!
Eu só queria me divertir, sabe? Eu não ficava por aí dizendo: “vou virar profissional”. Quero dizer, talvez quando eu assistia a Copa do Mundo, eu estivesse sonhando com isso. Quando a bandeira está pintada na frente da sua casa, quando você tem 15 familiares no seu quintal, a TV está ligada, tem balão, fogos de artifício, buzinas, seus primos subindo as escadas correndo e seu tio no churrasco… como não? Você tá assistindo a Seleção e pensa: Imagina vestir essa camisa em uma Copa do Mundo...
Mas eu só queria jogar. Minha mãe, Elizabete, dizia que eu era um “moleque maluco correndo por toda parte”. Quando eu tinha 10 ou 11 anos, jogava no Corinthians, na minha escola e em outros times de base, onde meu pai tinha amigos. Às vezes eu jogava três jogos em um dia. Meus pais tiveram que abrir mão de seus fins de semana para me levar de carro. Eles sacrificaram tanto, que mal tiveram vida própria.
Mas se eu tivesse jogado mal?? Pô… aquelas voltas pra casa seriam longas.
Cara, meu pai fala muito. Ele gosta de dizer que eu herdei apenas 10% do potencial dele. Ele diz: “Não tem vídeo, nem foto, você não pode dizer que não é verdade”. Aparentemente, ele corria muito, então aprendi isso com ele. Ele costumava me dizer: “Tem dias que você não vai jogar bem, que a bola vai bater na sua canela, mas se você correr ainda pode dar algo para o seu time”. Essa foi uma boa lição. Eu sempre ouvia o que ele tinha pra me dizer.
Mas ele estava sempre me cobrando. Quando meus pais vinham me ver jogar em Mogi Mirim, por exemplo, demorava duas horas para voltar pra casa. E nesse caminho ele continuava pegando no meu pé.
Ele nunca xingou, gritou ou qualquer coisa. Ele se concentrava mais nos detalhes.
“Pô, Gabriel, você fez assim, mas deveria ter feito isso e aquilo...”
Eu nem sabia o que estudar… Só esperava que o plano A desse certo.
- Gabriel Martinelli
E eu já sabia que não tinha jogado bem! Eu já estava triste. Não precisava que ninguém me dissesse...
“Pô, Gabriel, displicência...”
Ah!! Às vezes, eu fingia estar dormindo. Ele ainda falava um monte. Depois de uma hora que ele tinha falado, silêncio. Silêncio total... até minha mãe começar.
“Gabriel, você chutou fraco. Tem que bater com mais força.”
Eu ficava tipo: “Ah, mãe, pelo amor de Deus!! Já escutei um monte e você ainda quer falar??”
Até que uma vez, eu disse ao meu pai: “Pô, pai, todo jogo você é assim.” Ele me explicou que estava fazendo isso para o meu próprio bem. Eu entendia, mas da vez seguinte eu ficava com raiva de novo... Hahaha.
Quando eu tinha 14 anos, ele conseguiu um novo emprego em Itu, então tive que sair do Corinthians. Nesse dia, chorei muito. Acabei no Ituano, um clube bem menor, mas já percebi que poderia mesmo ser jogador de futebol. Eu já tinha um agente, o Rafael, que ainda está comigo. Mas meu pai disse que eu precisava de um plano B. Minha mãe até queria que eu fosse para a faculdade. Ela ainda me cobra isso.
Eu nem sabia o que estudar… Só esperava que o plano A desse certo.
Anos depois, em 2018, o Manchester United disse que não me queria. Mas logo em seguida eu fui muito bem na Copinha — a famosa Copa São Paulo de Futebol Júnior. Novas ofertas estavam chegando. Quando Rafael me disse que o Arsenal se interessou, não pensei duas vezes. Perguntei ao meu pai: “O que você acha?”
Ele disse: “Vamos para Londres”.
Foi a melhor jogada que nós fizemos.
Quando vim para Londres, em 2019, não fazia ideia de nada. Eu não conseguia nem dormir. Meus pais e o Rafael vinham comigo no começo, mas às vezes eu tinha que dormir sozinho em casa... nunca consegui. Quando criança, sempre dormia com meus pais, porque só tínhamos um quarto. Quando mudamos para Itu, eu tinha medo de dormir sozinho. Mesmo agora eu preciso de alguém em casa. Uma vez dormi lá sozinho, e acabei passando a noite inteira no telefone com minha namorada. Não estou contando isso como uma piada. Mesmo durante o dia, não gosto de ficar sozinho.
Eu também não sabia dirigir. Você tem que falar inglês para ter habilitação e, quando consegui falar bem o suficiente, a pandemia adiou todas as provas de direção. Passei dois anos pegando carona ou pedindo uber. Sabe quem me salvou? Emi Martínez. Grande cara! Ele morava a 10 minutos da minha casa, então me pegava para me levar ao treino e ao estádio. Às vezes, a gente também dava carona pro Dani Ceballos. Emi sempre tentou ajudar a todos. Uma vez, até passei o Réveillon com a família dele.
Também tive muita ajuda do David Luiz, outro cara sensacional. Sem pessoas assim, meu começo teria sido muito mais difícil.
Eu fazia aulas de inglês três vezes por semana. Assistia a filmes com minha namorada. Eu a amo, mas, cara, ela me irrita! Mesmo sendo carioca, ela sempre quer assistir aos filmes em inglês e eu quero assistir dublado.
Ela me diz: “Você está aprendendo inglês e quer ver filme dublado??” Mas quando você está acostumado com as vozes em português, o inglês é simplesmente estranho.
Podemos assistir a um filme em português e ela diz: “Sabe… essa nem é a voz real do ator”.
E eu respondo: “Sim, é. Tô acostumado com essa voz”.
Ela fica tipo: “Essa não é a voz! A voz real é em inglês. Eles não falam português!”
Também tive ajuda da minha mãe, embora para outras coisas. Um dia antes de marcar aquele gol em Stamford Bridge, perguntei a ela: “Amanhã, vou marcar um gol. Como é que eu comemoro?”
Ela disse: “Para de me encher o saco, que tô fazendo a comida!” Hahaha.
Eu estava tipo: “E se eu fizer isso?” Cruzei meus braços.
Ela disse: “É, assim mesmo”.
Mas o momento em que realmente precisei de ajuda foi quando sofri uma lesão em 2020. Estava treinando quando senti dores no joelho. Os médicos me disseram que tinha afetado a cartilagem.
Cinco meses fora.
Eu comecei a chorar. Não podia acreditar. Já tinha torcido o tornozelo antes, mas agora seria meio ano sem fazer o que mais gosto. Eu não conseguia nem mesmo colocar o pé no chão. Mas depois de uma semana eu pensei: Ei, não adianta chorar. Tem que seguir em frente.
Estou muito feliz por ter aproveitado a chance que tive.
- Gabriel Martinelli
Na verdade, melhorei muito meu inglês nesse período. Eu estava trabalhando com nosso fisioterapeuta, Jordan, e ele não vem com legendas. Não há opção de dublagem. Passamos tantos dias juntos e senti muita dor, física e emocionalmente. Mas também amadureci muito, aprendi muito sobre meu corpo, minha mente e, enfim, os verbos em inglês.
Depois de um mês, eu já podia colocar o pé no chão. Essa foi uma grande vitória.
Logo eu poderia dobrar meu joelho um pouco mais. Outra vitória.
Em dezembro eu estava de volta. Então o que aconteceu? Me machuquei de novo!! Na minha primeira partida, o segundo goleiro do Manchester City, Zack Steffen, me deu uma entrada e eu saí voando. Fiquei rolando de dor e tive que sair no intervalo. Claro que fiquei preocupado. Felizmente, não foi grave. Algumas semanas depois, eu estava prestes a começar contra o Newcastle e torci o tornozelo no aquecimento. Mais uma semana fora. Portanto, meu retorno não foi exatamente tranquilo.
Mikel Arteta sempre foi ótimo comigo. Quando não estava jogando tanto na última temporada, fui à sala dele e ele me garantiu que eu teria minha chance. Eu queria jogar todos os jogos, sabe? Mesmo quando saí contra o Forest outro dia, pensei: Ah, eu queria muito fazer outro gol... Mas temos muitas partidas. Eu entendo.
Estou muito feliz por ter aproveitado a chance que tive. Eu realmente amo o Arsenal. É como uma grande família. Todo mundo aqui se respeita demais. E se a torcida pudesse ver o nosso treino, logo perceberia por que estamos jogando bem: mesmo nos jogos simples, no trabalho de passe, ninguém quer perder em nada. Em casa, ainda não perdemos um ponto, porque o clima nesta temporada está melhor do que nunca. Os adversários estão sempre sentindo a pressão no Emirates Stadium.
E eu garanto que, quando você tá correndo atrás da bola e se sente morto de cansaço, quer desistir… mas os 60.000 torcedores estão gritando ao seu redor… você vai chegar nessa bola. A energia é incrível.
Na verdade, lembra, em agosto, quando Saliba marcou aquele gol contra em casa no jogo com o Fulham? Ele estava voltando fazendo uma careta, e talvez outros torcedores tivessem vaiado…
Mas nossa torcida aplaudiu. Eles estavam apoiando, dizendo: “Estamos com você, não importa o que aconteça”.
Dois minutos depois, a gente fez o gol.
Isso é o Arsenal.
Vamos continuar buscando a vitória a cada jogo, porque é isso que este clube deve fazer. Jogar pelo Arsenal não quer dizer apenas “fazer um ponto”.
O Arsenal não quer terminar em quarto lugar.
O Arsenal quer títulos. Troféus. A Champions League.
É o que a nossa torcida merece.
Claro, também nunca esqueci meu sonho da Copa do Mundo. Quando o Tite me convocou pela primeira vez para a seleção principal, em março, eu não sabia o que dizer. Ele me mandou uma mensagem e, eu juro, devo ter lido minha resposta pelo menos umas 20 vezes. Eu estava com medo de escrever algo errado.
A minha estreia com a camisa da Seleção foi no Maracanã... Pô, o Maraca! Surreal. Lembro de entrar no vestiário e ver a camisa amarela.
MARTINELLI.
Mandei uma foto para os meus pais. Meu pai respondeu: “Boa, moleque!”
Mas eu sabia que ele era muito mais emotivo. Quando conversamos, ele quase chorou.
Na semana passada, quando fui convocado para a Seleção que vai disputar a Copa do Mundo, tive aquela sensação mágica de novo. Quando minha família se reunir no quintal pra ver a Copa, eu estarei na tela da TV. Vamos trazer o Hexa pro Brasil, se Deus quiser…
Meu pai e eu temos conversas muito mais tranquilas agora. Ah, claro, ele gosta de falar do passado, né? Marquei cinco gols na Premier League nesta temporada — dois com o pé esquerdo. Depois de cada um deles, meu pai me ligou.
“Você lembra de quando a gente ia pra quadra e eu fazia você chutar com a perna esquerda, e você reclamava? Tá vendo? Agora, tá valendo a pena!”
Vou falar o quê?
Acho que ele tinha razão :-)